Pela alma do negro

Icônico ativista, Oswaldo de Camargo fala sobre o legado em nome de praça na cidade natal e o filho Sérgio

Shel Almeida Colaboração para Ecoa, de Bragança Paulista (SP) Raphael Aguiar/Arquivo pessoal

O poeta e jornalista Oswaldo de Camargo está feliz. Aos 84 anos, o icônico militante do movimento negro finalmente será reconhecido pela cidade em que nasceu. Bragança Paulista dará o nome dele a uma praça. A homenagem, que ele classifica como vitória dos pobres, faz com que deixe de lado as reservas e converse com Ecoa sobre assuntos tão familiares e, ao mesmo tempo, tão espinhosos. Oswaldo é pai de Sérgio Camargo, o atual presidente da Fundação Palmares, que já chamou o movimento no qual o pai militou por meio da literatura de "escória maldita".

"Eu estou sabendo muito bem que há bastante ruído a respeito do meu nome, por diversos motivos. Alguns por vias sinuosas, como a repercussão em torno do meu filho à frente da Fundação Palmares, que é um caso político. Muita gente tem me procurado para dar entrevista, mas tenho negado quase todas elas", diz.

Quando Oswaldo fala da infância, é impossível não comparar a proximidade do pai, com quem caminhava descalço até o trabalho, com o distanciamento político do filho, cuja postura controversa ganha os holofotes, sobretudo por ir na contramão de sua trajetória.

Há um ano à frente do órgão responsável por ações e políticas públicas em favor da cultura afro-brasileira, Sérgio tem causado espanto e indignação. Espanto, por seu discurso nada se assemelhar ao de Oswaldo. Indignação porque, alinhado ao Governo Bolsonaro, vem desmontando o trabalho realizado pelo órgão desde sua fundação, há 32 anos.

Enquanto isso, Oswaldo será homenageado com honraria que nunca imaginou receber. Também não passou por sua cabeça que um filho chegaria à Fundação Palmares. O feito traz um misto de orgulho e receio por um possível confronto.

Independentemente do pensamento político dele, é uma coisa extraordinária. E, de repente, eu tenho um filho que, praticamente, não sou eu na questão ideológica. Na verdade, meu filho não tem nada a ver comigo nessa questão de ideologia. Eu sou um homem ultra interessado pela história do negro. A única coisa que torço é que esse processo de apagar essa história da qual eu faço parte não chegue tão longe [a ponto] que eu seja obrigado a atuar também politicamente, em confronto. Eu não quero me confrontar. Mas eu espero que não aconteça um momento em que seja necessário, como escritor, confrontar-me com o que está acontecendo na fundação.

Oswaldo de Camargo

Um outro Brasil

Oswaldo perdeu pai e mãe muito cedo. Aos seis anos já vivia no Preventório Imaculada Conceição, em Bragança Paulista, que recebia e amparava filhos de tuberculosos. Apesar da tragédia familiar, ele tem consciência que viver ali foi o que possibilitou receber educação e se tornar escritor. Antes disso, levava uma vida miserável.

"Existem os pobres e existem os subpobres. Meu pai não era um pobre, meu pai era subpobre, estava abaixo da pobreza. Entende a diferença? Há uma sutileza aí. Então, é alguma coisa, de fato, extraordinária, um subpobre ter um filho que, após 70 anos, é homenageado por uma praça. Mas a guinada na minha vida se deveu a uma tragédia familiar, a morte da minha mãe, que cortou o meu caminho de ser mais um herdeiro do analfabetismo, apanhador de café. Entrando no Preventório, eu aprendi a ler e segui meu caminho".

Para Oswaldo, a educação, no entanto, o tirou de um caminho traçado para que negros trilhassem.

"O escravo, no geral, não tem memória, não tem passado, não tem futuro. Está mais perto de ser uma coisa do que de um ser humano. E esse escravo ia gerar o quê? Outros analfabetos destinados a continuar a mesma história. A minha história está fora do padrão. Não se pode ver nela ou na do meu filho que está na Fundação Palmares algo comum no meio negro. Se os pretos egressos da escravidão tivessem sido ensinados a ler, a história do Brasil seria bem diferente."

Após ser revisor de "O Estado de São Paulo" e redator e resenhista literário do "Jornal da Tarde", Oswaldo estreou na literatura com o livro de poesias, "Um Homem Tenta Ser Anjo", em 1959. Três anos mais tarde, debutou na prosa, com "O Carro do Êxito'', de onde saiu o conto "Negro Disfarce" que agora o escritor lança como novela de autoficção pela Ciclo Contínuo Editorial.

Em 1978, Oswaldo fez parte da histórica primeira edição dos "Cadernos Negros", publicação que uniu jovens estudantes e intelectuais afrobrasileiros em uma resistência pacífica ao regime militar. Ali, ele era o "elo de gerações" entre os mais jovens e os que já integravam o Movimento Negro havia décadas.

Em 2021, a Companhia das Letras relançará "15 Poemas Negros", de 1961, o já mencionado "O Carro do Êxito", e a novela "A Descoberta do Frio", de 1979.

