Não posso me calar

Médica busca reverter conta do racismo dentro de prisões e favelas em Salvador com saúde, política e arte

Thais Regina Colaboração para Ecoa, em São Paulo Raul Spinassé/UOL

Quando eu estou no sistema prisional, atendo uma pessoa e ela diz que nunca viu uma médica assim — e ela é uma pessoa como eu —, me lembro da minha família.

Meu pai e minha mãe são a minha referência para entender o que significa ser uma mulher negra nesse mundo, e qual é o meu papel com as pessoas que são parecidas comigo. A todo momento eles diziam: tu pode ser médica, mas tu não é uma médica negra, tu é uma mulher negra que vai se tornar médica; tu pode ser juíza, mas tu não vai ser uma juíza negra. Tu é uma mulher negra antes de qualquer coisa e isso é que vai te colocar no lugar em que você tem que estar.

Mantenho na minha mesa uma carta que meu pai escreveu à mão em 1966 para minha mãe, quando eles ainda eram namorados, em que ele dizia: "No embalo da luta pelo nosso lar, noto um sentimento mais digno, confidente, para sonhos e juntos lutarmos para tornar fácil [para] aqueles que no futuro serão dignos de nós".

A partir desse lugar que foi preparado para mim, eu posso trazer mais pessoas comigo. Seja na perspectiva de saúde, em uma conversa política, em um momento de solidariedade, seja na escola. Existem várias possibilidades. Amar pessoas pretas é o que me move. Olhar pra ti e entender muito do que tu vive, o que tu sente, o que se apresenta como barreira para ti — porque eu sei exatamente o que significa isso.

Então não dá pra eu me calar, entende?

Raul Spinassé/UOL
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Um coração ferido por metro quadrado

Gaúcha, Andreia Beatriz tem 48 anos e é médica no complexo penal da Mata Escura, em uma unidade de saúde prisional na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, além de lecionar no curso de medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia. No carro, a caminho do trabalho, ela tem ouvido muito "Strange Fruit", canção gravada por Billie Holiday em 1939 que fala sobre o linchamento de negros no sul dos Estados Unidos e tornou-se um chamado à luta.

Durante o atendimento nas unidades prisionais, ela costuma colocar para tocar "Diário de um Detento" (1997) e "Vida Loka, Pt. 2" (2002), dos Racionais MCs — as faixas mais pedidas pelos pacientes. Ela repara que as pessoas relaxam ao ouvir as músicas, tornando a consulta um momento de cuidado — como deve ser.

O trabalho de saúde dentro da cadeia se mistura com a atuação de Andreia no comando da Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta. Hoje estruturada como uma organização política — ou seja, instituição que se envolve nos processos políticos, mas sem pleitear cargos públicos —, a Reaja, como ela abrevia, começou a ser gestada em 2004 no seio do Movimento Negro Unificado (MNU), com reuniões que culminaram em uma campanha. No dia 12 de maio de 2005 foi feita uma vigília devido ao número alto de mortes de jovens negros, o marco zero da iniciativa.

"Em 2004 a conjuntura era parecida com a de agora: muitas mortes, falta de saneamento básico, escola sem qualidade, sobretudo a negação do direito de existência. Isso é histórico nas nossas vidas, essa impossibilidade de ser reconhecido em nossa humanidade", diz Andreia.

É dessa forma que nasce o desejo — a urgência, ela explica — de estar presente em espaços em que as pessoas pretas estejam em maior número e vivam nas piores condições. A atuação da Reaja é em favelas e no sistema prisional.

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2019, o Brasil tem 748 mil pessoas encarceradas, e não há lugar suficiente para tanta gente privada de liberdade. A mesma pesquisa indica que, no fim de 2019, nota-se um déficit de mais de 300 mil vagas. No cenário nacional, negros são superrepresentados entre os presos (somam quase 66%). Em Salvador, existem 4.534 vagas, masculinas e femininas, para 4.855 pessoas presas — dessas, 4.118 são negras.

Segundo Andreia Beatriz, ainda que a população negra seja minoritária em Porto Alegre (cerca de 20%), por exemplo, e maioria em Salvador (cerca de 80%), o racismo age da mesma forma perversa nas duas cidades. A médica já tinha atuado dentro do sistema carcerário da capital gaúcha, atendendo a pacientes do regime semiaberto, mas é em 2007 que sua carreira dentro do complexo penal passa a envolver uma dimensão mais política. "Eu tenho esperança na luta", diz ela.

