Vidas Puxadas

Lixo não existe: Catadores puxam carroças 'tunadas' de 400 kg e cooperativa ganha até 30 mil com ajuda de ONG

Giacomo Vicenzo de Ecoa, em São Paulo (SP) Caio Guatelli/UOL

Em São Paulo (SP), em um grande galpão, está Sérgio Bispo (ou apenas Bispo, como gosta de ser chamado), um homem de 65 anos e olhar atento. Nascido e criado em um aterro sanitário em Salvador, na Bahia, aprendeu desde cedo a máxima que repete sempre: "Lixo não existe!"

Do outro lado, está a paulistana Letícia Gouvêa, de 28 anos. Vaidosa, com maquiagem impecável e toda tatuada, a jovem se apresenta nas redes sociais como "Barbie Lixeira". Assim como Bispo, é catadora, tira sustento de coisas que a sociedade costuma virar a cara.

Em comum, além de viver da reciclagem, os dois fazem parte do Pimp My Carroça, uma organização que trabalha para tirar catadores da invisibilidade, ajudando essas pessoas a se profissionalizar e a conquistar remuneração justa pelo trabalho fundamental que desempenham.

O projeto, que acaba de completar 10 anos de existência, já está em mais de 1.600 cidades do Brasil e atende mais de 10 mil catadores. Só no aplicativo Cataki, que descobre pontos de coleta, há mais de 4.500 profissionais do ramo conectados atualmente.

Por focar em ações que valorizam o trabalho dos catadores, alguns têm a vida transformada, como no caso de Bispo, que após passar pelo Pimp, conseguiu fundar uma cooperativa de catadores, a "Kombosa Seletiva", que hoje tem lucro líquido de R$ 36 mil ao mês.

Renascendo na reciclagem

O "lixo" foi mais do que uma fonte de sobrevivência na infância de Bispo, quando já o coletava. Foi também sua casa. Até os oito anos, dormia junto a outras crianças e famílias completas no Aterro da Cana Brava, que mais tarde, ao ser desativado, daria lugar ao Estádio Barradão, do Esporte Clube Vitória.

"Quando o aterro foi desativado, continuei catando coisas na rua e vendendo. Mais tarde, já com meus vinte e poucos anos, vim para São Paulo", lembra Bispo.

Nas ruas da capital paulista, Bispo via grande parte do dinheiro que ganhava puxando carroça se transformar em copos de bebida. "Acabava bebendo o dinheiro da reciclagem, não tudo porque minha mulher saia comigo na coleta e guardava uma parte. E o dinheiro que eu ganhava dava para ela".

E, mais uma vez, foi a reciclagem que teve papel importante para sua volta por cima.

Vivendo em situação de rua e sem documento de identidade, não sabe o tempo certo, mas acha que foi perto dos 30 anos que conheceu a Sefras (Ação Social Franciscana), que atendia trabalhadores da área da reciclagem em um dos projetos sociais, Bispo começou a se envolver na formação de diversas outras cooperativas. Assim, ajudou enquanto era ajudado. "Foi nesse momento que fui parando com o álcool", completa.

Em 2012, veio o primeiro contato com o Pimp My Carroça, com a ação de grafitagem de carroças feita pelo artista Mundano no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo.

Com auxílio da organização, Bispo, então, se deu conta da importância de seu trabalho, e repete dados na ponta da língua, como o do levantamento feito pelo Movimento Nacional dos Catadores de Recicláveis, que aponta que 90% do que é reciclado no país é recolhido por catadores e catadoras.

Grafitaram na minha carroça as frases: 'lixo não existe' e 'catador faz mais do que o ministro do meio ambiente'. Em todos esses anos, fui muito xingado nas ruas e no Pimp My Carroça foi o primeiro lugar em que fui admirado pela força do meu trabalho. Todo mundo me parava e começava a me procurar para tirar foto.

Bispo, catador de recicláveis

As carroças tunadas

Criado em 3 de junho de 2012, a primeira edição do Pimp My Carroça aconteceu no Vale do Anhangabaú e contou com a ajuda de mais de 700 apoiadores. Foi encabeçada pelo grafiteiro Mundano, que fez desenhos e frases provocativas nas carroças dos catadores de recicláveis.

Mas além de trazer um 'grito de existência' a esses trabalhadores que estão em diversas cidades do Brasil, com o tempo, o movimento se tornou um ponto de referência e apoio.

Além das intervenções artísticas, com o tempo vieram as orientações profissionais e assistência para trabalhar de forma adequada, seja com o uso de equipamentos de proteção ou ajudando a estruturar planilhas e fluxos de caixa.

"Com cerca de dez mil atendimentos a catadores e catadoras, com envolvimento direto de mais de 20 mil pessoas em mais de 80 cidades e 28 países. Foram mais de 3 mil artistas e 6 mil voluntários que utilizaram sua força de trabalho para promover a causa dos catadores", explica Leticia Tavares, diretora executiva da organização.

Ela afirma que a ideia do Pimp sempre foi tentar aproximar a sociedade dos catadores, mostrando a importância do trabalho dessas pessoas. "Somos uma plataforma em que catadores e catadoras podem encontrar pessoas interessadas em ajudá-los de diferentes formas", completa.

O trabalho do Pimp em valorizar o trabalho dos catadores, focando em fortalecer a autoestima dessas pessoas, não é pouca coisa. Uma pesquisa recente feita pela própria organização com seus atendimentos mostra que metade já sofreu algum tipo de preconceito por exercer essa profissão.

