Tudo tão desigual

Pandemia escancara desigualdade e a urgência de reduzir o fosso entre minoria rica e maioria pobre

Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo

Tudo segue igual no país desigual. Todo ano a ONU apresenta os dados de desigualdade social no mundo, e o Brasil está entre os líderes desse ranking. Países africanos são seus companheiros, e os árabes são os grandes ausentes na lista (as nações petrolíferas não gostam de divulgar esse dado constrangedor).

Mesmo com as políticas de distribuição de renda deste século, a extrema concentração continuou intocada no Brasil: os miseráveis passaram a pobres, mas o 1% mais rico detém mais de 20% da renda nacional, com picos de 30% nos últimos cem anos.

Após cinco anos de crise econômica, a pandemia de 2020 reforçou ainda mais o tema como prioridade, afinal, boa parte da população não conta com habitação, saúde e trabalho decentes para encarar a catástrofe biológica.

E o colapso acontece em um planeta que está ficando cada mais desigual. Nos últimos 40 anos, a concentração de renda só cresceu com a globalização, o fim dos regimes comunistas e a guinada conservadora em países como EUA e Reino Unido.

Tanto é assim que atualmente nenhum país tem maior desigualdade que o mundo como um todo: a África do Sul, campeã mundial nesse quesito, tem índice menor que o global, mostrando a disparidade entre os continentes. O país, por ironia, viu crescer a desigualdade após o fim do Apartheid - com o fim dos boicotes internacionais, o mercado se abriu e uma elite exportadora se beneficiou. No Coeficiente Gini, indicador que calcula a distribuição de renda dentro de uma população, a nação africana crava 0,63, contra 0,67 do planeta - esse índice vai de 1 para desigualdade total até 0 para a plena igualdade.

Teórico célebre por analisar a desigualdade atual, o sociólogo francês Thomas Piketty aponta que a razão disso é que, nas economias de mercado, os rendimentos de quem já detém riqueza (juros ou lucros) tendem sempre a serem maiores que o crescimento da economia como um todo. Isso se transforma em uma máquina de gerar desigualdade. Entre outras ações, ele propõe impostos progressivos (quem ganha mais paga mais) para diminuir esse abismo.

Seu colega brasileiro Pedro Ferreira de Souza escreveu o livro "Uma História da Desigualdade", que estuda o assunto a partir das declarações de imposto de renda desde 1927, e diz que não existe fórmula mágica para resolver o problema. "Uma medida inicial seria acabar com as deduções e os rendimentos isentos no IR. Mas seria preciso uma combinação de políticas para reduzir a desigualdade sem traumas. De qualquer forma, seria algo inédito na história mundial, afinal, processos de nivelamento de renda até agora só se deram em situações extremas como guerras e revoluções", afirma o sociólogo.

Para o economista Mário Theodoro, especialista em políticas públicas e questão racial, isso é ainda mais difícil porque "a sociedade brasileira é viciada em desigualdade". "O brasileiro faz cara de paisagem em relação à miséria. Favela, que é uma habitação indigna, virou símbolo nacional. As pessoas acham natural que um compatriota viva catando lixo na rua, quando deviam sentir vergonha", sentencia.

Concentração inercial

Quem observa o histórico da renda do 1% mais rico no Brasil nas últimas dez décadas pode perceber que ele subiu e oscilou, mas sempre se manteve bem lá no alto, em comparação com países desenvolvidos. Após levantar, calcular e comparar os dados fiscais de 1927 até 2015, Souza conclui que os períodos de democracia e ditadura tiveram uma influência nisso.

"Os períodos autoritários são mais efetivos para piorar a desigualdade. Isso se vê no Estado Novo, quando há também a influência da Segunda Guerra Mundial, e também nos primeiros anos após o golpe militar de 1964. O efeito das democracias é ambíguo, mas há processos de redução, afinal, são épocas em que as decisões são mais negociadas e há pressões diversas", afirma Souza. Isso se viu no intervalo democrático de 1945 e 1964, mais acelerado nos anos 1950 sob efeito também da industrialização, urbanização e sindicalização da época, e também no período atual.

