Lente negra

Lázaro Roberto captou a 'reafricanização de Salvador', embalada por Gil; agora, corre para salvar 30 mil fotos

Victor Lacerda, do Alma Preta Jornalismo Colaboração para o UOL, de Salvador (BA) Pamela Castro/Arquivo Pessoal

Nascido no Fazenda Grande do Retiro, bairro de Salvador (BA), e filho de um estivador e de uma lavadeira, Lázaro Roberto, 64, diz que é do tempo em que pessoas negras não colocavam as mãos em máquinas fotográficas. Na década de 1970, viver deste ofício era sinônimo de status e para quem tinha poder aquisitivo. Sua realidade era bem outra. Após passar pelo grupo experimental de artes, a rota de sua vida mudou. Ele largou o trabalho na gráfica e passou a se aventurar pela produção de imagens para preservar a memória da capital baiana.

De lá para cá, Lázaro registrou marcos da história na cidade, como a visita das lideranças sul-africanas, Nelson e Winnie Mandela, em 1991. Após ficar preso por 27 anos por sua luta contra o regime do apartheid, sistema de segregação racial sul-africano, Mandela visitou o Brasil um ano após a sua liberdade e reuniu uma multidão de cerca de 150 mil pessoas.

Lázaro é idealizador da Zumví Arquivo Fotográfico, um acervo extenso da cultura e do movimento negro na Bahia composto por imagens dele e de outros fotógrafos negros, como Jonatas Conceição e Lúcio Flávio, além do cineclubista Luiz Orlando. Enquanto continua a registrar o cotidiano da população negra em Salvador, ele tem pela frente o que diz ser um dos maiores desafios de sua carreira: digitalizar mais de 30 mil fotogramas para garantir o acesso à memória às gerações futuras.

Ser da rua e estar atento a ela

Lázaro só colocou as mãos em uma câmera profissional após o empréstimo de um amigo do Bando de Teatro Olodum, no final da década de 1970. Pouco tempo depois, ele comprou sua primeira máquina fotográfica profissional. Era uma Minolta com lente de 50 milímetros, adquirida com o trabalho como operador de máquina offset em uma gráfica. O emprego também permitia comprar os filmes em preto e branco. Quando o dinheiro não dava, vendia cartões postais com imagens dos seus registros.

Estar nas ruas e observar atentamente as expressões culturais em Salvador era o seu exercício diário. O desafio de saber o local exato para ter as melhores imagens não era grande questão para Lázaro. Como alguns panfletos e cartilhas dos movimentos e articulações negras eram impressos na gráfica onde trabalhava, ele sabia exatamente onde deveria estar.

Foi desta experiência que passou a refletir mais sobre as questões sociais e raciais na capital, a mais negra do país — 8 em cada 10 moradores de Salvador se autodeclaram pretos ou pardos, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2018. Lázaro diz que suas lentes e cliques buscavam - e buscam - transparecer um olhar sensível e antirracista. Não à toa, suas obras têm influências do MNU (Movimento Negro Unificado), grupo de ativismo político, cultural e social fundado em 1978, e do qual ele é integrante, e do antropólogo Antônio Godí, que o ajudou na sua formação racial.

Não havia outra possibilidade de não trilhar este início sem ser fotografando pessoas negras.

Lázaro Roberto, fotógrafo

Reafricanização de Salvador

Uma das marcas registradas do fotógrafo é o registro do cabelo e da estética negra, que ele aprendeu a valorizar em casa. Ainda na juventude, via as irmãs ganhando dinheiro para "dar ferro", gíria utilizada na Bahia para alisar cabelo de outras mulheres negras. Ele, porém, estava embalado pelo Michael Jackson dos anos 1970. Com isso, passou a ser um assíduo defensor do estilo de corte black power. O novo penteado também era reprovado pelo pai.

"Tinha de lidar com essas questões em casa. Além das minhas irmãs e as pessoas que chegavam para fazer as tranças, foi na rua que eu pude identificar uma resistência e, sobretudo, uma pluralidade estética", conta.

Em 1980, as ruas de Salvador passavam por um momento de conscientização e reafirmação da identidade negra, lembra Lázaro. O processo de retomada do orgulho pelas raízes e cultura negra foi intitulado na cidade como "reafricanização de Salvador". Mulheres abandonavam os lenços que escondiam seus cabelos e expunham suas madeixas e penteados livremente, enquanto homens aderiam às tranças.

Diante das lentes de Lázaro também passavam os primeiros desfiles de afoxés e apresentações de blocos afros, como o Ilê Aiyê, fundado em 1974, no Curuzu. Muito desse espírito, lembra Lázaro, foi impulsionado pela notoriedade e influência de Gilberto Gil, sucesso no país com o disco "Refavela".

