A menina do Acre

A atriz e militante Gleici Damasceno volta às suas origens acreanas em filme premiado no Festival de Gramado

Luciana Bugni Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Caio Oviedo

"Vou para a Bolívia estudar medicina. Ou para São Paulo, já falei com as meninas do Slam", diz Sandra, personagem da atriz Gleici Damasceno no longa 'Noites alienígenas', que estreia no cinema neste dia 30 de março. A história se passa na periferia de Rio Branco, no Acre, e mostra como facções criminosas e tráfico de drogas dominaram a cena dos povos da floresta.

Ali, indígenas são viciados em crack, mulheres pretas são mães solo e todos tentam sobreviver - mesmo que isso queira dizer fugir dali. Nos últimos dez anos, com a entrada do crime organizado, o número de assassinatos de jovens e crianças aumentou 183% na região metropolitana da capital.

"O filme fala sobre como a própria floresta salva esses jovens", diz Gleici, intérprete de uma dessas mães solo, que lida com o pai da criança viciado em crack e o atual namorado às voltas com o tráfico. A atriz, acreana que levou seu estado natal ao grande público em 2018, quando participou do Big Brother Brasil, conhece história e cenário desde filme muito antes de rodar as cenas.

"Nunca imaginei interpretar personagens tão próximos da minha realidade - muito menos com tantos amigos da cena artística do Acre, 90% do elenco e da produção é local. O próprio diretor, Sergio de Carvalho, é um cara muito responsável com a temática da Amazônia, que mora lá há 30 anos", conta.

O projeto "feito com amigos" deu certo - foi o maior vencedor do Festival de Gramado e levou os prêmios de melhor filme do júri e da crítica.

Caio Oviedo
Wesley Barros Wesley Barros

O Acre é logo ali

Gleici sabe como são o racismo e a violência doméstica - a mãe fugiu com os filhos de casa por esse motivo - e tem noção de como a droga pode destruir a estrutura da família - seu irmão teve questões com o vício que já foram sanadas. Seu ativismo na periferia de Rio Branco vem desde a adolescência, quando realizou ações culturais no local, emendando em uma vontade de seguir carreira política.

Enquanto o resto do Brasil fazia piada a respeito do Acre existir ou não, ela resistia."A gente passa a vida ouvindo isso. E se questiona: preciso sair daqui? Eu quero sair daqui? É um sentimento comum pensar que vai chegar a vez de todo mundo ir embora. Ali, se cresce acreditando que existe um outro Brasil além do Norte. Hoje vivo em São Paulo porque é aqui que preciso estar para trabalhar com teatro e publicidade. Mas não deixa de ser cruel - a gente deveria ter acesso a tudo que se quer no lugar onde nasceu".

É de volta à cidade natal que Gleici se sente mais à vontade. Fala com entusiasmo da cultura acreana, internacionalmente famosa, como a Ayuaska. Reclama que a Amazônia é mais valorizada por quem vem de fora, e o apreço do brasileiro diminuiu ainda mais no governo anterior, em que se teve o aval para desrespeitar a floresta.

Ali não tem só botânica e fauna. É um povo, cultura, tradições e famílias. Tenho ligação forte com a terra, é ancestral. Só me sinto assim no Acre

Gleici Damasceno, atriz

Do BBB ao Lula Livre

Gleici entrou no Big Brother aos 23 anos fervilhando de ideias. "Nem achava que seria possível entrar na casa sendo militante, filiada ao PT desde os 16 anos. Fiz inscrição meio na brincadeira", revela.

Foram passando as semanas e ela foi entendendo que o público gostava de seu posicionamento. Por isso, achou que a situação política da esquerda também estava indo bem aqui fora.

Não era bem assim. Naquele momento, a polarização política do Brasil estava começando. Enquanto Gleici explicava para outros colegas de BBB o que era racismo estrutural e outros conceitos que hoje, cinco anos depois, estão mais difundidos, aqui fora a extrema direita adquiria uma força que ela não imaginou - na casa, não tinha ideia nem mesmo de que o ex-presidente Lula havia sido preso.

O Brasil que a elegeu campeã do BBB daquele ano elegeu também Jair Bolsonaro como presidente meses depois. Era frequente que ela escutasse "amo você, mas odeio o que você diz sobre política".

Gritar Lula Livre e ir para a rua virar voto para Haddad nos meses que precederam a eleição não foi exatamente um jeito de turbinar sua popularidade. E, apesar do hate, ela gritou mais.

Poucas pessoas públicas se posicionavam. Mas tinha acabado de ganhar o BBB, nunca me submeti ao que esperavam de mim e não poderia ser imparcial

Gleici Damasceno, atriz

Divulgação

Militante desde sempre

A militância de Gleici vem desde muito nova, quando houve a percepção de que não era normal que ela e sua família vivessem em situação tão vulnerável. "Como minha mãe era doméstica, convivíamos com pessoas que tinham dinheiro. Eu questionava por que tanta gente tem tanto e a gente tinha tão pouco", lembra.

No ensino médio, percebeu que a Baixada da Sobral, bairros da periferia de Rio Branco, não tinha um coletivo. "Liguei para os 16 bairros e pedi para enviarem um jovem representante. Eu os reuni na sede de uma vereadora e conseguimos realizar um cineclube para que a população tivesse acesso a documentários. A gente tinha que tentar recursos através dos deputados para fazer cinema na comunidade para a juventude. Muita gente dava assistência para a população com distribuição de comida, mas eu queria fazer a galera pensar", conta.

Escreveu o projeto, visitou as secretarias, estudou e fez acontecer. Nas tendas itinerantes, passavam a animação 'Rio' para as crianças e também havia sessões de 'Amarelo Manga' para os adultos, com muita pipoca.

Tudo isso fez com que ela tivesse vontade de se candidatar a vereadora - se realizou tanta coisa apenas pedindo ajuda às autoridades, imaginava o que seria possível em um mandato. O projeto não foi para frente. Virou membro do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial e foi voluntária em diversas ações aos 18 anos.

Com 19, Gleici foi convidada a se candidatar à presidência do conselho e ganhou.

Eu mobilizava muitos jovens e era a presidenta mais nova do Brasil. O diálogo é a única forma que temos de mudar a sociedade. Queria que outras meninas pensassem parecido e saíssem transformadas.

Gleici Damasceno, atriz

Divulgação

Racismo recente

Gleici fala sobre temas contundentes ou suas vitórias profissionais e na militância como muita serenidade. O semblante fecha, no entanto, quando a reportagem pergunta sobre o episódio recente de racismo que sofreu no aeroporto de São Paulo, ao voltar de Nova York. "Uma pessoa branca com síndrome da pequena autoridade querendo te desmoralizar pelo que ela acha que você é", explica.

A atriz não gosta de falar sobre racismo - nos diversos eventos que organizou, sempre deu preferência à fala de quem estuda o tema —, mas entende que o assunto é algo inerente a ela. "Quero falar sobre make, pagar de gostosa na internet, mas infelizmente não posso me dar ao luxo. Não posso ir para Nova York e voltar em paz. Depois escuto 'descansa, militante'. Descansar é exatamente o que eu queria fazer às vezes".

Quando saiu do reality, Gleici ouviu que em um ano todo mundo a esqueceria. Afirma que não liga para isso e usa a sua visibilidade para fazer a mesma coisa que fazia antes: militar e construir sua carreira como atriz. Cinco anos depois do BBB, parece bem longe de ser esquecida.

Não quero a fama pela fama, quero transformar.

Gleici Damasceno, atriz

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