Aqueles negros maravilhosos

Capitão do penta em 2002, Cafu revela que vestiria camisa de país africano detectado em teste de DNA

Camila Freitas De Ecoa, em São Paulo (SP) Deborah Faleros/UOL

Foi só aos 15 minutos do segundo tempo que a tensão se aliviou. Cercado por três marcadores, Tostão achou Pelé. Dele, a bola chegou a Jairzinho, que estufou as redes. Em 7 de junho de 1970, a seleção brasileira venceu por 1 x 0 a Inglaterra, campeã do torneio anterior, e garantiu o primeiro lugar do grupo três na Copa do Mundo, realizada no México.

Outro grande evento naquele dia marcou a história da camisa canarinho. "Ele nasceu na hora em que o Brasil estava jogando: 14h30. A enfermeira ainda falou pra minha esposa: 'vamos nascer logo essa criança que eu quero assistir ao jogo da Copa'. Depois que ele nasceu, ela ainda falou 'esse aqui vai ser um campeão'", relatou Célio de Morais em 2002, em entrevista à ESPN.

Ele se refere ao filho, Marcos Evangelista de Morais. Pelo nome completo, é difícil de reconhecer, já que ele é mais conhecido como Cafu. E não é que a enfermeira estava certa? Multicampeão pelo São Paulo e Milan, o menino se tornou o jogador com mais partidas pela seleção (142 jogos), o que mais disputou partidas do mundial (20 jogos) e o único no planeta a jogar três finais seguidas. Venceu duas delas, a de 1994 na reserva e a de 2002 como titular.

Hoje, já aposentado dos campos, Cafu não larga o osso. É um dos embaixadores do mundial do Qatar e esteve a convite da Fifa no sorteio dos grupos. Depois de 20 anos de ter levantado a taça da Copa e com 52 anos de vida, ele topou o convite de Ecoa e fez um teste de DNA para descobrir sua origem para além dos pais. Empolgado com o resultado, o capitão do penta não só se encontrou na África, como revelou que vestiria a camisa de um dos países presentes em seu resultado. Spoiler: ele será adversário do Brasil.

A alegria que eu vejo em mim

O teste de DNA de Cafu mostrou que o material genético do ex-lateral remete ao continente africano (60%), mais especificamente à região conhecida como Costa da Mina (40%), onde estão os países Nigéria, Gana, Togo e Benim. Ao saber do resultado pela equipe de Ecoa, os olhos de Cafu chegaram a brilhar.

Sentado com o corpo inclinado para frente, ele presta atenção enquanto a reportagem lê o resultado. Ao fim, é ambíguo. Diz estar surpreso ("Vou muito a esses países a trabalho. Em todos eles, sinto uma identificação muito grande") e, ao mesmo tempo, desassombrado.

Eu sempre soube que tinha algo em comum com os africanos pela maneira que eles me tratam e pela identificação. Então, pelo jeito, está tudo explicado.

Ainda que a curiosidade o tenha motivado a fazer o teste, Cafu diz que nunca tinha questionado a si ou aos pais sobre sua ascendência. Encarou o exame como algo divertido. Das muitas portas do mundo que o futebol abriu para Cafu, a possibilidade de conhecer suas origens foi mais uma delas, diz.

A identificação com os africanos, porém, acaba onde começam as quatro linhas do campo de futebol. Para ele, falta aos times do continente comprometimento no grupo - e isso é visto em larga escala nas seleções brasileiras. "Eles têm uma força e um potencial enorme, mas não colocam isso no conjunto. O que sai de jogador africano bom individualmente é impressionante. Mas, juntos, eles não conseguem formar uma seleção com uma mentalidade vencedora", analisa.

A identificação com os africanos vem de outro lugar: a alegria e a busca pela diversão. "Espero usar isso [o teste de DNA] de uma forma positiva para que eu possa explorar mais esse lado africano em mim que acredito que seja esse lado alegre, divertido, com esse jeito tranquilo de levar e ver a vida", diz Cafu.

Espero usar isso [o teste de DNA] de uma forma positiva para que eu possa explorar mais esse lado africano em mim que acredito que seja esse lado alegre, divertido, com esse jeito tranquilo de levar e ver a vida

Cafu, ex-jogador de futebol

Capitão do penta, camisa africana

O capitão do penta revela que, com alguns países africanos, a identificação não iria ficar só no sorriso e no DNA. Entraria em campo, uniformizado e tudo.

Vestiria a camisa das seleções de Camarões e Angola. Gosto da seleção de Camarões pela história, pela diversão e alegria com que eles disputam a Copa do Mundo,"

Durante sua carreira, as maiores conquistas ocorreram na Europa. Cria do São Paulo, Cafu passou pela Espanha, onde atuou no Real Zaragoza. Mas foi na Itália, especificamente na Roma e no Milan, que o ex-lateral mais brilhou.

Só no clube milanês, Cafu venceu duas Supercopas Europeias, um Campeonato Italiano, uma Supercopa da Itália, uma Liga dos Campeões e um Mundial de Clubes.

Fosse outro jogador, só isso já o faria se identificar com os europeus. Mas não é o caso de Cafu. Mesmo seu teste de DNA tendo mostrado que boa parte de sua ascendência passa pela Europa (36%), ele não se vê ligado ao continente da mesma forma como se vê conectado com a África.

"Sinceramente, eu não me identifico com esses países. O francês, o alemão, o holandês, por exemplo, são meio frios em relação ao calor humano, à alegria, à festa. Eu me identifico mais com os africanos mesmo", diz. E completa:

A relação que tive com os países europeus é baseada no futebol. Nunca fui ali para me divertir, sempre para fazer aquilo que eu sei fazer, que é jogar bola."

