Enfim, a digitalização

Para executiva, relação com tecnologia muda permanentemente e ajuda a destacar talentos fora dos centros

Lisiane Lemos Especial para Ecoa

[Trabalho e tecnologia]

A pandemia colocou boa parte da população em casa, tendo que conciliar trabalho com tarefas domésticas. É diferente de fazer home office, e o contexto de cada colaborador deve ser considerado. Surge a partir disso mais conexão e mais empatia. Também nasce um espírito de colaboração entre concorrentes, para ajudar segmentos a sobreviver. Essa postura será um legado da crise. Por fim, se achávamos que as empresas estavam digitalizadas, a realidade mostrou que não. Mas, com a Covid-19, foi possível implementar em semanas o que em anos não havia sido feito. Por isso a digitalização será definitiva e permanente.

Ecoa traz na série O Mundo Pós-Covid-19 um grupo de especialistas que, em depoimento a jornalista Mariana Castro, contam como imaginam uma civilização pós-pandemia a partir de temas como Tecnologia, Trabalho, Educação, Ciência, Alimentação, Cidades, Novas Economias, Espiritualidade, Meio Ambiente e Comportamento. Além de desenhar possíveis cenários para o que vem depois, eles falam sobre como as escolhas de agora podem contribuir para a construção de um futuro mais desejável.

Ler mais

Tenho mais tempo de conversar com a minha equipe hoje, fora do escritório, sem viagens ou compromissos na rua. Conheço os filhos das pessoas com quem trabalho. Não tem uma reunião em que não apareça uma criança chorando. Aqui não tem criança, mas minha avó passa no meio da reunião. Essa tem sido a realidade de muita gente. E isso é bom.

É diferente de home office. Estamos trabalhando de casa em tempos de pandemia. Nesse novo ambiente de trabalho, tem de tudo. O vendedor de pamonha, de sacolé, o barulho do cachorro da vizinha. Estamos mais conectados, de forma muito mais empática. Existe uma preocupação maior com o contexto das pessoas. Não dá para desconsiderar a diferença entre quem tem dois filhos em casa e trabalha administrando essa rotina e quem não tem e de como isso afeta a produtividade.

Existia uma percepção de que boa parte das empresas já estava digitalizada. Mas a realidade se mostrou diferente. As pessoas que não têm familiaridade com a tecnologia no trabalho estão aprendendo às pressas a usar ferramentas de interação. Quem já tinha familiaridade, precisa abraçar um papel de tradutor e facilitar a vida de quem precisa de suporte.

Faço uma aposta sobre uma mudança permanente: nossa relação com a tecnologia. Quem é da minha área, vivia falando, assim como eu: tem que digitalizar, tem que aprender o mínimo de lógica de programação, precisamos aprender a trabalhar à distância... Veio a Covid-19 e o que estávamos tentando implementar há anos virou realidade em semanas.

Uma boa notícia: o mercado de trabalho orbita nos grandes centros, como São Paulo e Rio. É difícil um profissional muito talentoso se destacar em sua área se ele não pode estar nesses lugares. Em um ambiente virtual onde as relações de trabalho à distância são recorrentes, será mais fácil mostrar esses talentos e jogar sobre eles o holofote. Teremos mais oportunidade de ver talentos de lugares diferentes. Em um ambiente virtual, se destaca quem é qualificado. Não importa onde você esteja.

Manter o otimismo no trabalho em tempos de pessimismo tem sido um baita desafio. Isso tem a ver com a retomada. É preciso encontrar algum otimismo para se preparar para o que vem depois. Tem empresas que perderam 50%, 60% de sua receita na primeira semana de pandemia. Muita gente perdeu o emprego. Trabalho com líderes de grandes empresas e começo qualquer conversa perguntando como a pessoa está, antes de qualquer coisa.

