Empreendedorismo da favela

Para empreendedor social, soluções inovadoras virão de quem não tem opção a não ser se reinventar

Hamilton Silva Especial para Ecoa

[Comida e trabalho]

Restaurantes mais vazios, serviços de delivery em alta e uma produção mais inteligente, planejada e com menos desperdício, intermediada pela tecnologia. Essas são algumas das apostas na área de alimentos. No pós-pandemia, com a digitalização e as relações mais virtuais, o que já era tendência no consumo de comida deve ser acelerado, como o estreitamento da relação entre os pequenos produtores rurais e suas comunidades locais.

Ecoa traz na série O Mundo Pós-Covid-19 um grupo de especialistas que, em depoimento a jornalista Mariana Castro, contam como imaginam uma civilização pós-pandemia a partir de temas como Tecnologia e afetividade, Trabalho, Educação, Ciência, Alimentação, Cidades, Novas Economias, Espiritualidade, Meio Ambiente e Comportamento. Além de desenhar possíveis cenários para o que vem depois, eles falam sobre como as escolhas de agora podem contribuir para a construção de um futuro mais desejável.

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Destacam-se as iniciativas de quem está continuamente trabalhando por suas comunidades e suas causas. Nesse momento não tiveram vez os habituais empreendedores das redes sociais. O empreendedor da Zona Sul - da classe média alta, acostumado a ir de patinete elétrico para o coworking, pensar em como transformar sua startup no próximo unicórnio - está agora vendo alguma live. Ele tem essa opção.

Quem não tem essa opção é quem de fato vai ter que inovar. No pós-Covid-19, o ecossistema do empreendedorismo precisará valorizar o empreendedor da favela. Devem vir daí soluções de fato inovadoras. Estou falando do cara que poderia continuar trabalhando por mais 20 anos como cabeleireiro na comunidade e que agora, para garantir o seu sustento e o de sua família, está inventando alguma outra coisa que seja relevante no atual contexto e no pós-coronavírus. De quem, pela necessidade urgente, terá que se reinventar.

É preciso iniciar ações de inserção tecnológica e empreendedora desta população para que essa reinvenção seja possível. O mercado de trabalho vai ficar mais digital. Os cenários de fome e escassez estarão diretamente associados às comunidades em que esta inserção tecnológica não acontecer ou acontecer de forma insuficiente.

Os próximos anos devem ser de afastamento social, individualização, automação do trabalho e da criação de abismos sociais ainda maiores para a população em vulnerabilidade. Garantir que todos tenham acesso a infraestrutura para trabalho remoto é uma escolha de agora que pode nos levar a um lugar menos desigual.

Pensando no que vem por aí, diversificamos nossos negócios. A tendência de mercado seguirá a de prestação de serviços em domicílio, por meio do delivery. Minha sogra de 60 anos passou a pedir comida no iFood. Ela nunca tinha feito isso. Acho difícil voltar a ter restaurante lotado. Vai voltar a ter gente em restaurante, mas não do mesmo jeito. As comemorações e festejos sociais tenderão a ser cada vez mais domésticos.

Sobre a transformação de hábitos alimentares, estamos vivendo uma década de informação e empoderamento, em que a origem dos alimentos, o modo de produção e os benefícios nutricionais têm feito grande diferença no momento da escolha para boa parte dos consumidores. No pós-pandemia, com a digitalização e as relações mais virtuais, a tecnologia vai estreitar ainda mais as relações de mercado entre os pequenos produtores rurais e suas comunidades locais. Com isso, a produção de alimentos tende a ser mais inteligente, mais planejada e com menos desperdício.

No que diz respeito ao que estamos vendo nas comunidades, a partir dos nossos negócios, algumas das mudanças de agora serão permanentes. Não tem volta. Antes da pandemia, por exemplo, a comunidade era meu cliente. Temos um negócio social pioneiro em democratizar o acesso à alimentação saudável.

Com a Covid-19, passamos a entrar na casa das pessoas para entregar cestas básicas para quem está em situação crítica. Isso faz toda a diferença. Antes meu negócio resolvia um problema que era de democratizar a alimentação saudável. Agora, além dele, resolvo um problema de dimensão muito maior: evitar que pessoas passem fome.

Em um mês, com o movimento #Antifome, distribuímos 1400 cestas básicas nas comunidades e mais 1000 sopões para moradores de rua do Recife e de São Paulo, com apoio de empresas parceiras. Em resposta à crise, criamos novas iniciativas. Uma delas, para que mulheres possam usar nossa rede de distribuição e vender pelo delivery produtos de suas marcas. O Orama, centro de inteligência periférica usado para identificar hábitos de consumo, agora está a serviço de um mapeamento das necessidades prioritárias da comunidade.

Muitos aplicativos não entram nas favelas. Com o coronavírus, cresceu o número de pedidos de entrega de comida. Pela plataforma de delivery Silva!, donos de restaurante pagam um pacote pelo número de entregas e o entregador ganha o dinheiro da corrida. É um dinheiro que fica na comunidade. Chegamos na Favela de Plástico na Zona Norte do Recife, que tem esse nome pois as casas são de plástico, e as pessoas vibravam porque tinha óleo na cesta básica. Mas não tinham onde cozinhar. Não adianta só doar alimentos. São pessoas que moram em casas onde não tem cozinha.

Por causa da pandemia conhecemos essas realidades e ouvimos a comunidade gritando. Diante dessa necessidade, estamos construindo cozinhas comunitárias. Você agenda um horário que pode ser usado tanto para cozinhar para sua família como para realizar alguma atividade empreendedora. Continuaremos com nosso negócio de delivery de comida saudável a preços populares. Mas o legado das iniciativas vai ficar. Para que o que estamos vivendo possa contribuir na construção de um futuro mais desejável é preciso agir agora.

  • Hamilton Silva

    Aos 31, é empreendedor social e fundador do Saladorama, negócio focado em democratizar a alimentação saudável nas comunidades do Brasil.

    Imagem: Divulgação

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