Os últimos, isolados

Símbolo de resistência, Piripkuras caminham para a extinção com dois últimos indígenas ocupando terra ameaçada

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Arquivo/Funai

A chuva cai uma vez ao ano na terra dos Piripkura. A seca entre maio e setembro é precedida pelas chuvas de outubro a abril, que caem em uma média de 2.400 milímetros por ano. Mas os Piripkura nunca dominaram os números, as métricas. O tempo é um cálculo baseado na natureza.

Quando os igarapés enchem, eles sabem que é mais difícil pescar. Quando esvaziam, se esbaldam com a pesca de cará e traíra. Ao longo do ano, têm garantido o cacau e as castanhas das árvores que os cercam e a caça de jacarés.

Os Piripkura vivem entre duas condições climáticas opostas, com temperaturas que oscilam de 18º C a 40º C. Assim, o ano é dividido apenas entre inverno e verão. Seria possível sobreviver às duas estações por décadas, mas os Piripkura se aproximam da extinção a cada novo ciclo.

Hoje, são resumidos a dois indígenas: Tamanduá e Baita. Os dois são os últimos a viverem isolados na floresta, como seus ancestrais. Há também uma única mulher, que não vive entre os familiares há cerca de 40 anos.

Baita é o mais velho e tem cerca de 50 anos. Tamanduá, mais novo, é seu sobrinho. A idade também é um termo relativo. Os dois entendem a passagem do tempo, um fenômeno capaz de torná-los mais sábios. Mas não há mais velhos entre eles. Não restará ninguém a quem ensinar tudo que lhes garantiu sobreviver em harmonia com a natureza.

"São povos com tradições milenares que conseguiram sobreviver em pleno século 21 independentes da era industrial", explica o indigenista Antenor Vaz, que desde a década de 1980 acompanha e monitora os Piripkura e ou povos isolados no Brasil e América do Sul.

Antenor liderou um estudo que confirma a existência de 28 povos indígenas isolados em território brasileiro, como os Piripkura. São indígenas que evitam contato, rejeitam a comunicação ou sequer sabem da chegada dos europeus ao continente sul-americano. O Brasil tem o maior número de isolados confirmados na América do Sul, à frente do Peru. Acredita-se que possa existir ainda mais do que o contabilizado: 86 povos indígenas viveriam isolados só em nosso país.

Em uma área de 242,5 mil hectares, no norte do Mato Grosso, a Terra Indígena Piripkura sofre com avanços de grileiros e madeireiros desde os anos 1980. O crescente desmatamento em 2020 coloca em risco a existência deles e acabar com anos de proteção e respeito aos povos da floresta.

Quando não conseguir encontrar alguém é bom

A confirmação sobre a existência de um povo isolado como os Piripkura pode tomar até quatro anos de um trabalho minucioso. Depende da sorte, explica Antenor. Primeiro, é preciso que órgãos ambientais e indígenas recebam relatos e investiguem a aparição de indígenas próximos a trechos urbanos ou na mata. Após as primeiras suspeitas, há uma busca por escritos de viajantes do passado, alguns feitos há séculos, e consulta a moradores. Nem sempre há um relato escrito.

Depois, uma frente de trabalho organiza uma expedição para entrar no território dos isolados e identificar rastros, pegadas, malocas, ferramentas, armas e identificação da fauna e flora. Tenta-se estimar o tempo de cada vestígio deixado para trás, como tochas recém-apagadas, marcas de machado em árvores, lanças ou acampamentos ainda montados para a movimentação dos isolados pelo território.

O Brasil não tem uma lei específica para a proteção dos indígenas isolados, diferentemente do Peru, Colômbia e de um decreto presidencial de 2013 na Bolívia. Até a década de 1970, o Estatuto do Índio defendia a integração dos indígenas à chamada "comunidade nacional". O texto da época era resposta às aventuras de grandes sertanistas, como os irmãos Villas-Boas na Terra Indígena do Xingu, e uma tentativa e expansão e o controle do território nacional pela ditadura militar.