"Creio que como a gente lida com algo que para sociedade não tem mais valor, parece que nos tornamos iguais", afirma a catadora Letícia Gouvêa, 28. Para ela, a ideia de trabalhar com reciclagem surgiu em família - e por necessidade. O pai tinha acabado de sair de um emprego como faxineiro em uma empresa e foi catar recicláveis por conta própria. A mãe dela o ajudava, mas logo adoeceu e precisou parar.

Tentando ajudar a família, aos 16 anos, fez um acordo com o pai e, juntos, passaram a coletar recicláveis após o horário escolar. Desde então, Letícia não parou e há um ano está no Pimp My Carroça.

Gouvêa conta que é comum que as pessoas a observem com espanto quando está maquiada e catando recicláveis. "Trabalhando nessa área muitas pessoas nos enxergam como um nada ou como viciados, que estamos catando coisas apenas para trocar por drogas. Esse é um estigma da nossa profissão", lamenta.

Apesar disso, foi este trabalho que a despertou para algo grande: a importância da preservação ambiental e a conscientização de que ser catadora significa também contribuir com a saúde do planeta.

Nas redes sociais, ela abraça a personagem de Barbie Lixeira para divulgar mais sobre a profissão, é onde também apresenta conteúdos práticos para explicar sobre o descarte correto de resíduos recicláveis, por exemplo, que facilitam o trabalho de catadores. A ligação dela com a área foi tão grande que Letícia passou a se interessar mais em aprender sobre questões ambientais.

"Comecei esse ano um curso de técnico em meio ambiente e já estou pensando no tema do meu trabalho de conclusão de curso, acho que esses assuntos nunca foram de fato abordados com a visão de uma pessoa que realmente trabalha na área", comenta.

Apesar do trabalho de catadores ser fundamental para a reciclagem no Brasil, a remuneração desses trabalhadores ainda é, na maioria dos casos, baixa. Gouvêa consegue uma renda média de R$ 800 por mês e precisa completar dando aulas.

"Como o tema [reciclagem] está em alta, algumas escolas me contratam para dar palestras sobre o assunto para crianças e adolescentes'', conta.

CEO de carroça

Já Bispo é um caso a parte. Após ser atendido pelo Pimp My Carroça passou a compreender a função social de seu trabalho e a encará-lo de forma mais profissional. Pouco tempo depois, comprou o primeiro veículo, que seria usado para recolher materiais recicláveis e aposentar a carroça tracionada pela força de seu corpo de 1,65m, que foi seu método de trabalho por cerca de dez anos.

"Investi nas redes sociais, criei planilha para contabilizar custos de EPI [Equipamento de proteção individual], manutenção do veículo. O Pimp me ensinou o que o sistema não me ensinou em dez anos. Sem o apoio deles eu estaria puxando carroça até hoje", diz bispo.

Foi em 2014 que Bispo decidiu que era a hora de escalar ainda mais o seu trabalho, e criou a cooperativa Kombosa Seletiva, que traz estampada em letras garrafais em seu site a frase que mudou o visual de sua carroça: "Lixo não existe".

Hoje, a kombi usada deu lugar a três furgões grandes e de modelos atuais, que são usados para recolher materiais recicláveis. Sua cooperativa conta com nove sócios-cooperados e divisão por igual do lucro de cerca de R$ 36 mil ao mês, o que proporciona uma vida mais confortável a Bispo, que deu entrada em sua casa própria neste ano e viu dois de seus oito filhos completarem o ensino superior.

"Não busco riqueza, quero que todos os catadores também tenham sua oportunidade e quem sabe sejam os 'CEOs' de suas próprias kombosas, assim como eu. O que fazemos hoje é uma economia circular", opina.

O match perfeito

Outro fator determinante para o deslanchar da cooperativa de Bispo foi o aplicativo Cataki, que conecta catadores a geradores de resíduos recicláveis, lançado pela Pimp My Carroça, em 2017.

Dentro da plataforma, quem quer descartar resíduos pode encontrar o catador mais próximo por meio de um sistema de geolocalização, semelhante ao usado nos apps de transporte, e contratar o serviço. Nenhuma das partes paga valores adicionais pelo uso da tecnologia.

"O aplicativo Cataki possibilita que os catadores expandam suas redes de negócios e tenham mais ferramentas de trabalho. Tanto no quesito de diversidade de geradores, compradores e opções de material até o uso de uma ferramenta que calcula o impacto ambiental de cada coleta a partir do volume e tipos de materiais", explica Leticia Tavares, diretora executiva do Pimp My Carroça.

O aplicativo também traz a possibilidade do catador gerar um cartão profissional, o que confere mais credibilidade ao seu trabalho. Para Bispo, a versatilidade de uso do aplicativo o ajudou a conseguir mais pontos de coleta, entre os quais em escolas de alto padrão e condomínios residenciais de classe média.

"Com o uso do aplicativo meus pontos de coleta aumentaram de 15 para 55 e em alguns locais, como nos colégios, sou convidado para dar palestras sobre o descarte correto dos resíduos", conta Bispo.

Para Gouvêa, que coleta os resíduos sozinha e apenas com o saco de lixo, o aplicativo tem ajudado a encontrar pontos próximos de sua residência. "Com o aplicativo eu consigo ter um contato maior com as pessoas da região de onde moro ou em outras localidades, sem precisar me deslocar tanto", conta.

Atualmente há mais de 4 mil catadores registrados na plataforma que funciona em mais de mil cidades do Brasil. Para Tavares, as iniciativas da ONG nos últimos 10 anos trazem uma melhora na autoestima das pessoas atendidas e oferecem um caminho de desenvolvimento.

"Fornecemos apoio direto para que melhorem sua autoestima, reconhecendo a importância de seu próprio trabalho e exemplos que podem ser seguidos para um desenvolvimento na carreira", diz a diretora do Pimp My Carroça.

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