"A gente tá falando das noções de consciência e de memória", escreve Lélia Gonzalez na Revista Ciências Sociais Hoje, de 1984, em um texto intitulado "Racismo e sexismo na cultura brasileira". "Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência."
Fundadora do Movimento Negro Unificado, Lélia é uma das mais brilhantes pensadoras brasileiras sobre identidade, racismo, antirracismo e igualdade de gênero. Em uma época em que as figuras icônicas do movimento negro eram homens, Lélia traz um olhar com interseccionalidade e dispara que nenhum feminismo é verdadeiramente feminista se ignora a questão de raça e classe. Este olhar de militância integrado, anti-imperialista e ciente das mazelas do colonialismo chama-se Amefricanidade. O conceito passa pela visão da América para além de sua unidade geográfica, mas também da perspectiva histórica, no que tange a ainda atual ação imperialista, dinâmica de apagamento e resistência cultural, cujas práticas são em sua maioria negras e indígenas.
O Movimento Negro Unificado marca a geração mais contundente da história do movimento negro organizado do Brasil. Seu surgimento foi uma resposta ao assassinato de Robson Silveira da Luz, um homem negro torturado até a morte no 44º Distrito de Guainases; anunciou-se uma manifestação no dia 7 de julho de 1978, que reuniu 2 mil pessoas nas escadarias do Teatro Municipal em São Paulo, e mobilizou apoio de diversos coletivos negros a nível nacional. "Assim, no contexto de rearticulação do movimento negro, aconteceu uma reunião em São Paulo, no dia 18 de junho de 1978, com diversos grupos e entidades negras (CECAN, GrupoAfro-Latino América, Câmara do Comércio Afro-Brasileiro, Jornal Abertura, Jornal Capoeira e Grupo de Atletas e Grupo de Artistas Negros)", escreve o doutor em história Petrônio Domingues em sua tese "Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos": "Nesta reunião, decidiu-se criar o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR)."
"No Programa de Ação, de 1982, o MNU defendia as seguintes reivindicações "mínimas": desmistificação da democracia racial brasileira; organização política da população negra; transformação do Movimento Negro em movimento de massas; formação de um amplo leque de alianças na luta contra o racismo e a exploração do trabalhador; organização para enfrentar a violência policial; organização nos sindicatos e partidos políticos; luta pela introdução da História da África e do Negro no Brasil nos currículos escolares, bem como a busca pelo apoio internacional contra o racismo no país", escreve Domingues.
Foi com o MNU que pela primeira vez o movimento negro organizado começa a ver a mestiçagem como uma política de embranquecimento da população e deixa de apoiá-la, abandona o termo "homem de cor", adota a nomenclatura "negro" e passa a valorizar a cultura afrobrasileira, em um esforço de construção identitária. É nesse momento em que há a passagem do Dia da Consciência Negra para o dia 20 de novembro, deixando de homenagear a Lei Áurea e passando a reverenciar Zumbi dos Palmares — a capoeira, o samba, o candomblé e a umbanda são enaltecidos. Para a erradicação do racismo, aposta-se na via política, logo passam a ser empregados gritos de ordem como "Negro no poder". Ao lado de militantes como Hamilton Cardoso, Lélia foi fundamental para essa transformação de postura do movimento e compreensão das dimensões do racismo no Brasil.
A força de Lélia ultrapassou as fronteiras brasileiras e continua a ter ressonância muito tempos após morte. "Eu aprendo mais com a Lélia González do que vocês comigo", afirmou a ativista Angela Davis durante sua passagem pelo Brasil no ano passado.