Epitáfio

Existe boa morte? Após perder esposa, líder do Sepultura sentiu na alma que debate sobre o fim deve mudar

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo (SP) Marcus Steinmeyer/UOL

Quando Patrícia Kisser morreu, em julho de 2022, a família estava preparada. Patricia já imaginava como seria aquele dia muitos anos antes da descoberta de um câncer. Dizia que gostaria de meias para aquecer os pés, um cobertor e um travesseiro. Era uma brincadeira mas, quando a doença se intensificou, Andreas Kisser percebeu que a fala da esposa formava uma espécie de manual de instruções.

Kisser, um dos músicos mais respeitados do mundo, é guitarrista do Sepultura, banda mineira com fama internacional e a mais importante do heavy metal no país. É um sujeito sério, ao menos no palco. Tem longos cabelos e tatuagens. A camiseta preta só é trocada pela tricolor do São Paulo.

Patrícia foi médica e produtora musical. Era acolhedora, bem-humorada e habilidosa para decifrar as angústias e se aproximar das pessoas. João Gordo a apelidou de Mãetrícia, uma homenagem à capacidade de acolher um número sempre maior de novos amigos e habilidades.

O casal criou amigos em gêneros musicais inimagináveis para um fã de metal, como Chitãozinho e Xororó, Sandy e Junior, Serginho Groisman, Carlinhos Brown e Samuel Rosa. Para comemorar o fim da quimioterapia, Patrícia sonhou com um show para reuni-los. Uma comemoração com luzes, instrumentos, com o grito da plateia. Uma celebração à vida. Sua doença, porém, se agravou.

Quando a esposa partiu, Andreas percebeu que, apesar da sensação inexplicável do luto, se sentia preparado para atender ao desejo de Patrícia. Ela o havia instruído sobre a morte e, ao mesmo tempo, o fez refletir sobre a vida dali em diante. Agora, o músico trabalha para levar conforto aos que vivem seus momentos finais. Para mudar a forma como lidamos com a morte no Brasil.

A morte faz parte da vida, por que a gente tenta ignorá-la?

Andreas Kisser

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Patrícia e Andreas se conheceram em Santo André, na Grande São Paulo, onde foram apresentados por uma amiga em comum dos tempos de escola. O primeiro beijo foi em uma rua em Mogi das Cruzes (SP), onde ela estudava medicina. Andreas a apresentou à família pouco tempo depois. O ano era 1990 e o Sepultura, criado nos anos 1980 em Minas Gerais, estava prestes a decolar.

Naqueles tempos, Belo Horizonte vivia uma efervescência musical. Após Minas Gerais revelar Borges, Milton Nascimento e todo o Clube da Esquina para o mundo, os jovens da capital começaram a se organizar em bandas de rock que, mais tarde, gerariam grupos como Pato Fu e Skank. Todos se conheciam e alternavam integrantes mesmo em ritmos improváveis, como um tecladista de reggae tocando com um grupo de rock pesado sem grandes questionamentos.

Em meio aos primórdios do heavy metal de sotaque mineiro, uma banda era diferenciada: o Sepultura. Os estúdios e os produtores da cidade eram limitados, mas os primeiros lançamentos do quarteto, pela gravadora local Cogumelo, haviam gerado ruídos ao redor do mundo. A chegada de um novo guitarrista gerou burburinho na cidade. Era Andreas.

Samuel Rosa, vocalista do Skank, nunca foi do metal, mas virou amigo de Andreas no início dos anos 1990. Em outro cenário, diferenças musicais poderiam afastá-los espontaneamente, mas a liberdade para explorar ritmos, conhecer pessoas e tomar uma cerveja nos bares da Savassi, bairro boêmio da capital mineira, era o que, nos próximos anos, os levaria a tantas outras praças pelo Brasil.

