Gaúcha, Andreia Beatriz tem 48 anos e é médica no complexo penal da Mata Escura, em uma unidade de saúde prisional na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, além de lecionar no curso de medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia. No carro, a caminho do trabalho, ela tem ouvido muito "Strange Fruit", canção gravada por Billie Holiday em 1939 que fala sobre o linchamento de negros no sul dos Estados Unidos e tornou-se um chamado à luta.
Durante o atendimento nas unidades prisionais, ela costuma colocar para tocar "Diário de um Detento" (1997) e "Vida Loka, Pt. 2" (2002), dos Racionais MCs — as faixas mais pedidas pelos pacientes. Ela repara que as pessoas relaxam ao ouvir as músicas, tornando a consulta um momento de cuidado — como deve ser.
O trabalho de saúde dentro da cadeia se mistura com a atuação de Andreia no comando da Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta. Hoje estruturada como uma organização política — ou seja, instituição que se envolve nos processos políticos, mas sem pleitear cargos públicos —, a Reaja, como ela abrevia, começou a ser gestada em 2004 no seio do Movimento Negro Unificado (MNU), com reuniões que culminaram em uma campanha. No dia 12 de maio de 2005 foi feita uma vigília devido ao número alto de mortes de jovens negros, o marco zero da iniciativa.
"Em 2004 a conjuntura era parecida com a de agora: muitas mortes, falta de saneamento básico, escola sem qualidade, sobretudo a negação do direito de existência. Isso é histórico nas nossas vidas, essa impossibilidade de ser reconhecido em nossa humanidade", diz Andreia.
É dessa forma que nasce o desejo — a urgência, ela explica — de estar presente em espaços em que as pessoas pretas estejam em maior número e vivam nas piores condições. A atuação da Reaja é em favelas e no sistema prisional.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2019, o Brasil tem 748 mil pessoas encarceradas, e não há lugar suficiente para tanta gente privada de liberdade. A mesma pesquisa indica que, no fim de 2019, nota-se um déficit de mais de 300 mil vagas. No cenário nacional, negros são superrepresentados entre os presos (somam quase 66%). Em Salvador, existem 4.534 vagas, masculinas e femininas, para 4.855 pessoas presas — dessas, 4.118 são negras.
Segundo Andreia Beatriz, ainda que a população negra seja minoritária em Porto Alegre (cerca de 20%), por exemplo, e maioria em Salvador (cerca de 80%), o racismo age da mesma forma perversa nas duas cidades. A médica já tinha atuado dentro do sistema carcerário da capital gaúcha, atendendo a pacientes do regime semiaberto, mas é em 2007 que sua carreira dentro do complexo penal passa a envolver uma dimensão mais política. "Eu tenho esperança na luta", diz ela.