Paola pela terra

Chef, empreendedora e ex-jurada do MasterChef, Paola Carosella defende outro modelo de produção de alimentos

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Julia Rodrigues/UOL

Para além do trabalho como cozinheira ou da persona do MasterChef, Paola Carosella se define como alguém envolvida na sociedade brasileira, na qual se estabeleceu há mais de 20 anos, e nas responsabilidades que viver nela implica.

Esse envolvimento se mostra em sua participação recente no Ato pela Terra, que reuniu celebridades em Brasília para protestar contra a política ambiental do governo Bolsonaro. Mas também na parceria que ela mantém há anos com a Cooperapas (Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo), da região de Parelheiros; em sua coordenação do curso de assistente de cozinha do projeto social Cozinha e Voz, e até no conteúdo do seu canal de receitas no YouTube.

De sua casa em São Paulo, Paola falou a Ecoa sobre agricultura familiar, consumo de carne, da riqueza e da necessidade de regeneração de territórios ocupados por populações tradicionais e do lugar da comida na construção de um mundo mais justo.

Ecoa - Você participou do Ato pela Terra em Brasília. Como a defesa do meio ambiente e dos direitos dos povos indígenas se conecta com o que comemos?

Paola Carosella - Está tudo relacionado: meio ambiente, terra, território indígena e quilombola, agricultura familiar, pequeno agricultor, agroecologia, agronegócio. Uma coisa impacta a outra. A gente tem um Brasil que nos últimos anos favoreceu muito mais um único modelo de agricultura, então faz sentido que eles venham dizendo que precisam de mais terra, de mais agrotóxicos, de mais fertilizantes.

A pauta ambiental não tem que ter partido, o ambiente não vai escolher um lado para se foder e o outro vai manter bonito. Então faz dela uma pauta do centro, faz dela uma pauta de direita.

Você cresceu tendo contato com a horta que as mulheres da sua família cultivavam e os animais que seu avô caçava e pescava sendo preparados em casa. Como isso moldou sua relação com o alimento e de que maneira lhe transformou na cozinheira que você é hoje?

Eu não tinha noção da importância que isso tinha, era normal pra mim. Cresci muito perto do lugar de onde a minha comida saía. Depois fui entrando na cozinha, fui comprando de fornecedores, trabalhando em restaurantes que estavam muito perto das áreas de agricultura e a gente sabia de onde o ingrediente vinha, a gente sabia o nome de cada fornecedor.

Depois cheguei em São Paulo, uma cidade gigantesca, e fiquei muito impressionada com as distâncias. Era impossível saber quem plantava o quê, de onde as coisas vinham. Eu perguntava para o fornecedor, mas ele não era mais do que um atravessador do Ceagesp. Queria ver quem planta e colhe aquilo que eu cozinho, aí comecei a trabalhar com agricultura familiar em Parelheiros. E quanto mais perto eu fui chegando dessas famílias, da terra e das pessoas, aos poucos também fui crescendo como figura pública. As pessoas iam me chamando para eu abraçar causas que envolviam a terra e cada vez fui aprendendo e me envolvendo mais.

Acredito de verdade que a gente não pode tirar das pessoas a possibilidade de produzir seu próprio alimento e quanto mais a gente fortalece um sistema de produção só de agronegócio, menos terra vai ter [para essa produção] que já tem muito pouco. É um sistema muito injusto e desequilibrado.

Paola Carosella, chef e empreendedora

Julia Rodrigues/UOL

Como esse encontro com os produtores da Cooperapas de Parelheiros impactou o seu trabalho e o dessas famílias?

Parelheiros é uma Área de Proteção Ambiental, região que tem muita agroecologia e agricultura orgânica e também [cultivo] tradicional. Tem um cinturão verde muito grande e muito perto de São Paulo, que não se conhece porque também as políticas não fortalecem esse sistema de agricultura. Esse é um pouco o meu grito: o Brasil precisa olhar para outras formas de produção de alimento.

Os pequenos agricultores não têm suporte nem infraestrutura, eles não têm irrigação, estufas ou tratores. Tudo é muito mais difícil. Se chover muito, eles vão perder a colheita, se não chover o suficiente, eles também vão ter problemas. Do meu lado, eu me comprometi a comprar deles independente do que tivessem e mudar o cardápio para tentar colocar essas coisas. Do lado deles, o compromisso foi de tentar se organizar e aos poucos aumentar a quantidade de entregas semanais, que no começo era uma e hoje são três.

Sei que você não gosta do título de "rainha da carne" que lhe deram. Qual sua relação com o consumo de carne hoje?

Eu como muito pouca carne. E só como de um fornecedor, porque eu sei que ele é quem cria, abate e porciona. Não é uma vaca que não sei de onde vem, que vai parar num frigorífico em que ninguém sabe de nada. Nos meus restaurantes também se serve somente um corte de carne desse fornecedor.

Tem um movimento muito grande de não comer carne e eu acho que faz sentido pela forma como se produz gado no Brasil. Mas o problema foi depositado na vaca como se comer carne fosse realmente nada sustentável. A vaca em si produz uma das melhores proteínas que o ser humano pode consumir, da forma mais simples possível: ela come pasto. A toxicidade da carne de vaca e da maioria das carnes animais vem pelo modelo de criação e alimentação à base de cereais, que não é o jeito que a vaca tradicionalmente se alimenta.

Fora de casa eu não como, e sei quão elitista isso é. É surreal que a carne seja tão cara, sendo que ela está sendo feita desse jeito.

