A professora extraordinária

Ela salvou crianças de grupos de extermínio, criou escola em casa e já educou mais de 30 mil jovens

Lílian Beraldo Colaboração para Ecoa em Brasília Gsé Silva/UOL

"Eu sou formada em Pedagogia pela USP [Universidade de São Paulo] desde os anos 70. Comecei a trabalhar em escolas como orientadora pedagógica, mas eu sempre era mandada embora logo por causa da ideia que eu tinha sobre educação. Eu não aceitava essa ideia de caixinha fechada. Depois da terceira demissão, eu falei: 'vou fazer na minha casa e vou trabalhar do meu jeito'.

Era 1972, e comecei a trabalhar com filhos de exilados políticos. Chilenos, argentinos, filhos de brasileiros e favelados. Tudo junto, dentro da minha sala, onde eu misturava todo mundo

Depois surgiram na favela os grupos de extermínio. E eles colocavam num cartaz, em um poste, quem ia morrer em sete dias se não saísse de lá. Eu estou falando de crianças de 12, 13 anos, nada mais que isso. E aí fui atrás, peguei essas crianças, ninguém queria esconder porque ou eles matavam ou eles deixavam paraplégico. Levei tudo para a minha casa.

A casa ficou pequena para tanta criança e jovem. Meu marido e eu compramos uma maior. Foi quando eu pensei 'não vou morar aqui, eu vou começar meu sonho de educação'. Fui morar de aluguel, peguei mais cinco amigas da USP e começamos a Casa do Zezinho, no Capão Redondo."

Dagmar Rivieri, fundadora da Casa do Zezinho

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É agora, José!

Um verso de Carlos Drummond de Andrade - "E agora, José?" - virou uma afirmação na vida da pedagoga Dagmar Rivieri, 68, que transformou a pergunta do poeta em um imperativo de vida: "É agora, José!".

Surgiu daí a inspiração para o nome da instituição que ela lidera desde 1994 e que leva educação para crianças da favela, a Casa do Zezinho. "O Zezinho é aquele que tem direito a sonhar como qualquer criança", afirma Tia Dag, como é carinhosamente chamada por todos.

Em alguns anos de trabalho, a educadora viu multiplicar o número de crianças atendidas. Salvas de grupos de extermínio, na década de 70, ela contabiliza 15. Na sala de casa, onde tudo começou, foram mais de 60.

Hoje, são 1,3 mil jovens de 6 a 19 anos atendidos no contraturno escolar em uma unidade construída no Capão Redondo, zona Sul da capital paulista, por um empresário que apostou na ideia da pedagoga. Há ainda 2 mil inscritos em uma lista de espera. Desde a fundação da casa, mais de 30 mil 'zezinhos' passaram pela inquieta Tia Dag, que transformou o espírito de indignação em uma pedagogia feita de amor e escuta.

"Eu sempre imaginei a educação como uma coisa de evolução, algo de crescimento, mas até hoje é muito fechado. Sem emancipar, sem dar autonomia para a criança. Então, eu já comecei a praticar aquilo que eu imaginava [na minha própria casa]. Naquela época, a pedagogia era minha. Mas hoje não é. Já está escrita por várias mãos", diz a fundadora da ONG.

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Pedagogia do arco-íris

Tia Dag conta que a diversidade é o cerne da educação praticada na Casa do Zezinho, que ganhou o nome de Pedagogia do Arco Íris - uma referência às cores que, por sua vez, correspondem às diferentes fases do desenvolvimento de uma criança.

Com foco no desenvolvimento de potencialidades e em crianças em situações de alta vulnerabilidade social, a metodologia foi construída coletivamente levando em conta a voz dos 'zezinhos' para opinar e decidir o que queriam.

"É muito necessário perceber os cinco sentidos na criança. Se você não tiver um olhar atento, você não percebe por que ela está brigando. Mas se você olhar no pé, a sandália havaiana, está com um prego embaixo. É preciso escutar mais e não julgar: como você se sentiria se morasse num barraco pequeno na frente de um esgoto? É prestando atenção em tudo isso que você consegue educar."

Pautadas em quatro pilares - filosofia, ciências, artes e educação - as atividades propostas pela ONG trabalham com a interdisciplinaridade, ou seja, as disciplinas se misturam e se relacionam. No local, crianças e jovens têm contato com oficinas e projetos de nutrição, esportes, artes cênicas, música, teatro, canto, incentivo à leitura, orientação para o mundo do trabalho, entre outros.

"Na gastronomia, você trabalha química, matemática, história. Não tem necessidade de caixas: história na aula de história ou matemática na aula de matemática. Se você trabalha nessa multidisciplina é um espetáculo. Pra mim é, né? Bom, está dando certo até hoje", diz a fundadora.

A educação, pra mim, é quando a criança ou jovem tem direito de questionar e de participar. Não é você ficar sentado na carteira olhando a nuca do outro, sem poder abrir a boca. Pra mim, educação é emancipação e, principalmente, autonomia.

Dagmar Rivieri, fundadora da Casa do Zezinho

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Aprender com a avó

Na Casa do Zezinho, crianças e jovens são incentivados a valorizar vários tipos de saberes, e não apenas as disciplinas escolares.

