Minha Carne

Preta Ferreira construiu moradias populares, foi encarcerada e, agora, quer reduzir pena de presas com leitura

Elena Wesley Colaboração para Ecoa, no Rio de Janeiro (RJ) Thiago Santos/Divulgação

Desde criança Preta Ferreira conhece as dinâmicas da exclusão social e racial do Brasil. Foi na estrutura improvisada das ocupações de São Paulo que se criou e se tornou ativista pelo direito à moradia no Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), instituição fundada por sua mãe, Carmen Silva. Mas Preta sentiu essas dinâmicas na pele, quando, antes de qualquer julgamento, esteve encarcerada nas penitenciárias de Franco da Rocha, Região Metropolitana de São Paulo, e de Santana, região norte da capital paulista, sob acusação de suposta extorsão a moradores de ocupações.

A poesia que lhe valeu de terapia naqueles dias de tranca vai virar canção em álbum que ela prepara em parceria com Bia Ferreira, Doralyce e Maria Gadú. "É difícil viver de música nesse país, mas quero trazer esperança para as pessoas quando ouvirem minhas músicas, que todo mundo perceba o que eu tenho a oferecer: amor, liberdade."

Quando ganhou os noticiários, sua prisão mobilizou do papa Francisco à filósofa e ativista americana Angela Davis. Hoje, ela retribui o apoio que recebeu ajudando outras presidiárias. Com seu livro "Minha Carne - Diário de uma Prisão", quer ajudar a reduzir penas de presas e levar palestras e atendimento psicossocial a penitenciárias.

Nesse papo com Ecoa, Janice Ferreira da Silva (nome de batismo de Preta Ferreira) expande o debate sobre o déficit habitacional de São Paulo e sua carreira na arte, para falar sobre seus futuros projetos, militância raiz, ataques na internet e BBB.

Thiago Santos/Divulgação
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Artivismo

Ecoa - O ativismo e a arte fizeram parte da sua vida desde a infância. Como foi crescer em área de ocupação?

Preta Ferreira - Eu já era artista desde criança, cantava para as flores. Trouxe minha arte para dentro do movimento, descobri o poder da arte nele. Eu era muito criticada na escola durante a adolescência. Era sem teto e estudava na [Escola Estadual] Caetano de Campos, na Consolação, então eu sofria muito preconceito. Fazia capoeira pra me defender. Daí, inventei de fazer uma festa junina na ocupação e chamei todas as pessoas que me criticavam. A arte tem o poder de entrar em todos os lugares, foi assim que eu descobri. Não separo meu lado ativista com meu lado artístico, sou uma artivista.

E essa experiência está muito ligada à sua mãe, né? Dá para separar a Carmen mãe da Carmen liderança do MSTC?

Menina? (risos) Eu entrei no movimento por causa da minha mãe. Ela foi morar em ocupação para sobreviver. Quis ficar perto dela para saber o que ela estava fazendo. A gente conversa, vê o que é melhor para as duas, mas ela é a cabeça, eu tenho meu trabalho. A gente acredita uma na outra. Eu não daria meu nome para uma coisa que não fosse correta. Jamais! Eu saí com aquela bandeira do MSTC porque fui presa por ser liderança de movimento de moradia.

São Paulo tem um déficit habitacional de cerca de 358 mil moradias. Que soluções o MSTC reivindica?

A economia do país está quebrada, e a gente vê a especulação imobiliária construindo e construindo. Quem vai morar [nessas construções novas], se os trabalhadores estão na rua por falta de emprego?

É preciso criar políticas públicas para trabalhadores de baixa renda. Em setembro, o MSTC vai entregar 121 unidades do "Minha Casa Minha Vida" na Avenida 9 de Julho, no antigo Hotel Cambridge. O MSTC tem esse papel de mostrar para os governantes que é possível, sim, fazer política pública para o trabalhador de baixa renda e que esses prédios abandonados podem virar moradia paga, por um preço justo. Essa política geraria emprego e resolveria o déficit de habitação de São Paulo. Existem mais prédios abandonados do que pessoas precisando de moradia.

Se houvesse competência dos governantes não haveria necessidade de existir movimento de moradia. Quando um prédio de ocupação cai e nos acusam, não é a liderança que tem que ser presa, é o governante que está no poder e não cumpre com o direito constitucional. A gente precisa parar de achar que político faz favor e responsabilizá-los pelo trabalho que não cumprem.

A minha militância me levou a entregar 121 apartamentos para trabalhadores de baixa renda. Me levou a escrever um livro que vai ressocializar pessoas que estão na prisão e diminuir o tempo de pena através da leitura. A minha militância é essa!

Preta Ferreira

Thiago Santos/Divulgação

Prisão

É comum que associem pessoas pretas a narrativas de dor, como se essa fosse uma característica inerente à nossa história. No seu livro, "Minha Carne", você consegue expressar a dor e a revolta, mas também fala de ancestralidade, arte e amor. Como foi essa construção?

Vivi a arte e vivi a prisão. Eu queria coisas para amenizar aquele sofrimento, então o que me salvou, além da consciência de classe, foi a arte. Existem outras formas de estar em liberdade. A arte me salvou, ela tem esse poder. Eu já sabia disso, mas tive um entendimento maior na prisão.

Existe alguma história em particular das mulheres com quem conviveu na prisão que te marcou?