Saber mostrar a vulnerabilidade será uma habilidade exigida cada vez mais das lideranças. Outra vai ser o poder de transformar uma solução em algo prático rapidamente. E um dos aspectos mais positivos que tenho visto é a colaboração entre concorrentes. Ter esse espírito de compartilhar o que está dando certo para a sobrevivência de todos é importante agora e vai continuar sendo na retomada. Contar como um e-commerce foi construído em 24 horas ou como um robô está resolvendo o problema de uma marca, por exemplo.

É o efeito Corona: apesar da distância, as pessoas estão mais conectadas. As mudanças entre as lideranças estão acontecendo agora e precisa ser assim. Pois se não, não vai dar tempo de se adaptar lá na frente. Empresas e colaboradores vão ter que repactuar os seus acordos. Não seremos os mesmos, nem as empresas, nem os mercados.

Nesse sentido, tenho percebido que as marcas que têm um propósito claro, um interesse genuíno, encontram mais facilidade para se reinventar. São essas que estão se sobressaindo e as que devem sobreviver. O propósito não precisa ser algo grandioso, como acabar com a fome no mundo, mas pode ser gerar renda para dez famílias que você emprega. Mas com um objetivo claro fica mais fácil se movimentar em um cenário de incertezas.

Vejo também uma grande oportunidade de investimento em atendimento virtual. Serão novas formas de fazer negócio. Estamos comprando tudo o que precisamos pelo telefone. Por conta do isolamento social fiquei em Pelotas, no interior do Rio Grande do Sul, onde nasci. Vim para a casa dos meus pais com uma mala pequena de verão e tive que comprar roupas de inverno sem sair de casa. Fora dos grandes centros, essa experiência mostra como ainda é um desafio atender bem sem estar na frente das pessoas. Teremos que qualificar as relações de venda intermediadas pela tecnologia.

Outra tendência em relação ao consumo é a necessidade de comprar tudo localmente em razão da logística. A reputação na hora da compra está ainda mais em alta. Priorizamos preço, mas fatores como origem do produto, a segurança e o atendimento vão contar ainda mais. Não busco mais recomendação apenas pela internet. Minha prima de Pelotas virou uma espécie de "Central do Corona". Peço a ela recomendação daqui para tudo o que preciso.

Mesmo quando passamos por um trauma, sabemos nos recuperar e tendemos a fazer com que as coisas voltem ao normal. Mas imagino que iremos passar por uma reavaliação sobre aquilo que realmente precisamos. Preciso mesmo desse armário cheio de roupas, de carro, preciso viver em um grande centro urbano?

Por fim tenho pensado sobre como vão ficar as bandeiras da diversidade no pós-pandemia. Como vamos falar de minorias? Não podemos deixar de lado temas tão importantes. Agora é o momento de refletir sobre o papel de cada um na retomada, quando o período de isolamento passar. Apoiar minorias, não esquecer daqueles que por muito tempo foram esquecidos. Sonho em ser uma líder empresarial no mercado de tecnologia. Estudo muito, procuro compartilhar conhecimento e levar pessoas de minorias a lugares onde nunca pensaram em ir. Agora vou poder fazer isso virtualmente, onde essas distâncias ficam menores. Nesse sentido, as mudanças vão facilitar esse trabalho.

  • Lisiane Lemos

    É advogada e atua como Gerente de Desenvolvimento de Negócios em uma multinacional. Em 2017, foi citada pela Forbes Brasil uma das jovens abaixo de 30 que fará a diferença no Brasil e, em 2018, como uma das 40 pessoas negras mais influentes abaixo dos 40 (MIPAD).

    Imagem: Divulgação

Mundo Pós-Covid-19

Mundo que funciona

O futuro do trabalho chegou de um dia pro outro, as pessoas saíram dos escritórios sem expectativa de voltar, assumindo casas como extensão de empresas.

Ler mais

+ Sobre a série

Ecoa ouviu pessoas de diferentes áreas para saber o que elas estão pensando. É um exercício para tentar dar uma cara a esse futuro que nos espera - e assusta.

Ler mais
Topo