É comum que associem pessoas pretas a narrativas de dor, como se essa fosse uma característica inerente à nossa história. No seu livro, "Minha Carne", você consegue expressar a dor e a revolta, mas também fala de ancestralidade, arte e amor. Como foi essa construção?
Vivi a arte e vivi a prisão. Eu queria coisas para amenizar aquele sofrimento, então o que me salvou, além da consciência de classe, foi a arte. Existem outras formas de estar em liberdade. A arte me salvou, ela tem esse poder. Eu já sabia disso, mas tive um entendimento maior na prisão.
Existe alguma história em particular das mulheres com quem conviveu na prisão que te marcou?
Não tem uma história única, todas essas mulheres me marcaram, me fizeram pensar que, se minha mãe tivesse matado meu pai, ela também estaria ali. Quantas coisas ela sofreu assim como essas mulheres, quantos pedidos de socorro não foram atendidos. É muito marcante porque a prisão me fez questionar como a gente está fortalecendo quem pede socorro, para que não vá para a prisão.
Dentro do MSTC, se um homem agredir sua companheira, ele tem que sair. Todo o aparato jurídico e social será dado a ela. O movimento é liderado por mulheres que sofreram violência doméstica, minha mãe inclusive. Acho que a gente precisa de mais lugares de escuta e ações efetivas.
Todo dia eu recebo histórias de ex-presidiárias que querem se reerguer. E eu quero criar oportunidades, porque eu sei que a prisão não ressocializa, é tudo mentira. Conto essas histórias e todos os dias eu sou marcada por elas, e pela minha própria vida. A prisão é uma marca que não sai. Uma mulher que estava presa comigo conseguiu provar sua inocência. Mas quem vai devolver os dois anos que passou na prisão? A prisão rouba sua vida. O tempo que passei presa nunca mais recupero.
Você não conseguiu provar sua inocência ainda, né?
Ainda não teve julgamento, seguimos aguardando. Todo mês tenho que ir ao fórum assinar minha carta de alforria. Agora não estou indo mais por causa da pandemia. As medidas cautelares que me proibiam de sair de casa, de viajar, o doutor Augusto [de Arruda Botelho, advogado de Preta Ferreira] conseguiu quebrar, mas acabou que continuo presa. Saí da prisão e fiquei em casa. Quando eu pude sair de casa, começou a pandemia. Eu dizia que queria que todo mundo ficasse preso só um dia para entender como é, e olha no que deu?
Você está muito envolvida com a questão do encarceramento em massa. Tem a ver com essa experiência pessoal ou era um tema que já fazia parte da sua trajetória?
Eu sempre gostei de trabalhar com ressocialização, com pessoas em situação de rua, menores em abrigos. Tenho uma relação pessoal com o social. Cresci num lugar de marginalidade, nasci na periferia, onde a gente sabe que os números de violência policial são grandes. Eu não poderia ser contra essas pessoas, tenho amigas que foram presidiárias antes de eu ser presa, uma que esteve encarcerada e hoje é advogada. A gente conseguiu ressocializar essas pessoas a partir do movimento social. Todo mundo merece oportunidades para mudar. Foi o movimento que me deu essa percepção.
A gente sabe que existem pessoas boas e ruins em todos os lugares, mas meu papel na sociedade não é julgar, é criar possibilidades para que as pessoas não entrem para a vida do crime, ou para que saiam. As cadeias estão lotadas por falta de oportunidade, enquanto se tira investimento de educação para criar mais cadeia.
Tem algum projeto que você esteja realizando para agir diretamente com isso?
Sim, sou madrinha da cooperativa Tereza, que é ligada à Humanitas, da Patricia Marino, com um projeto de reduzir a pena das reeducandas através do livro "Minha Carne". A cooperativa trabalha com artesanato, então essa renda é revertida para as presas e suas famílias. Além de atendimento psicológico, quero levar também dentista e palestras. A gente pretende começar pelo Maranhão, onde elas já atuam. A cada livro lido é um dia a menos de pena. Quero levar o "Minha Carne" para os presídios do Brasil inteiro.