Não tem uma história única, todas essas mulheres me marcaram, me fizeram pensar que, se minha mãe tivesse matado meu pai, ela também estaria ali. Quantas coisas ela sofreu assim como essas mulheres, quantos pedidos de socorro não foram atendidos. É muito marcante porque a prisão me fez questionar como a gente está fortalecendo quem pede socorro, para que não vá para a prisão.

Dentro do MSTC, se um homem agredir sua companheira, ele tem que sair. Todo o aparato jurídico e social será dado a ela. O movimento é liderado por mulheres que sofreram violência doméstica, minha mãe inclusive. Acho que a gente precisa de mais lugares de escuta e ações efetivas.

Todo dia eu recebo histórias de ex-presidiárias que querem se reerguer. E eu quero criar oportunidades, porque eu sei que a prisão não ressocializa, é tudo mentira. Conto essas histórias e todos os dias eu sou marcada por elas, e pela minha própria vida. A prisão é uma marca que não sai. Uma mulher que estava presa comigo conseguiu provar sua inocência. Mas quem vai devolver os dois anos que passou na prisão? A prisão rouba sua vida. O tempo que passei presa nunca mais recupero.

Você não conseguiu provar sua inocência ainda, né?

Ainda não teve julgamento, seguimos aguardando. Todo mês tenho que ir ao fórum assinar minha carta de alforria. Agora não estou indo mais por causa da pandemia. As medidas cautelares que me proibiam de sair de casa, de viajar, o doutor Augusto [de Arruda Botelho, advogado de Preta Ferreira] conseguiu quebrar, mas acabou que continuo presa. Saí da prisão e fiquei em casa. Quando eu pude sair de casa, começou a pandemia. Eu dizia que queria que todo mundo ficasse preso só um dia para entender como é, e olha no que deu?

Você está muito envolvida com a questão do encarceramento em massa. Tem a ver com essa experiência pessoal ou era um tema que já fazia parte da sua trajetória?

Eu sempre gostei de trabalhar com ressocialização, com pessoas em situação de rua, menores em abrigos. Tenho uma relação pessoal com o social. Cresci num lugar de marginalidade, nasci na periferia, onde a gente sabe que os números de violência policial são grandes. Eu não poderia ser contra essas pessoas, tenho amigas que foram presidiárias antes de eu ser presa, uma que esteve encarcerada e hoje é advogada. A gente conseguiu ressocializar essas pessoas a partir do movimento social. Todo mundo merece oportunidades para mudar. Foi o movimento que me deu essa percepção.

A gente sabe que existem pessoas boas e ruins em todos os lugares, mas meu papel na sociedade não é julgar, é criar possibilidades para que as pessoas não entrem para a vida do crime, ou para que saiam. As cadeias estão lotadas por falta de oportunidade, enquanto se tira investimento de educação para criar mais cadeia.

Tem algum projeto que você esteja realizando para agir diretamente com isso?

Sim, sou madrinha da cooperativa Tereza, que é ligada à Humanitas, da Patricia Marino, com um projeto de reduzir a pena das reeducandas através do livro "Minha Carne". A cooperativa trabalha com artesanato, então essa renda é revertida para as presas e suas famílias. Além de atendimento psicológico, quero levar também dentista e palestras. A gente pretende começar pelo Maranhão, onde elas já atuam. A cada livro lido é um dia a menos de pena. Quero levar o "Minha Carne" para os presídios do Brasil inteiro.

Essa política de cancelamento é diferente para preto, porque preto no Brasil já nasce cancelado

Preta Ferreira

Reprodução/Instagram

Música e Televisão

E os projetos pessoais? O álbum com a Maria Gadú vai sair?

Vai sair! Inclusive eu estou em Franca. Agora eu faço parte da Colmeia 22, Bia Ferreira e Doralyce são minhas produtoras. Todas as músicas do livro vão pro álbum. A gente está fazendo alguns arranjos aqui para mandar para Maria e semana que vem a gente estará com ela para começar.

Houve uma comoção nacional por conta da desistência do Lucas Koka Penteado do BBB21, e você esteve desde o início disponível para a família e se posicionando contra as violências que ele sofreu na casa, que partiu inclusive de pessoas pretas. O que explica isso?

Talvez esse espírito de capitão do mato, de querer estar acima das pessoas. É a soberba que destrói o ser humano, caráter não tem cor. No começo todo mundo acusou e odiou o Lucas. Eu fui a primeira pessoa a postar uma foto e dizer que eu o conhecia, que ele não era aquilo que diziam. As pessoas no Brasil são muito maria-vai-com-as-outras, não têm a cultura de correr atrás. Elas precisam fazer uma análise antes de criticar.

Preto no Brasil é assassinado a cada 23 minutos. Eu não posso ser mais uma que vai cancelar gente preta. A gente tem que repensar esses modelos de punição, porque a cultura do cancelamento leva à morte. Aquela mulher que o noivo abandonou e se casou com ela mesma foi cancelada e se matou. Aí temos o exemplo da [Gabriela] Pugliesi [cancelada por aglomerações na pandemia]. Tá onde? Tá na Globo! Porque é mulher loira? A GNT cancelou o programa da Karol Conká. A cultura do cancelamento é mais um fomento ao genocídio da população preta. Eu não posso cancelar ninguém.

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