Nesse contexto, é possível pensar numa alimentação saudável e sustentável que seja também acessível para toda a população?

Não pode ser algo que dependa de nós. A essa altura, as coisas estão tão ruins que ou as políticas mudam ou a gente já não vai ter mais autonomia de decisão. A gente não está escolhendo, já chega tudo pré-escolhido. Se você vai num mercadinho periférico encontra ultraprocessados feitos com restos do agronegócio, de milho, de soja, de algodão, de papel, de cana, açúcares baratos, grãos baratos.

Eu nasci na periferia na Argentina. Quando você ia no armazém, tinha ovos de galinha que produziam por perto, tinha o cara que passava para entregar leite na porta da tua casa, porque ele tinha vacas. Estou falando de 40 anos atrás, e o que mudou é gigantesco.

Está tudo relacionado, nem se trata somente do acesso ao alimento. Quanto mais terras a gente tiver com monocultivos, mais terras secas e impermeáveis a gente vai ter. Mais alagamentos nas cidades, mais crise climática. Mais miséria, mais fome, mais insegurança, crise social e violência, porque as pessoas não vão ter o que comer.

Seus restaurantes também têm uma preocupação com diversidade e impacto social. Como crescer em termos de negócio mantendo esses valores?

Querendo. Só, simples assim. Se está na agenda, você faz acontecer.

O que você gostaria de mudar na indústria de alimentos e no setor de restaurantes para torná-los mais sustentáveis e socialmente responsáveis?

Qualquer transição não vai acontecer da noite para o dia. O primeiro passo em uma sociedade e num país tão grande quanto o Brasil não pode ser apenas um desejo individual. Tem que vir de cima. Ou seja, as políticas deste país precisam mudar. Óbvio que existem empreendedores com impacto social e que querem fazer as coisas super bem, tento ser um deles. Mas a competição é desleal, você tenta fazer de um jeito mas está liberado o vale-tudo.

O país precisa de leis mais justas, que não beneficiem apenas um lado, mas também o pequeno produtor, as comunidades, a cultura. Um governo que olha para a gastronomia como cultura e para as pessoas como riqueza já muda as leis.

Também é preciso colocar em prática leis que já existem. Mas há esse projeto de necropolítica de abandonar à sua própria sorte para depois falar 'olha, a gente quis deixar essa comunidade quilombola aqui, mas eles não fazem nada'. Esse projeto de governo quer que eles não sejam autossuficientes, que eles saiam da terra, se empreguem em trabalhos miseráveis, percam o seu pertencer, a sua comunidade e as suas raízes e que essa terra seja apropriada para plantar soja.

Os apps de delivery foram fundamentais para a sobrevivência de muitos restaurantes na pandemia. Ao mesmo tempo, temos o problema das condições precárias em que muitos desses apps colocam seus entregadores. Quais soluções você enxerga para esse problema?

Se a gente não tivesse tido acesso aos aplicativos, teríamos morrido como restaurante e teríamos deixado mais de 400 pessoas na rua. Não é desculpa para nada, mas acho que é um balanço. A gente usou e tem parceria com os aplicativos. O que eu vejo é que eles estão mudando e se organizando. Mas não sou a favor de que as empresas se regulem, a regulamentação tem que ser lei. Se não existe a lei e o objetivo das empresas é lucrar, elas vão lucrar dentro das regras do jogo. Regula então! Sou super a favor.

Não existe o campo sem a cidade, nem a cidade sem o campo. A gente precisa de um mapa entremeado entre campo e cidade, de pequenas cidades rodeadas de áreas agrícolas. Então, a comida é o centro: da destruição e da reconstrução.

Paola Carosella, chef e empreendedora

Julia Rodrigues/UOL

Qual o futuro desses arranjos?

Eu, Paola, acho hoje que nós não podemos pedir que todo mundo cozinhe em casa o tempo todo. Seria incrível, mas... Incrível entre aspas, porque eu conheço muitas mulheres que querem se libertar desse papel onde elas foram colocadas e que não querem ficar em casa cozinhando o dia inteiro. Não me sinto em condições de falar para essas mulheres: você não deveria usar o tempo para estudar ou para brincar com seu filho, você tem que ir para cozinha ralar mandioca.

Viver em uma cidade é completamente diferente de viver no campo. Por isso insisto tanto que a gente precisa fortalecer a vida do campo, para que exista uma migração. Se a gente começa a valorizar a vida no campo, a riqueza da agricultura e da vida saudável do campo, cada vez mais teremos neoagrários, essas famílias que têm saído da cidade e começado uma vida rural.
E as cidades precisam se despopular, não podem receber mais gente. E, para espalhar mais pessoas no campo, a gente precisa de uma reforma agrária. Tem que ter uma proposta política de redistribuição de terra e ensinar as pessoas a produzir seu próprio alimento.

E aí volto para os aplicativos e para a vida da cidade. A vida da cidade tem que deixar de existir? Alguns radicais acham que sim. Eu acho impossível, porque aí você mexe com os desejos individuais. Conheço muitas mulheres brilhantes que não estão nem aí para plantar mandioca e que não têm que fazer isso. E eu acho que elas podem pedir seu delivery e que está tudo bem, na medida em que esteja tudo bem para o entregador, para quem cozinha essa comida. Não acho que a gente tenha que aniquilar o que existe, mas melhorar e regularizar, está tudo muito desequilibrado.

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