O estatuto soava como a tentativa de uma construção de uma identidade nacional diversa e respeitosa aos nativos. Mas a realidade se impôs: o contato espalhou doenças como o sarampo e deflagrou conflitos armados. "Percebemos que cerca de 50% dos isolados morriam por algum motivo quando fazíamos o contato", lembra Antenor.

Em 1987, ele e mais um grupo de sertanistas, indigenistas, antropólogos e agentes Funai decidiram encerrar o contato com indígenas isolados. A partir daí, os indigenistas investigavam a existência de isolados, mas sem contatá-los à força. Na prática, virou um jogo de esconde-esconde eficaz, mas arriscado.

Em setembro deste ano, por exemplo, o respeitado indigenista Rieli Fransciscato foi flechado e morto ao investigar a aparição de um povo isolado. "Os isolados não fazem distinção entre o branco infrator e você. A eles, somos todos depredadores do meio ambiente. Nós tentamos evitar que eles tenham medo da gente", explica.

A partir da década de 1980, os isolados confirmados entraram em uma lista com "graus de vulnerabilidade". O índice lista o tamanho da população, o acesso a recursos naturais, a degradação do meio ambiente e o avanço sobre o território por não-brancos para calcular o tamanho do risco contra estes povos. Os Piripkura foram classificados como de altíssima vulnerabilidade.

Em 1989, com o novo paradigma estabelecido, os especialistas da Funai puderam investigar um relato peculiar feito por uma missão jesuíta em 1984, cinco anos antes. A descrição era interessante: em uma fazenda no Mato Grosso morava uma índia que dizia ser uma das últimas representantes de um povo que morava entre os rios Juruena e Madeirinha. O nome dela era Rita Piripkura. E ela contava histórias sobre seu povo.

Bruno Jorge/Imagens do documentário "Piripkura" Bruno Jorge/Imagens do documentário "Piripkura"

Testemunhas de um genocídio

Rita vivia com fazendeiros desde 1980. O motivo não é claro, mas ela teria abandonado os parentes por influência das fazendas que proliferaram ao redor dos Piripkura. Os relatos diziam que indígena começou a trabalhar a troco de ferramentas, comida e moradia. Outras denúncias também levantaram suspeitas de exploração sexual por trabalhadores da região.

A indígena foi resgatada por agentes da Funai e tornou-se uma guia, uma espécie de guardiã, sobre o que os Piripkura eram e haviam sido. Em 1986, ela auxiliou as expedições jesuíticas em busca dos parentes, e trabalha até hoje com a Funai na identificação de mais isolados no Mato Grosso.

Primeiro, o povo Piripkura perdeu as pessoas. Com elas, desapareceram também suas habilidades. Depois, foi a vez das palavras.

A Piripkura afirmou ter vivido entre cerca de 20 pessoas quando habitava a floresta, entre as décadas de 1960 e 1970. O povo era dividido em duas famílias. Em 1986, a expedição jesuítica encontrou dois homens indígenas, provavelmente de seu relato, que até hoje nunca mais foram vistos — eles não são os dois indígenas conhecidos atualmente. A dupla achada à época, dizia, era parte de um grupo maior que dominava a caça a partir do arco e da flecha. Os indigenistas sabem que não são Tamanduá e Baita, pois os dois não dominam as mesmas técnicas de caça.

Aos indigenistas, Rita disse que o avanço sobre a terra a partir dos anos 1970 foi liquidando o que de pouco sobrava de seu povo. Ela, Tamanduá e Baita restaram. O indigenista Jair Condor afirma, em registros, que os dois se esconderam enquanto os parentes eram mortos por madeireiros. Eles haviam atravessado o rio e pretendiam voltar para buscar o restante dos parentes, mas quando cruzaram as margens viram-se com vida. A morte havia ficado na outra margem, onde podiam ouvir seu abate.

Os dois Piripkura escolheram, e nós devemos respeitar seu modo de sobreviver. A Rita também escolheu. A saída de seu povo foi uma forma de sobrevivência.