Mas a equalização recente — apontada após o Plano Real, o crescimento econômico e os programas de renda no século 21 — é bem menor vista pelos dados do imposto de renda do que pelas PNADs (Pesquisa Nacional de Amostragem de Domicílios). Isso porque rico não costuma contar tudo o que tem quando o pesquisador bate na porta, como fazem os integrantes das outras classes. E o imposto de renda é mais próximo da realidade, afinal, há controle e punição em cima do que é declarado.

"O Brasil nunca teve Estado de bem-estar nos moldes europeus. Teve sim um Estado desenvolvimentista, que prega: queremos crescimento e depois tudo se acerta", diz Theodoro. O exemplo mais claro dessa linha foram os economistas que serviram o regime militar, como Delfim Netto e Carlos Langoni, que defendiam a tese de "primeiro o bolo crescer para dividir". A massa cresceu e quem abocanhou a maior parte foram os mesmos de sempre.

A distribuição de renda, como no Bolsa Família dos governos petistas, promoveu a inclusão social, movendo populações da miséria para a pobreza. O crescimento econômico alavancou pobres para a classe média no período de 2005 a 2014, mas não mexeu substancialmente no desproporcional acúmulo no topo.

"A transferência de renda precisa ser algo maior do que o Bolsa Família, que chegou a usar 0,5% do orçamento nacional. Pode atingir 2%, como nos países ricos. Dá até para chegar a 3%. As pessoas estão mudando suas percepções desses programas. Na pandemia, a renda emergencial aprovada pela Câmara segurou um colapso social que parecia inevitável", analisa Souza.

Além disso, o auxílio emergencial garantiu um crescimento da aprovação do atual governo nas camadas baixas, o que cria um dilema para sua equipe econômica, que defende uma agenda ultraliberal, bem ao gosto da camada alta - sua proposta de reforma tributária é um exemplo disso, afinal, não mexe com os impostos diretos, como o de fortunas ou heranças, mas muda os impostos indiretos, como os de consumo, que atingem pobres e ricos na mesma proporção.

"Quando eu vejo liberais econômicos defendendo a renda básica, fico temeroso porque o que eles querem é o desmonte dos serviços públicos para vender para empresas de saúde e educação privadas. É o modelo norte-americano em que tratar uma unha encravada no hospital sai caríssimo. O que era uma política social vira um grande negócio", critica Theodoro.

Sem nivelamento

"No Brasil, tudo muda para ficar igual. O Estado se organiza para garantir a desigualdade. Aboliram a escravidão: um ano depois caiu a monarquia e subiu a república em 1889. O Brasil tem o primeiro plano de reforma agrária e vem o golpe militar de 1964. Criam-se políticas de ajuda aos pobres e vem o impeachment de 2016. As regras que governam o país não foram criadas espontaneamente. E não vão acabar dessa forma também." Assim sentencia Sidney Chalhoub, historiador que atualmente dá aulas na Universidade de Harvard (EUA).

Seu colega austríaco Walter Scheidel, professor em Stanford (EUA), afirma que a concentração de renda é a regra (e não um desvio econômico) desde os primórdios das civilizações e nunca caiu de forma pacífica. Um caso clássico é a revolta de escravos na Roma Antiga liderada por Espártaco e massacrada pelo general Crassus, que pagou mercenários e ganhou monopólios depois da vitória e da expansão do território.

Para Scheidel, há eventos, isolados ou combinados, que ele chama de "quatro cavaleiros niveladores": Estados em colapso, revoluções transformadoras, grandes guerras ou pandemias catastróficas.

O século 20 teve tudo isso, e viu muitos países reduzirem suas concentrações da riqueza. As duas guerras mundiais, além da destruição patrimonial e comercial, geraram sistemas de impostos progressivos, porque havia o consenso à época que os ricos tinham que contribuir mais para a reconstrução das nações.