Eu não ia aos eventos apenas para tirar fotos. Se eu não tivesse o senso crítico que minha formação no teatro e no MNU propiciaram, eu não conseguiria entender, por exemplo, que ter negros morando em palafitas não era normal, ou até não [conseguiria] entender o que é e quais são os impactos de um 'apartheid' social

Lázaro Roberto, fotógrafo

O preto atrás da câmera diante do presidente liberto

Frequentador assíduo da Feira de São Joaquim, um dos principais polos de trabalho comercial feito por pessoas negras da capital, Lázaro viveu episódios que demonstram como nem sempre foi fácil ser um homem negro atrás da câmera.

Por ser um local turístico, outros profissionais não negros o frequentavam para tirar fotos e eram bem recepcionados por clientes e comerciantes, que sorriam e posavam espontaneamente. "As pessoas pensavam que seriam valorizadas e, principalmente, vistas fora dali", diz. O mesmo, diz Lázaro, não ocorria com ele. "Muitos viravam o rosto [para não serem fotografados]", lembra.

Para evitar negativas dos personagens nas fotografias, a saída foi investir nas trocas de conversas e aproximação dos feirantes, tomando café da manhã com eles, com o objetivo de se familiarizar e socializar com os trabalhadores que transitavam diariamente. A estratégia, diz ele, nunca o fez perder um registro. "Entendi que meu lugar era e sempre foi a rua, e que isso me geraria desafios", enfatiza.

As imagens de Lázaro na feira encantaram o pesquisador e historiador Jorge Antônio do Espírito Santo Batista, que o convidou a expô-las em 1992. Foi a primeira vez que suas fotografias compuseram uma exposição. O segundo evento do tipo só aconteceu após 26 anos no Museu Afro da Universidade Federal da Bahia, em comemoração aos 40 anos do MNU. Neste ínterim, ele participou apenas de exposições coletivas pelo Nordeste do país.

Há um evento que o fotógrafo sonha em transformar em exposição. É a visita a Salvador de Nelson e Winnie Mandela. Naquele 5 de agosto de 1991, o líder sul-africano pisava no Brasil pela primeira vez. Veio agradecer o apoio do povo brasileiro e a pressão ao governo da África do Sul para que ele fosse libertado após 27 anos de cárcere.

Lázaro relembra daquele dia como se fosse um filme. Pela manhã, acompanhou a expectativa e a reação popular com a chegada de Mandela ao Aeroporto Dois de Julho. Registrou ainda a festa dos blocos afro, movimentos sociais, grupos de capoeira e até de pessoas de municípios vizinhos que estavam em Salvador para prestigiar o sul-africano. À noite, Lázaro conseguiu chegar próximo de Mandela e acompanhar seu discurso, um marco para a comunidade negra no Brasil.

Zumví: um quilombo visual

Em 1990, Lázaro se uniu aos fotógrafos Adelmar Marques e Raimundo Monteiro. Juntos, fundaram o Zumví Arquivo Fotográfico, com o lema "fotografar hoje para o futuro".

"A criação do Zumví foi a nossa resposta ao que víamos na cidade. Nós queríamos criar a nossa própria história, a nossa própria memória no pós-abolição", diz.

Ao longo do tempo, outros fotógrafos também passaram a colaborar e a doaram parte de suas obras ao acervo da iniciativa. Entre os colaboradores, estão Rogério Santos, Jonatas Conceição, Lúcio Flávio e o cineclubista Luiz Orlando. Atualmente, ele gerencia a iniciativa com seu sobrinho, o historiador José Carlos Ferreira. São cerca de 30 mil imagens.

Digitalização do acervo e campanha

A Zumví conta com uma loja de fotografias localizada no Pelourinho, mas não tem uma estrutura adequada para garantir a conservação de toda a coletânea de registros. Hoje, todo o acervo está em pastas de papel ofício, guardadas no quintal da casa de Lázaro, no bairro de Fazenda Grande.

À frente da instituição, tio e sobrinho tentam aos poucos estruturar a manutenção do acervo. Por meio de um edital de incentivo financeiro à cultura e uma parceria com a UFBA (Universidade Federal da Bahia), eles iniciaram o processo de digitalização das imagens. O ritmo e a quantidade de registros os preocupam. Dos 30 mil fotogramas, cerca de 7 mil estarão protegidos. O trabalho é feito com a ajuda de dois estagiários e conta com orientações práticas do professor Elson Rabelo, da Universidade Federal do Vale do São Francisco.

O trabalho, porém, exige que mais pessoas estejam envolvidas na digitalização, catalogação, higienização e condicionamento do material fotográfico. Por isso, uma campanha de financiamento coletivo deve ser aberta em breve para acelerar o processo. Caso a campanha tenha sucesso, a perspectiva é que os registros digitalizados estejam anexados em uma aba especial no site oficial do Zumví.

Nós estamos lutando para que este material não fique esquecido e que as pessoas entendam que a fotografia não tem um papel apenas estético, mas de formação na educação e que pode funcionar como um meio de politização das próximas gerações. Além disso, sei que a minha experiência vai ajudar os demais jovens negros e entusiastas pela fotografia a entenderem como fizemos a nossa própria arte

Lázaro Roberto, fotógrafo

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