Com Andreas, Samuel lembra que a banda subiu de patamar e, além de BH, fez muito sucesso no exterior com as letras em inglês. Era um arrebatamento fora da curva, mas que confirmava que, mais uma vez, as canções criadas em Minas Gerais poderiam ressoar ilimitadas e universais. "Lembro de o Herbert [Vianna] dizer que viajou até a Escócia e, embaixo de um viaduto deserto, viu uma pichação escrita: Sepultura", diz Rosa. "O Sepultura é e sempre será a banda brasileira mais popular no mundo".

No meio daqueles caras cabeludos, Samuel conheceu uma garota: Patrícia. "Rapidamente, viramos amigos".

Últimos e próximos meses

Patrícia esteve consciente nos seus últimos meses. Recebia amigos, fazia telefonemas, enviava mensagens, mas estava sob cuidados paliativos. A passagem do tempo, as conversas, os boletins médicos: tudo fazia Andreas pensar sobre como lidamos e quais os direitos que temos para uma morte digna. "Era um caso clássico de eutanásia: ela estava consciente do que estava acontecendo e não aguentava mais passar por aquilo; o corpo não respondia mais", diz.

O Sepultura e Andreas sempre foram ligados a causas sociais. Nos anos 1990, a banda promoveu o festival "Barulho Contra Fome" e doou o valor do ingresso e alimentos para dez instituições filantrópicas. Desde então, fizeram shows beneficentes e ações sociais. Andreas também participa do Os Pitais, um grupo de músicos que alegram pacientes internados em São Paulo.

Neste ano, em busca de respostas sobre a morte digna, o guitarrista foi apresentado à Comunidade Compassiva, ONG que promove conforto a pacientes com doenças ameaçadoras à vida. O atendimento voluntário é feito por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e dentistas no Vidigal e na Rocinha, no Rio de Janeiro, e em comunidades em Minas Gerais e Goiás.

Os pacientes são encaminhados à rede pública de saúde, recebem fraldas, curativos, analgésicos e um voluntário é treinado para ser cuidador. Atualmente, 41 pessoas são atendidas em casa pela Comunidade Compassiva.

A ação foi criada pelo professor e enfermeiro Alexandre Silva, que teve uma inquietação similar à de Andreas. "O Brasil é o terceiro pior país para morrer no mundo". Segundo ele, faltam políticas públicas para cuidados paliativos e sobra burocracia sobre medicamentos para aliviar dores. "Eu imaginei que as pessoas que vivem nas favelas - com tantas questões de violência, pobreza, falta de acesso - morriam de maneira pior", diz. O hábito é evitar o assunto.

"É um direito da pessoa poder conversar sobre [a morte], então, se ela quer falar sobre isso, a gente tem que oferecer o espaço".

Reprodução/Instagram/Arquivo pessoal
Andreas e Patrícia no início dos anos 90 e em foto atual.

'Mãetricia'

Na eutanásia, medicamentos diminuem a dor e abreviam a vida do paciente que, nos casos registrados até hoje, costuma ter uma doença gravíssima. A ação é feita por um médico. No suicídio assistido, uma pessoa com condições incapacitantes causa a própria morte com medicações descritas por profissionais de saúde, mesmo sem uma doença terminal. Nos dois casos, o consenso é obrigatório.

O Brasil não há leis sobre a eutanásia, que é considerada crime. O Código Penal condena a indução ou ajuda ao suicídio com até seis anos de prisão. Na Holanda, Suíça, Canadá, Colômbia e em estados norte-americanos há leis que determinam como e quando o procedimento pode ser feito. Por aqui, artigos médicos descrevem o debate público como "superficial".

Patrícia esteve sob cuidados paliativos em São Paulo com auxílio de medicamentos para a diminuição de dores. Andreas defende o direito à escolha de como passar os últimos momentos — inclusive, se a escolha for encurtá-los.