Dessa forma, após a Segunda Guerra Mundial, países europeus, EUA e Japão tiveram um nivelamento na distribuição do dinheiro e um aumento da proteção do Estado, e isso se prolongou até a década de 1980 no período conhecido como "os 30 anos gloriosos". Os governos de Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Reino Unido) marcam a inflexão para a redução de impostos dos afortunados e reconcentração da renda no topo.

A globalização e o fim do bloco comunista continuaram a deslocar o dinheiro para o topo da pirâmide. Tanto é que hoje o perfil da Rússia está mais próximo dos EUA do que de Ucrânia e Belarus, ex-companheiras de URSS, que são os países mais igualitários pelos dados da ONU.

Na China aconteceu algo semelhante. As classes médias asiáticas, principalmente a chinesa, aumentaram seu tamanho e sua riqueza pelo deslocamento da indústria mundial para a região com a globalização.

Mas teve um grupo que se beneficiou ainda mais nesses últimos 40 anos: as elites ocidentais. A balança pendeu tanto para elas que está para surgir o primeiro trilionário da humanidade: Jeff Bezos, o dono da Amazon, deve atingir essa condição em 2026, segundo projeções da revista "Forbes".

No Brasil, foi diferente. Pelos estudos de Souza, a concentração de renda por aqui já era um pouco maior que nos países ricos em 1927, quando o imposto de renda é instituído no país. Esse dado pode ser apontado como herança do período escravocrata. A diferença, porém, aumentou ainda mais com o conflito de 1939 a 1945 e se manteve extrema no século 20 até chegar aos dias de hoje.

"A pandemia deu um novo olhar, e o brasileiro voltou a se chocar com tanta desigualdade. Mas não foi uma catástrofe que faça mudar esse quadro como uma guerra", opina o sociólogo.

A questão racial é central. Não existe projeto de país sem acabar com desigualdade e racismo. O Brasil vai sempre patinar no seu progresso.

Mário Theodoro, economista, especialista em políticas públicas e questão racial

A desigualdade tem cor

"A desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática." O cientista político José Murilo de Carvalho foi enfático no livro "Cidadania no Brasil".

A ligação é perceptível em outros países com passado colonial e escravocrata, mas é mais evidente no país que foi o último a abolir o trabalho escravo no Ocidente. Os dados do IBGE que mostram que as mulheres negras ganham metade do salário dos homens brancos e enfrentam o dobro na taxa de desemprego que eles são provas bem atuais dessa herança.

"O racismo estrutural acaba por naturalizar a pobreza", completa Theodoro.

Chalhoub aponta um momento-chave na formação do Brasil: "Em 1831, o parlamento brasileiro proibiu a importação de escravos, mas a elite cafeeira adotou o contrabando de mão-de-obra, com a entrada ilegal de 750 mil africanos por portos clandestinos, com a conivência do império. É o berço da corrupção no Brasil. E era um crime comum somado a um crime contra a humanidade. Nessa época, as décadas de 1830 e 1840, era mais barato comprar um escravo do que mantê-lo. Por isso, não é de estranhar a atual indiferença em relação aos jovens negros assassinados e as populações negras afetadas pela pandemia."

Para Chalhoub, as políticas afirmativas não começaram com as cotas neste século para as populações negras e indígenas. "Pagar a passagem e dar parcelas de terras foi a primeira ação afirmativa do Brasil, e quem se beneficiou foram os migrantes europeus no século 19", afirma o historiador.

Já Theodoro lembra que a primeira cota universitária foi a chamada "lei do boi", que esteve em vigor de 1968 até 1985, e estipulava 50% das vagas nas faculdades rurais para quem vivia no campo. "Como só os filhos dos grandes proprietários podiam estudar, essa cota beneficiou quem já era privilegiado e não precisava dela", comenta. Esse exemplo mostra como a concentração de renda se sedimenta por um emaranhado de legislações e ações do Estado favorecendo determinados grupos.