Além disso, Cafu vê que sua relação com o passado é outro detalhe que o separa dos europeus.

"O europeu tem muito disso, o 'nonno' deixa um legado e o restante da família segue essa tradição. Isso é legal, é curioso. A gente não tem isso, a gente não sabe o que o bisavô, o tataravô fez. A gente nem fala sobre isso. Não é algo cultural nosso querer saber qual a história de seus antepassados", opina.

Meus pais são mineiros, mineirinhos de Belo Horizonte e Juiz de Fora, então, por que África? Alguém passou pela África, alguém veio de lá. Mas quem veio de lá? Eu tenho essa curiosidade. Por que Europa também e não América do Sul? Eu quero estudar legal esse resultado.

Cafu, ex-jogador de futebol

Destino certo

Fora do ambiente futebolístico, outro país despertou o interesse de Cafu. Não que ele fosse o mais presente em seu resultado de DNA, mas por uma feliz coincidência.

É no Leste da África, região que responde por 8% da ascendência genética do ex-atleta, onde fica Moçambique. Foi lá que, uma semana antes de receber os resultados do teste, Cafu iniciou um novo projeto social, o Cafuzinhos de Nhamatanda.

O nome se refere ao distrito de Moçambique localizado na província de Sofala, a cerca de 1.190 km da capital Maputo. Ali, a inciativa em parceria com o Instituto Brilhante combate a desnutrição de crianças soropositivas. Já são mais de 30 os beneficiados pelo projeto, que replica o Cafuzinhos do Sertão, que auxilia crianças em Olho d'Água das Flores, em Alagoas.

"A partir de janeiro, irei a Moçambique uma vez por mês. Estamos começando o projeto devagarzinho e, a cada mês, vamos aumentando o número de crianças ajudadas", conta.

Combate ao racismo fora das quatro linhas

Enquanto o técnico Tite convocava na semana passada a seleção brasileira para a Copa do Mundo de 2022, Cafu compartilhava da sensação de que uma característica aproxima aqueles selecionados dos pentacampeões comandados por ele.

Impossível afirmar que todos tenham ascendência africana, assim como ele, mas, ao menos, a cor da pele é semelhante. Dos 26 chamados por Tite, a maior parte se vê ou é vista socialmente como negra. Também foi assim em 2002.

No último amistoso antes da Copa do Mundo, a seleção lembrou a contribuição de atletas pretos e pardos, quando os jogadores entraram em campo com uma placa que dizia: "sem nossos jogadores negros, não teríamos estrelas na nossa camisa".

"Não temos que esperar o futebol para fazer esse tipo de manifestação [contra o racismo]. Precisamos esperar a Copa do Mundo para dizer que esse ato [racismo] é de uma total falta de educação, que é algo cultural e que precisamos cortar isso na raiz?", comenta Cafu quando perguntado sobre o papel do futebol no combate ao racismo.

O futebol tem um papel muito importante junto com a Copa do Mundo, mas não temos que esperar o evento para combater o racismo, nós temos a obrigação de combater isso diariamente.

Cafu, ex-jogador de futebol

Em busca da autonomia sobre origens

Deborah Faleiros/UOL

O trabalho social de Cafu e o envolvimento dele com a Fifa fazem com que sejam frequentes as visitas a diversos países, incluindo os do continente africano.

Com o resultado de suas origens em mãos, ele já sabe o que fará nas próximas viagens. O próximo passo de Cafu é pesquisar. O ex-jogador quer transformar a curiosidade despertada pelo resultado de DNA em conhecimento sobre as nações que abrigam suas origens.

Apesar de achar que os filhos não venham a ter o mesmo interesse que ele, já deseja compartilhar os resultados com eles e com outros entes queridos. Quer, sobretudo, passar a ter autonomia e conhecimento nas discussões quando o assunto for África.

É importante saber de onde veio porque quando alguém te perguntar você sabe e tem autonomia para falar. E ter autonomia para falar de determinado assunto é muito bom principalmente quando você é o assunto. Quando alguém falar alguma coisa relacionada aos países africanos eu posso falar ?opa, não, espera aí, não é assim que funciona?

Cafu, ex-jogador de futebol

ORIGENS: QUARTA TEMPORADA

Deborah Faleiros/UOL

Promovido por Ecoa, Origens está em sua quarta temporada. Esta edição contou com o evento "As histórias que nos trouxeram aqui", em que celebridades e ilustres anônimos contaram como buscaram respostas sobre o seu passado ou agiram para transformar, cada qual à sua maneira, seus núcleos familiares.

Os intervalos de cada painel contaram com apresentações de slam conduzidas pela poeta e compositora Bell Puã e de stand up lideradas pela humorista e apresentadora dos programas Splash Show e Otalab, do UOL, Yas Fiorelo. A apresentação e mediação dos encontros foi feita pela jornalista Semayat Oliveira.

Além disso, esta temporada conta com perfis de ex-jogadores que disputaram a Copa do Mundo e toparam fazer um teste de DNA para explorar sua ancestralidade. Você também confere um trecho em vídeo do papo com o César Sampaio no Instagram de Ecoa. As reportagens sobre os outros atletas estão a seguir:

  • Mauro Silva

    O rei mago de pés africanos

    Imagem: Gsé Silva/UOL
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  • César Sampaio

    Aqueles Parentes Distantes

    Imagem: Gsé Silva/UOL
    Leia mais
  • Romário

    11/11

    Imagem: Arquivo/AFP
  • Cafu

    14/11

    Imagem: Laurence Griffiths /Allsport/Geety Images
  • Ronaldão

    18/11

    Imagem: Reprodução
  • Grafite

    21/11

    Imagem: Jamie McDonald/Getty Images
  • Ramires

    25/11

    Imagem: Antonio Scorza/AFP
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