Um movimento, batizado Mãetrícia foi formado para popularizar o chamado testamento vital. O documento é uma lista com instruções para a família e os médicos sobre como paciente planeja a forma como morrerá. "Nossa luta é que, agora, o testamento vital vire um projeto de lei", diz Andreas. Mas não só.

A morte não é o contrário da vida. Morte é o contrário do nascimento. Vida é o que a gente tem no meio.

Alexandre Silva, fundador da Comunidade Compassiva

"Não gosto de usar a palavra 'forte'. Parece que o cara tá aguentando ali. Não acho isso. Acho que ele está vivendo, consciente do que está passando ao perder uma companheira de longa data", diz o amigo Samuel Rosa. "Ele não está em euforia, o que poderia ser um escapismo, nem como uma vítima por tê-la perdido. É uma outra postura".

Na verdade, há dias melhores e dias horríveis. "Eu vou passar o aniversário, o Natal e o ano novo sem ela pela primeira vez. É um processo", diz Andreas. Cada membro da família, o sogro, a sogra e os três filhos do casal vivem o luto cada um à sua maneira, diz.

"É impossível descrever o que eu estou sentindo e não posso generalizar o luto", afirma o músico. "Mas eu senti na pele - na alma - que o luto é muito mais confortante quando a gente fala sobre a morte".

Assim, ele configurou uma nova visão. "A gente vive com a morte. Na vida, em várias situações, quando você muda de um emprego, quando você se separa, quando você muda de país, enfim, quando termina um projeto, também é uma forma de morte, de recomeço. É um aspecto fértil", afirma.

"Ela passou por tudo comigo: da explosão do Sepultura à saída do [vocalista] Max [Cavalera] e tudo aquilo que passamos para uma reconstrução com um vocalista novo [Derrick Green]", explica. Mas eles continuaram.

Em setembro, milhares de fãs foram ao show do Sepultura no Rock In Rio. Andreas pensou em um novo recomeço.

PatFest

Em setembro, Andreas ensaiava em um estúdio em São Paulo. Quando Patrícia se foi, percebeu que deveria manter o show celebração que a esposa desejava realizar para comemorar o sucesso da quimioterapia. Ele sacou o telefone e disparou e-mails. "Decidimos celebrar a vida dela", diz.

As confirmações não paravam de chegar, uma mistura heterogênea de Dinho Ouro Preto, do Capital Inicial, a Badauí, do CPM 22, passando pela dupla sertaneja Marcos & Belutti. Da plateia, fãs com a camiseta do Sepultura cantavam a música "Quando você passa", interpretada por Sandy. Na sequência, Chitãozinho e Xororó entoaram seu clássico "Evidências" - com apresentação de Serginho Groisman.

Em um dos momentos mais emocionantes, Andreas convidou os Titãs, uma de suas bandas favoritas, para tocar a música Epitáfio. Os versos "a cada um cabe alegrias e a tristeza que vier" foram cantados em coro pelo público.

O valor do ingresso foi doado para a ONG Comunidade Compassiva. No futuro, servirá para a criação de leitos para tratamentos paliativos das famílias atendidas. O espaço já tem nome: Patrícia Kisser. Nos últimos dias de vida, ela se despediu de amigos da música, da escola, da vida e até de desafetos.

"Quanto mais a gente se abrir e saber o que vai acontecer, cada vez mais poderemos ter despedidas como a que minha família teve. Um processo duro, doloroso, mas muito lindo", diz. "Fico privilegiado de ter a Patrícia na minha vida".

+Especiais

@melhummel/divulgação

Sepultura

"O genocídio indígena pode ser evitado": banda fala sobre ecologia e viola caipira

Ler mais
Keiny Andrade/UOL

Teco Martins

Vocalista do Rancore largou a cidade para criar uma agrofloresta no campo

Ler mais
Carol Quintanilha / ISA

Inovação

Juvencio Cardoso abriu caminhos e potencializou educação indígena no Amazonas

Ler mais
Topo