Sobre tons

Com fama internacional, escritor gaúcho Paulo Scott quebra o tabu e sugere saídas para o colorismo

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo (SP) Daniel Marenco/Folhapress

Em 2022, o livro "Marrom e Amarelo", do escritor gaúcho Paulo Scott, 55, foi elogiado pelo "New York Times" e "Guardian". Em março, a obra foi indicada para o maior prêmio literário de língua não-inglesa no mundo, o The International Booker Prize. A história narra a vida do negro de pele clara Federico, irmão de um homem negro de pele escura, Lourenço. Um é "amarelo" e o outro é "marrom". "A discussão do colorismo é um tabu no Brasil", diz Scott para Ecoa sobre o tema da obra.

Segundo o escritor, o colorismo é uma ferramenta do racismo. Na prática, ele explica que o colorismo distingue pessoas negras de acordo com a tonalidade de pele, textura do cabelo e traços físicos. O livro narra um cenário hipotético em que o governo avalia um programa de computador para distinguir quem pode ser considerado negro para receber cotas em universidades. Federico, então, retoma lembranças da vida ao lado do irmão, da família e a diferença imposta entre eles.

Na vida real, Scott, autodeclarado negro de pele clara, é irmão de um homem negro de pele escura. "O colorismo atribui níveis diferentes de estigmatização", diz. Quanto mais escuro, maior a propensão à violência racista. "O colorismo divide as pessoas para que elas briguem entre si, não se unam e, para assim, dominá-las", diz. Mas há maneiras de bater de frente e construir uma sociedade melhor. "São grupos de pessoas com a determinação maravilhosa de saber o quão importante é ser feliz", diz.

Daniel Marenco/Folhapress

Ecoa - Você poderia me descrever em quais situações você sente uma diferença entre você e seu irmão?

Paulo Scott - Na escola, no restaurante. A possibilidade de andar feito um hipster branco esfarrapado na USP, em Higienópolis [bairro rico de São Paulo]. Posso andar com o cabelo sem arrumar, camiseta rasgada. É uma possibilidade que meu irmão não tem. Posso sair sem identidade no bolso. Andar nos bairros de classe média-alta sem despertar a segurança, sem alguém chamar a polícia. A pessoa de pele clara não entende o que é isso, as pessoas ditas brancas do Brasil não entendem. Meu irmão não pode aproveitar o carro de classe média-alta sem ser estigmatizado pela pele escura.

Como e quando você percebeu a diferença entre vocês?

Nossos primos por parte de mãe faziam brincadeiras. Eles usavam o preconceito racial para brincar. Tenho dois primos com pele e olhos claros. Meu irmão era o mais retinto entre nós. A forma mais aguda de diferenciação entre nós foi na escola. Você percebe uma diferença no tratamento. Por isso, tenho uma empatia diferente por pessoas negras de pele escura. Uma pessoa negra de pele branca costuma correr igual uma mariposa louca em direção ao clube branco.

A Sueli Carneiro disse somos todos negros no Brasil e isso é uma potência. É uma consciência de enfrentamento dessa divisão do Brasil. O ideal é que não houvesse divisão pela cor da pele ou fenótipo no nosso país. Mas há.

Paulo Scott, escritor

Como você se percebeu negro de pele clara?

Durante muito tempo eu dizia que era mulato. No começo dos anos 2000, em uma palestra com Celso Athayde e MV Bill em Porto Alegre, me apresentei como mulato e ele [Celso Athayde] me interrompeu: me disse que eu era um homem negro. Tudo envolve linguagem. A juventude domina melhor a linguagem, um vocabulário, uma teorização muito mais sólida que facilita entender as coisas. Para mim, não mudou nada [pois já sabia que não era branco]. Foi uma questão de linguagem: quando ele me disse sobre a potência de se afirmar como um negro, um homem preto, ele me levou a um outro nível de engajamento [social].

O que causou essa mudança entre as gerações?

Políticas públicas do [governo] Luiz Inácio Lula da Silva. As leis de política afirmativa das cotas nas universidades. Os corpos negros vão para o espaço acadêmico para tirar o olhar preguiçoso, negligente da universidade branca que se achava tutora das questões sociais, enquanto mantinha seu privilégio branco. É uma situação parecida com a esquerda política esclarecida, capaz de denunciar o machismo, a homofobia, e nisso se diferencia da direita branca, mas ainda não tem condições de mudar o Brasil. Os corpos indígenas e negros é que podem resolver a desgraça da nossa desigualdade, uma desigualdade estimulada por uma elite preguiçosa, que só quer saber da destruição e eliminação, duas coisas que parecerm estar em nosso DNA.