"O Brasil faz projeto de cima para baixo, mas eu fui tentar saber o que as pessoas queriam aprender. Foi quando eu pensei: vou dar aula de cerâmica. Procurei em São Paulo cursos de cerâmica brasileira, mas não tinha. Só tinha aula de cerâmica japonesa. Então fui aprender, mas aconteceu uma coisa muito interessante durante uma oficina. Uma das crianças virou para mim e falou: 'minha avó faz isso com casca de coco'. Então, eu pedi: 'vai lá buscar a sua avó'", relembra a pedagoga.

"A avó veio e tirou da mesa tudo que eu tinha de japonês. Pegou uma panela, quebrou o coco e, dez minutos depois, tinha um vaso enorme. Eu olhei pra ela e falei: 'bom, a senhora vai ser a primeira educadora da casa do Zezinho registrada'. E ela falou que não podia porque era analfabeta. Eu respondi: 'Sem problemas. Eu sou analfabeta em casca de coco, e a senhora é analfabeta em letras. Vamos trocar'", conta. E assim foram cinco anos de parceria na Casa.

Dentro do intercâmbio de saberes, a Casa do Zezinho conta ainda com um projeto chamado Maria Maria, no qual as avós comparecem para ensinar customização de peças, costura, crochê e tricô para os mais novos. Já os jovens ensinam às avós como se conectar no mundo digital - abrir uma conta e mexer em redes sociais como Facebook, Instagram e WhatsApp, por exemplo.

"Em geral, são as avós que sustentam a casa com suas aposentadorias e ninguém dá valor. Nesse projeto, acontece uma troca, são pontes: do mais velho para o mais novo. Por que isso não tem na escola?", questiona a educadora.

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Não é só sonhar

A pedagoga define a sua jornada como um trabalho em construção e afirma que procura sempre aliar inovação nas atividades propostas no local. A última inovação da casa foi uma sala de games para a criançada, onde poderão também aprender a criar um aplicativo ou sites. Como a própria tia Dag afirma: "É uma pedagogia que vai crescendo e evoluindo."

Para a educadora, o importante é dar liberdade para que a criança, em especial a que vem de favela, possa sonhar e realizar o que a imaginação mandar.

"Eu digo para eles: 'Você quer ter um carrinho de pipoca? Esse é o sonho? Então vai ser o melhor carrinho de pipoca. Você quer ter um restaurante só de pães? Então, vamos lá.' Mas, aqui, não é só sonhar. Você tem que preparar. E a Casa do Zezinho prepara para esse sonho", afirma ela.

Tia Dag diz que, desde pequenos, os 'zezinhos' recebem lições de empreendedorismo. "Aqui até a criança que faz brigadeiro na aula de gastronomia sabe calcular quanto gastou antes de vender pra gente", destaca.

Isso é o mais importante: voar para o mundo e não achar que, porque mora em uma favela, vai ser obrigado a ganhar um salário mínimo e que a vida vai ser sempre assim

Dagmar Rivieri, fundadora da Casa do Zezinho

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Uma vez Zezinho...

Atualmente, dos 100 funcionários da Casa, 80% são 'ex-zezinhos' - que passaram pela casa como alunos, saíram para dar continuidade aos seus estudos e voltaram para trabalhar com tia Dag no projeto de educação.

Um desses jovens é Michael Douglas Santos de Jesus, 27 anos, que entrou na instituição aos 14 por indicação de uma tia. Na Casa, ele participou de diversas atividades - como informática e esportes - e, em uma delas, descobriu a própria vocação. "Um dos cursos acabou virando minha paixão. Hoje eu sou formado em design graças à Casa do Zezinho que me apresentou essa ferramenta poderosíssima de criação" afirma.

"Eu faço o que amo e trabalho com o que gosto. Eu cresci no Parque Santo Antônio, na zona sul de São Paulo, se eu fosse pesquisar ou correr atrás de um curso de design gráfico, eu não conseguiria pagar porque é uma formação que exige bastante investimento financeiro. E na Casa do Zezinho eu encontrei tudo gratuito", afirma Michael, que estudou design por dois anos na ONG antes de fazer o bacharelado em uma universidade.

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Michael trabalha hoje como analista de comunicação da instituição, onde chegou a ser estagiário e também professor. "Quando eu estava na faculdade, eu tive a oportunidade de dar aula de design aqui na Casa por um ano e meio", relata o jovem, que não esconde o orgulho de trabalhar ao lado de tia Dag. "Ela é uma tia, uma mãe, uma avó, uma guerreira. É um exemplo de perseverança, de insistência, de acreditar no próximo".

Os antigos 'zezinhos' que não trabalham na Casa também ajudam a manter a ONG em pé. Muitos deles, quando começam a trabalhar, contribuem com R$ 50 mensais, uma espécie de mensalidade, em agradecimento ao que receberam gratuitamente.

Apesar de já contar com muitos parceiros que ajudam a pagar os custos relacionados à manutenção da Casa - desde o ensino, pagamento de professores, alimentação das crianças -, tia Dag diz que o montante é alto e que todas as contribuições são importantes. Atualmente, o custo de um aluno, por mês, gira em torno de R$ 670.

Questionada pela reportagem se conseguiu concretizar seu sonho com o trabalho da Casa do Zezinho, tia Dag é enfática: "Não, nem pensar!"

Tem muita coisa para sonhar ainda. Muita coisa para sonhar e fazer. Meu filho fala assim: 'mãe, para, você já trabalhou muitos anos'. Eu digo: "para você, meu. Eu não. Eu não nasci para parar'.

Dagmar Rivieri, fundadora da Casa do Zezinho

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