Larissa Souza Larissa Souza

Praça com nome de preto na cidade de coronéis

Quando lançou sua autobiografia "Raiz de um Negro Brasileiro", em 2016, Oswaldo correu atrás da Universidade São Francisco, em Bragança Paulista, pois queria que a cidade onde nasceu conhecesse sua obra. Agora, é o município que recorre a ele. O garoto que nasceu na Fazenda Sinhazinha Félix, em 1936, e viveu no Preventório Imaculada Conceição, dos 6 aos 10 anos, após ficar órfão, vai ser nome de praça.

O local, que se chamará Praça da Poesia Poeta Oswaldo de Camargo, está em construção e será inaugurado em março. A construção é feita próxima ao trajeto de 8 km que ele percorria descalço junto do pai e do irmão para chegar até a fazenda onde colhiam café. A praça fica no Taboão, bairro na beira do lago de mesmo nome que é o cartão postal da cidade e que abriga inúmeros condomínios de classe média alta.

A votação na Câmara de Vereadores que escolheu o nome do escritor para a Praça da Poesia foi unânime. Ele também recebeu o Cartão de Prata, honraria dada a ícones do município. Além de ser a "terra da linguiça", Bragança Paulista se autodenomina "Cidade Poesia", por isso criou uma praça com essa referência.

"É significativo também que escolham um poeta, sobretudo um poeta negro, para dar o nome a uma praça em uma cidade onde boa parte das ruas centrais levam nomes de coronéis", reflete.

Duas das principais vias da cidade levam o nome de membros da família Leme, das mais tradicionais do município. Além das ruas Cel. Teóphilo Leme e Cel. João Leme, a região central possui a rua Cel. Leme e a Praça Raul Leme, onde fica a Catedral.

Ainda assim, antes mesmo da abolição da escravatura, Bragança Paulista abrigou um clube de alfabetização de escravos. Quase 140 anos depois, a subseção local da OAB criou a Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil e convidou Oswaldo para integrá-la. A comissão, diz o poeta, "é continuação do que houve em 1881".

Nunca supus que minha cidade iria me prestar uma homenagem, sobretudo uma homenagem desse porte. No começo, fiquei meio anestesiado. Passado o espanto, fiquei muito feliz! Bragança teve, por muito tempo, fama de ser uma cidade que restringia muito a presença do negro. Dar, neste momento, o nome de um negro a uma praça é alguma coisa histórica.

Oswaldo de Camargo

O garoto que queria ser padre

Para ele, há duas formas de escrever sobre o negro. "Eu faço literatura negra, que é aquela na qual o próprio negro revela sua alma, sua relação com a vida. Por outro lado, a literatura negrista é produzida por autores não negros, que falam a respeito do negro, a partir do olhar de fora. Nesse caso, destaco a obra de Coelho Neto e Jorge Amado."

A compreensão de sua negritude e a necessidade de escrever sobre isso não apareciam em seus primeiros textos, admite.

"Naquela época, eu não sabia o que era racismo, a despeito de eu já ter passado por uma situação de preconceito. Eu ainda não tinha a experiência de negro, mas a de um menino que era educado por padres holandeses."

Aos 13 anos, o menino queria seguir a carreira religiosa, mas foi recusado por diversos seminários que não aceitavam crianças negras. O fato chocou os europeus, mas só foi notado como discriminação racial por Oswaldo tempos depois. "Mesmo isso tendo causado uma crise, praticamente uma depressão, a palavra racismo ainda não transpareceu", recorda.

Apesar da pobreza e exclusão social na infância, ele só percebeu que havia algo errado na juventude, quando passou a conviver com outras pessoas negras. O divisor de águas, conta ele, foi um anúncio de um baile na Associação Cultural do Negro.

"Aquilo foi um solavanco. Era a primeira vez que eu me dava conta de que existe alguma coisa que delimita o território entre brancos e negros. Foi aí que começou a minha descoberta das possibilidades que eu tinha como escritor negro".

Shel Almeida/UOL Shel Almeida/UOL

A arte de preencher vazios

De leitor ávido que se via representado pela figura do poeta simbolista Cruz e Sousa, Oswaldo de Camargo se tornou, ele próprio, um escritor negro considerado "elo de gerações" por conectar passado e presente.

"Eu tive muita sorte. Logo que percebi minha negritude, passei a conviver com negros históricos, que tinham feito a Frente Negra, na década de 1930, que tinham feito a Imprensa Negra. Tirando minha família, essa é a primeira convivência que eu tenho com grupos negros. De repente, tenho diante de mim um mundo o qual nunca imaginei! Para mim, a literatura foi uma espécie de preencher vazios, preencher perdas, preencher possibilidades que eu não teria se não fosse escritor. Eu percebi que, com a literatura, eu posso desempenhar um papel no mundo".

Para Oswaldo, essa missão é desmontar a ideia construída pela escravidão de que negros não possuem alma, transcendência ou beleza.

A grande proeza do Ocidente foi conseguir que o negro não mostrasse sua alma ou não reconhecer que o negro tinha uma alma. A partir do momento que se reconhecia que o negro tem alma, ela já não tinha a condição de escravo. Eu trabalho muito com o invisível. Me insiro no movimento negro com a literatura, uma das maneiras mais eficazes de mostrar a alma do negro.

Oswaldo de Camargo

Reprodução

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