Elias dos Santos Bijo, indigenista e doutor em História aposentado

Bruno Jorge/Imagens do documentário "Piripkura" Bruno Jorge/Imagens do documentário "Piripkura"

Técnicas milenares de sobrevivência e respeito à natureza

Após ser resgatada, a única mulher do povo apresentou aos indigenistas as malocas onde seus familiares viviam e seus cemitérios.

Em 1989, a Funai voltou com Rita ao território para coletar mais informações na companhia do indigenista Jair Condor. A reportagem tentou contato com ele, principal referência sobre o povo Piripkura, mas a Funai tem negado entrevistas com Condor, até hoje supervisor na base da instituição na Terra Indígena Piripkura.

O especialista liderou um grupo pela mata fechada, por onde correm porcos do mato, onças vagam e a natureza se perpetua como uma entidade. No caminho, um arbusto se mexeu. Os indigenistas ficaram em estado de alerta. Nestas ocasiões, os expedicionários se lançam ao chão para permitir a fuga dos isolados. Escutam os passos, os gritos e esperam o estalar de galhos cada vez mais distantes para levantar. Naquele dia, porém, protocolo não deu certo.

Inesperadamente, dos troncos saíram dois rapazes que sorririam para as imagens de uma câmera horas depois. O objeto, de aspecto alienígena, para eles não possui nome e nem perigo. Os dois falaram com Rita no idioma partilhado entre si e com seus parentes mortos... E com os parentes antes deles. Os dois rapazes eram Tamanduá e Baita, sobrinho e tio, respectivamente. Baita é irmão de Rita.

Os dois já não caçavam com o arco e flecha, nem dominavam a confecção de suas plumas e hastes. Para pescar, incendiavam uma tocha próxima a igarapés para enxergar os peixes e matá-los a pauladas. A dupla ainda usa um conhecimento ancestral de intoxicar poças d'água com uma espécie de planta para asfixiar e pegar os peixes. Sem o arco, caçam jabuti, jacaré, porco-do-mato e paca (um roedor) com varas e armadilhas, como buracos no chão, e decifram rastros que vagueiam quase imperceptíveis.

Um relatório assinado por Jair à época conclui que Tamanduá e Baita só existem por manterem um profundo conhecimento tradicional da natureza. A dupla conhece e respeita o ciclo de vida de cada animal, para que nunca falte alimento, e sabem deslocar-se pelo território durante as estações; sabem como controlar o fogo que é ateado em colmeias para a extração de mel e conhecem a diversidade das abelhas (a juparáju'ía, heíra po'á e a akupytanuhúa, ou "abelha grande que produz mel no mês de janeiro").

A mesma folha onde o mel é transportado é usada como "teto" para mais de 100 abrigos construídos — temporários, permanentes ou para esconder alimentos — sem a derrubada de qualquer árvore. Eles vivem em uma terra que parece uma descrição fantástica: o Ministério do Meio Ambiente contabiliza 97 espécies de peixes, 125 anfíbios, 127 répteis, 509 aves e 113 mamíferos na região.

Resiliência em uma terra ameaçada

Após o primeiro contato, a dupla passou quase 30 anos em meio às florestas, raramente vistos por não indígenas. Em 2018, por exemplo, saíram para tratar um tumor benigno em Tamanduá. Foram atendidos por médicos na cidade grande, onde foram registrados em uma fotografia deslocada, onde Tamanduá veste um moletom folgado entre os prédios de São Paulo. O cabelo preto, cortado com franja curta na testa, parece um mullet escorrido sobre os ombros. A dupla costuma sorrir para as câmeras.

Tamanduá foi curado. Ele e Baita sobrevoaram as matas para retornar ao lugar de onde não desejavam sair. Ao chegar, despiram-se novamente e voltaram para os abrigos na floresta.

"É um povo que já sofreu e conhece os grandes traumas. O povo deles foi morto e eles resistem ao não se envolverem conosco", explica o indigenista Elias dos Santos Bijo, doutor em História aposentado que coordenou o encontro com os dois indígenas na década de 1980.

A Terra Indígena Piripkura não é uma demarcação finalizada. Na prática, o povo conta com uma licença renovada a cada dois ou três anos pela Funai para manter o status de terra protegida. A oficialização depende ainda de um decreto presidencial, uma análise do Ministério da Justiça e ação do Incra.