Daniel Marenco/Folhapress Daniel Marenco/Folhapress

Você cresceu no Rio Grande do Sul, um estado que se vende como branco e europeu mas com um dos movimentos negros mais tradicionais no país. Como funciona essa estrutura racial no estado?

O racismo é tão cruel como em qualquer outro estado brasileiro. Muda só a aplicação. O racismo do Rio de Janeiro é também tremendo e cruel, já morei lá. O racismo do Centro-Oeste e Norte são horríveis. Na região Sul, porém, eu sinto que é mais explícito. Há menos pudor. É uma apresentação mais direta. O Rio Grande do Sul tem um aspecto interessante: é um estado machista, mas há um movimento feminista fortíssimo. É homofóbico, mas tem um movimento LGBT forte. É um estado racista, mas tem lideranças negras muito preparadas em Porto Alegre, em Pelotas etc. Eu vejo corpos negros na direção de empresas privadas em uma quantidade maior do que via no Rio de Janeiro. Tivemos o primeiro governador negro retinto. Há um espaço mais franco, menos sutil e menos aprimorado em seu encantamento [de convívio racial] do que, por exemplo, no Rio de Janeiro.

Mesmo assim, o Rio Grande do Sul teve casos de violência de forças de segurança contra pessoas negras. Você é professor de direito. Qual a interferência do colorismo nesse tipo de abordagem? Você já disse que seu irmão era abordado e você poupado.

Você tem uma cultura lavagem cerebral, de imposição a um discurso e uma ideologia na formação dessas polícias militares, né? É induzido o reconhecimento de pessoas de pele escura à ameaça potencial à ordem, né? E a nossa ordem brasileira é assassina. Se elimina pessoas com base na cor de pele e na tonalidade e se tenta tirar o direito dessas pessoas de esboçar alguma pretensão de dignidade. Há uma indução a esta mentalidade. É uma indução que se estende para o Ministério Público, empresários, médicos. Talvez o maior exemplo aconteceu nos aviões, quando se tinha um temor de ver corpos negros voando de avião. O temor é uma doença. O Brasil é guiado pelo medo. É guiado pela covardia da elite com medo de abrir espaço para construir uma nação e não só um lugar no planeta para ser saqueado pelas grandes famílias da terra, da indústria e da comunicação.

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Trecho de "Marrom e Amarelo" (2019)

"Não guardei na memória o que eu disse no início da minha fala, mas lembro quando, depois duns minutos, percebendo nos olhares deles que, feito eu, não tinham muita certeza do que estavam fazendo naquela comissão, atalhando a ritualística da primeira interação, respirei fundo, disse que eu só estava autorizado a me apresentar diante dos oito porque teve um dia, um implacável dez de agosto de mil novecentos e oitenta e quatro, que, apesar dos anos que se passaram, continuava girando dentro da minha cabeça, turbilhão num eterno tempo presente, um dia em que testemunhei e vivenciei, como nunca tinha testemunhado e vivenciado, toda a covardia da hierarquização das cores de pele praticada no Brasil"

'Marrom e Amarelo' ressalta a dificuldade de um projeto antirracista em qualquer escala

"New York Times"

O narrador de "Marrom e Amarelo" parece uma pessoa cansada. Como você se incentiva a pensar em um país melhor?

É importante olhar para os grupos que resistem. São grupos que não têm o direito de cansar. São grupos de pessoas com a determinação maravilhosa de saber o quão importante é ser feliz. É uma emancipação. Eu sempre enfatizo o entusiasmo das mulheres negras. Há uma lógica de terreiro, uma lógica feminina, que é de muita potência e consciência. Se fosse propagado o afeto das mulheres negras, da interação indígena uns com os outros e com o espaço, o Brasil, meu caro, ia ser outro. Observe os dois últimos governos com menos mulheres negras. Observe: há menos afeto onde há mais homens brancos.

E você tinha objetivo de ocupar um espaço quando decidiu cursar direito?

Eu queria fazer teatro ou arquitetura. Vi o esforço dos meus pais para ter uma ótima educação particular e vi que o direito os deixaria muito felizes. Eu já tinha um engajamento político, algo que cresceu em mim no ensino médio. Eu não sou um escritor engajado, mas entro em direito como alguém engajado. Pensei que no direito eu teria a desculpa de montar e construir um mundo melhor. Mas aí vi que direito não era isso tudo e um pouco pior. É uma relação de amor e ódio pelo direito, pois ele também pode ser uma ferramenta de emancipação, de auxílio à subjetividade do outro.

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