Quem tem ideia do que significa o ódio antinegro entende que não existe momento oportuno, mas necessidade contínua de se organizar

Andreia Beatriz, médica, professora da UEFS e integrante da organização Reaja ou Será Morta

Meu nome é agora

Nos últimos 20 anos, a população prisional no Brasil escalou de forma vertiginosa. De acordo com o Infopen, em novembro de 2000 a população privada de liberdade era de 232 mil. Em dezembro de 2019, o número mais que triplica. Diante disso, Andreia indaga: "Qual é o momento propício? É agora, eu preciso construir isso."

A Reaja tem um jornal impresso, uma editora e um selo musical, pelos quais já foram lançados os livros "Assata Shakur - Escritos" (2016) — com traduções autorizadas de textos, entrevistas, poesias e cartas da militante norte-americana exilada em Cuba —, "Teoria Geral do Fracasso" (2017) e "Salvador, Cidade Túmulo" (2018), de Hamilton Borges, além de um disco de rap produzido por Diego 157.

Andreia Beatriz estreia como autora nesse ano, com um livro de poemas feitos a partir de sua experiência como médica nesses 15 anos de atuação no sistema carcerário.

Raul Spinassé/UOL Raul Spinassé/UOL

O pai de Andreia era uma referência dentro de sua comunidade em Porto Alegre. Na rua em que moravam, era uma espécie de mediador e também de porto seguro. "A gente acolhia muitas pessoas, volta e meia tinha filho de alguém que não tinha onde ficar, então ficava lá em casa. Cuidado preto, né?", Andreia relembra.

Curiosamente, uma das frentes de articulação da Reaja, a Escola Winnie Mandela, começa de forma similar em Salvador: no bairro em que mora hoje com sua família, Engenho Velho de Brotas, a médica percebeu que muitas crianças que brincavam com seus filhos, da mesma idade, apresentavam dificuldades para ler e interpretar texto. Começou a ficar atenta e, como se a ideia já a rondasse, passou a acolher crianças — em um fim de semana, eram por volta de 10 crianças dormindo na sua casa. "A gente entendeu que a escola era um caminho, mas não uma escola formal, e sim uma retaguarda junto com as famílias, um local de encontro e de fortalecimento da vida", explica.

Por definição, a Winnie Mandela é uma escola nacional de formação e ação panafricanista (ideologia que acredita na união dos povos de todos os países do continente africano na luta contra o preconceito) fundada em 2016 que se organiza de forma autônoma. O mobiliário foi doado por um dos módulos prisionais em que a médica trabalha, onde encarcerados produziram mesas, cadeiras, cômodas. A grade curricular contempla reforços das disciplinas de português, matemática, inglês, espanhol e história, mas também um currículo próprio, com visita a museus, passeios pela cidade, cineclube, aulas de boxe, jiu-jitsu, fotografia e música. A linha de conteúdo é tão vasta que os alunos produziram um videoclipe chamado "Estrela Preta" (assista abaixo).

A escola não é exclusiva para crianças, e também opera como um centro de reunião movido pela necessidade: já receberam adultos que não tinham se alfabetizado e desenvolveram um curso pré-vestibular. "Muitas crianças tinham diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e retardo de desenvolvimento, ou eram tidas nas suas escolas como problemáticas, e a gente conseguiu alfabetizar todas", conta Andreia. Hoje com 25 alunos, a Escola Winnie Mandela está temporariamente paralisada em função da pandemia do novo coronavírus.

Organizar a revolta

Ligia Bitencourt tem 22 anos e conheceu a Reaja em 2015, por meio da campanha realizada diante da Chacina do Cabula, em que 9 policiais da RONDESP, braço da Polícia Militar notório por casos de truculência na Bahia, assassinaram 12 pessoas, dentre as quais quatro adolescentes. O trabalho da Reaja na época foi pautar um debate político acerca dessas mortes, pedir a federalização do caso e acompanhar os familiares na luta por justiça. Ligia reconheceu a importância do trabalho desenvolvido e do discurso enunciado, e passou a seguir as ações de formação política da Reaja.