Em fevereiro, a Funai flexibilizou normas fundiárias que facilitaram o avanço sobre territórios em processo de demarcação, caso dos Piripkura. O Instituto Socioambiental (ISA) detectou o desmatamento de 227 hectares da TI Piripkura em agosto. Em setembro foram mais 134 hectares desmatados.

No início de 2020, o Ministério Público Federal pediu investigação sobre invasões na região onde vivem os dois indígenas. "É uma situação dramática", define Tiago Moreira, antropólogo do ISA. Com a pandemia, há chance de serem contaminados pelo vírus que também mata o homem branco.

Historiadores sugerem que os Piripkura e parentes próximos já fugiram no passado de conflitos ocorridos no sul paraense e se dividiram em grupos menores que seguiram por rios como o Juruena, Roosvelt e o Madeirinha, onde instalaram-se os últimos os Piripkura. "Eles são sobreviventes em uma área de conflitos de madeireiros. Corremos o risco de perder a memória sobre tudo que eles sabem", diz.

Bruno Jorge/Imagens do documentário "Piripkura" Bruno Jorge/Imagens do documentário "Piripkura"

Proto-tupi e uma linguagem em mutação

Como não há livros entre indígenas é preciso recorrer ao idioma para mapear uma origem mais precisa dos Piripkura. Os dois indígenas falam uma variante do tupi, um tronco que remete a séculos incontáveis do passado na grande árvore chamada "proto-tupi". É possível comparar termos dos Piripkura com outros povos, como Kawahíva, e desenhar uma história críptica e, principalmente, não escrita.

A um falante de tupi, o idioma piripkura é como nós, falantes de português, entendermos parcialmente o espanhol ou o italiano por se originarem do latim.

A linguista Ana Suelly, da Universidade de Brasília (UnB), catalogou termos dos Piripkura em 2009 com a ajuda de Rita.

Tikum e Monde'i, ou como originalmente se escreve Tamanduá e Baita, conhecem palavras que definem o que comem, como o cacau (jumitauhúa ou tarapúa), o que evitam, como os insetos eiryy'ría, um tipo de abelha que faz zumzum em volta de cipós, ou a castanha, abreviada em um simples:. Mas o vocabulário dos Piripkura está diminuindo.

A professora percebeu que algumas palavras desapareceram lentamente com o tempo. Como as mulheres dominavam a produção de panelas de argila, a especialista diz que não há mais um termo para o objeto, por exemplo. O termo é um dos que constatam o desaparecimento lento de muitas palavras. "Os dois se comunicam sem a necessidade de precisar futuro ou passado", explica.

Hoje Tamanduá e Baita comunicam-se, basicamente, pelos chamados "fonídeos". Os dois imitam sons da natureza, como um "trec-trec-trec" para se referir aos sons de passos que quebram galhos, vocalizam o barulho da chuva ou da água correndo pelos igarapés, do peixe caindo na água ou, tragicamente, imitam o som das motosserras de invasores.

"A linguagem é a relação da minha experiência exterior com minha mente", explica Ana. "Para eles, por exemplo, não há mais palavras para definir rituais e festas".

A pesquisadora pretende reencontrá-los em algum momento ao fim da pandemia do novo coronavírus para coletar mais palavras, ao menos as que restaram. "Eles estão bem e protegidos durante a pandemia", afirma.

O que pode soar melancólico é instigante para a especialista. Para ela, Tamanduá e Baita apresentam uma riqueza de possibilidades para a espécie humana.

"Ao mesmo tempo, eles me deixam incrédula e fascinada com a humanidade. Como é possível viver mediante tanta perseguição? E, como tão distantes geograficamente da gente, nomearam tantos objetos, termos e ações comuns a nós no passado?", questiona.

Por meio dos Piripkura, podemos chegar à pré-história, indo até a origem do idioma mãe, o mesmo que nos definiu como humanos

Ana Suelly, linguista da Universidade de Brasília (UnB)

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