A conta dos ricos

Para os estudiosos, a desigualdade extrema é ruim em vários aspectos. Atrapalha o crescimento econômico porque afasta grande parte da população das oportunidades de estudo e trabalho e, consequentemente, reduz a mobilidade e a dinâmica de uma sociedade. E prejudica a democracia porque os ricos acumulam um peso muito grande para financiar campanhas e pressionar por leis que mantenham o sistema de poder.

Souza aponta que, no meio de tantas influências na distribuição de renda, a única tendência de longo prazo para a igualdade nos últimos 50 anos foi o aumento das mulheres no mercado de trabalho. Já o economista sérvio Branko Milanovic, especialista no assunto, autor do livro "Desigualdade Global" e professor na City University of New York, destaca três fatos para a leve diminuição da concentração em duas décadas no Brasil: o aumento do salário mínimo, da média de anos nas escolas e os programas de transferência de renda. Por seu lado, Piketty criticou os governos petistas (2003-2016) por não terem feito uma reforma tributária com impostos progressivos para diminuir a desigualdade.

Só uma série de leis e políticas podem reduzir o histórico desequilíbrio brasileiro. Diferentes programas de distribuição de renda possibilitariam principalmente que crianças e jovens de famílias carentes consigam estudar e ter mais oportunidades de trabalho. Políticas afirmativas diminuíram o fosso econômico entre brancos e outras etnias dentro da população. Impostos com alíquotas progressivas sobre renda, patrimônio, propriedades e herança aumentariam a arrecadação do governo para bancar educação e saúde pública de qualidade para uma maior igualdade de condições entre os brasileiros.

Além disso, seria necessário, segundo Piketty, um maior controle sobre os fluxos financeiros internacionais, afinal, aumento de imposto local vem acompanhado de evasão fiscal para o exterior. Ele defende um registro internacional das transações e um combate aos países que são paraísos fiscais. "A pressão sobre os bancos suíços têm aumentado nos últimos tempos, e é possível aumentar o cerco sobre outros paraísos fiscais porque há um consenso quanto a isso. Já um imposto global ou uma maior cooperação internacional sobre as finanças é mais improvável porque exigiria maior coordenação entre os países e vivemos um momento com o fortalecimento de nacionalismos", argumenta Souza.

As regras do jogo

Duas notícias mostram como a desigualdade brasileira se comportou nessa pandemia. Por um lado, o país chegou em maio ao recorde de ter mais da metade da população adulta sem emprego. Por outro, os 42 bilionários nacionais, listados no ranking da revista norte-americana "Forbes", acumularam mais US$ 31 bilhões (R$ 168 bi) em suas contas entre março e julho de 2020.

"Os efeitos da Covid-19 são bem diferentes nos Jardins e na Cidade Tiradentes, também entre São Paulo e o Nordeste. A desigualdade cria essa esquizofrenia movida a juros: uns se endividam e comprometem suas vidas pagando taxas altas, enquanto outros vão pegando os centavos de muitas pessoas e transformam em bilhões no topo da pirâmide", sintetiza a economista Gabriela Mendes, que dá aula de educação financeira utilizando as letras do grupo de rap Racionais MCs.

Ela sabe que ações individuais não vão resolver um problema de dimensão estrutural, mas vê na juventude cada vez mais interesse em entender as regras do jogo, até para saber quais devem ser mudadas. "As novas gerações são mais questionadoras. Os jovens querem uma perspectiva de liberdade, não aceitam as estruturas que encontraram. Aprender sobre o sistema desperta ainda mais o senso crítico. As pessoas se dão conta dos privilégios, e o sistema de tributação é um deles. Acho que essa conscientização é um caminho sem volta", aponta a economista.

No final das contas, a extrema desigualdade não é econômica, muito menos natural. Ela é política e histórica. E a boa notícia: ela pode e deve ser mudada.

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