Segundo ela, a iniciativa a fez se sentir viva, organizando a revolta, insatisfação e o ódio que ela sentia em relação à realidade do povo preto. "Eu sou de movimento social desde os 14 anos, quando começo na luta por moradia, passo pelo movimento estudantil, de mulheres, movimento por transporte e encontro a Reaja, que foi a única organização que reuniu todos os princípios, métodos de ação e estratégias possíveis e fundamentais para que a gente alcance a libertação do nosso povo: a ação comunitária, solidariedade entre nós, percepção de mundo a partir do olhar e da condição do povo preto", diz.

A jovem estudante de direito é uma das coordenadoras da Escola Winnie Mandela e encara com responsabilidade e felicidade o trabalho. Hoje, Ligia sente que constrói estruturas sólidas de fortalecimento de pessoas negras, e reconhece a dificuldade em fazer isso no Brasil, muito devido ao mito da democracia racial, que cobre o racismo com um silêncio que pode parecer ingênuo mas, segundo a ativista, é tão assassino quanto a violência explícita.

Ligia gosta de ouvir rap, especialmente feito na cena baiana, como DARK MC, Chagas MC e Nova Era. Logo no começo da conversa, comenta que "Andreia não desperdiça palavras". "Eu a compreendo como uma das maiores lideranças do movimento negro nacionalmente", diz a estudante. Ela conta que, dentre os ensinamentos que absorveu da médica está a compreensão de que ações individuais precisam estar inseridas em um projeto coletivo, porque não há como alcançar a liberdade de forma isolada.

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O cheiro é de pólvora, e eu prefiro rosas

"Quando a gente viu o primeiro caso de coronavírus que foi anunciado, começamos a nos organizar. A gente entendeu que não iria demorar muito até chegar aqui", relembra a médica, fazendo referência ao mês de março. Junto a outros integrantes da organização, Andreia começou a planejar qual seria a atuação da Reaja na pandemia.

A suspensão de visitas significa, para as pessoas presas, a privação de muitas coisas que são fornecidas pelos familiares — tais como alimentação, material de higiene pessoal, material de higiene coletivo, roupas e medicações.

O primeiro passo então foi abrir um diálogo com as pessoas presas nas unidades em que a Reaja atua: Penitenciária Lemos Brito, Colônia Agrícola Lafayete Coutinho, Presídio de Salvador e anexo e Conjunto Penal Feminino. O segundo passo foi fazer uma campanha nacional para obter doações. Até agora houve duas distribuições e existe uma terceira planejada. Foram entregues sabonetes individuais, sabão líquido para lavagem das mãos, sabão em pó para lavagem da área comum, água sanitária e papel higiênico. São produtos que esgotam rapidamente, então as entregas precisam ser periódicas.

Na primeira, a organização conseguiu entrar nas unidades para descarregar as doações e explicar o que é a covid-19, como é transmitida, quais os riscos e quem são as pessoas mais suscetíveis a contrair a doença.

Uma coisa que me mobiliza muito é quando a gente convida alguém para uma atividade dentro do complexo prisional e essa pessoa reencontra um amigo de infância ali -- o que é muito frequente. Para aquelas pessoas que estão presas, isso é se reconectar com a sua história, com as suas possibilidades diante de tanta dor

Andreia Beatriz, médica, professora da UEFS e integrante da organização Reaja ou Será Morta

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Desde 2005, a Reaja está presente ainda no complexo penal por meio de uma ação chamada Cultura Intramuros, que leva para as cadeias de rodas de capoeira e oficinas de escrita a discussões sobre educação, saúde, direitos políticos, paternidade, ou até mesmo acerca do papel da própria prisão como instrumento de controle social. Todos os livros da organização foram lançados dentro dos presídios.

Parte dessa ação consiste na exibição de filmes. Funciona da seguinte forma: os presos colocam 300 ou 400 cadeiras enfileiradas na área comum e, no cair da noite, projeta-se um longa-metragem em uma parede. "Tem pessoas que estão sem tomar sereno durante oito ou dez anos, porque as unidades fecham à noite, então as pessoas não podem respirar esse ar. O cinema permite essa reconexão", diz Andreia.

Diante de uma atuação tão vasta, Andreia Beatriz sabe bem o que a move: o objetivo é o direito à vida. "Parece impalpável, né? As pessoas querem educação, comida, como a gente luta pela vida?", provoca. "Quilombo constrói, se organiza; quilombo não pede, demanda", declara — lembrando uma frase de Assata Shakur que, durante entrevista a Ecoa, a médica cita: "Eu sou uma mulher revolucionária preta e, por definição, isso me faz parte do exército de libertação do povo preto."

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