Nessa sua escalada da conscientização, você sempre se reconheceu um homem negro ou foi algo que veio com o rap e a militância?
No Brasil você não nasce um homem negro, você se descobre. E a descoberta não é um negócio muito tranquilo, é uma coisa muito dolorosa. Eu entendi que era negro com 17 anos de idade. E, quando você descobre, volta o olhar. Não tem como não voltar. E aí é traumatizante, porque você percebe todos os momentos de dor e incômodo que você não sabia que eram racismo nem que passou porque você era preto. Na época em que ninguém escolhia para ser o noivo da festa de São João, a festa que ninguém combinava com você para dançar, brincadeiras que os outros meninos, brancos, da favela faziam com você, ou até os outros meninos pretos também, do cabelo, do nariz, chamando você de macaco... Quanta dor aquilo causava.
Por isso que às vezes, hoje, eu acho que os pais mais antigos protegiam seu filho para não falar sobre isso, como forma até de fugir, porque não é uma coisa fácil. Você pode ter um despertar em que você vai ficar meio neurótico, raivoso, rancoroso, magoado, vingativo. Psicologicamente, é uma porrada muito grande. E, depois, quando você descobre, passa a ver onde está acontecendo isso com você. Aí é mais doido como você administra esse momento e esses conflitos que você vai ter. Porque agora você enxerga e entende como está acontecendo. É o terceiro olho que o Malcolm X fala. Você fica: "Caralho, que porra de país escroto é esse?". E aí o rap, na época, ajudou muito a abrir o olho da autoestima, né? Atitude, história que a gente nunca viu nos livros. Eu tinha ódio de história na escola. Só fiz até a sexta [série], e eu tinha ódio dessa porra da escola, porque parte das matérias não interessava para o meu dia a dia, e história, que era a que eu gostava, comecei a gostar de saber, a história do negro que era contada lá era só ele amarrado, levando chicotada. Era muito difícil.
Você se descobriu negro por causa da convivência com a galera da militância política?
Não, foi por causa de uma música. A militância política só discutia questão de classe, inclusive identificava a questão racial como uma ameaça, uma divisão da luta. Até hoje ainda tem isso. Para você ver como não é novo (risos). E foi a música "Negro limitado", dos Racionais. Essa música deu um choque, é um sacode. Ela chama o negão lá, que está achando que está abalando com as roupas de marca, malandragem, arma e tal, essa vida de submundo de crime, e fala: "Roupas caras de etiqueta não valem nada/ Se comparadas a uma mente articulada", rapá. Tá vacilando, se acha o malandrão, mas "não sabe sequer dizer, veja só você, o número de cor do seu próprio RG". Inclusive até hoje eu sei de cor o número do meu RG por causa dessa música. Então tem uma utilidade social enorme (risos).
Você fica: "Caralho, esse cara está falando de mim." Aí você ouve de novo, que você não acredita. E vem só porrada. E a cabeça... Você se olha no espelho: "Deus do céu, que isso, não, não pode ser." Escuta de novo. Sua cabeça vai a mil. E você se descobre. Aí começa um novo mundo, uma outra caminhada, uma outra trajetória. Você vê o mundo de outro jeito. Você sente um poder do caralho: "Puta que pariu, que força é essa?". Aí, na época já veio o filme do Malcolm X (de Spike Lee, 1992), que era outra loucura, Alabama, 1965 (passeatas pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, na cidade de Selma); Brasil, 1994.
E eu passei um tempo morando nas favelas de São Paulo, ali na Zona Sul, fui morar na Zona Leste. Fiquei lá de 1995 para 1997. Trabalhava com o [produtor] Milton Salles vendendo disco. É o cara que criou o Racionais, ele que me apresentou eles. Trabalhei e usufruí muito da cultura do rap junto a um projeto que tinha no Geledés chamado Pode Crer, um grupo de jovens pretos dirigido por uma organização de mulheres negras. Ensinou a gente a ser homens menos piores, a vestir a camisa "Machistas, não passaremos".
Você falou do assassinato do seu filho. Com a sua trajetória, sua realidade econômica foi melhorando. Mas isso também não te livrou de ser parte da estatística dos jovens negros que morrem no Brasil a cada 23 minutos. Você pode falar como foi [Malcom Jonas foi morto aos 17 anos, em 30 de agosto de 2015]? Em algum momento você imaginou que estava mais protegido desse tipo de coisa?
Quando você melhora, tem que arrastar todos os outros, você vira meio que o centro da sustentação. Então não melhora assim. Parece que você melhorou mais do que é na prática. Com a visibilidade, as pessoas acham que isso quer dizer um monte de grana. Nem sabem a quantidade de conta que tem por trás das nossas aparições públicas.
Meu filho teve um problema de conflito com jovens da idade dele. História de bairro. Sofreu muito com a separação minha e da mãe dele. Ficou morando um tempo com a mãe, depois veio morar um tempo comigo, e ficou com essa dificuldade de adaptação. Depois quis morar um tempo com a avó, a minha mãe. Acho que essa passagem foi meio tumultuada na cabeça dele, e ele procurava muito se encontrar. Ele gostava muito de esporte, de rap, de skate. Quando voltou a morar comigo, a gente estava muito nas coisas junto, e a galera não acreditava mesmo que era pai e filho, porque eram muito próximos os estilos, a vivência. E a gente tinha uma relação amistosa, mas muito tensa, no sentido dessa distância. Ela gerou também muitas visões próprias. Era um cara sempre de visão própria, dele, mesmo novo. E aí começou a arrumar esses conflitos de jovens. Teve treta mesmo, de um ameaçar o outro, disseram que iam dar um tiro, negócio de arma e tal. Nessas confusões, ele ficou uns meses em sistema socioeducativo. Mergulhou muito nessa cultura, de rua, de treta de bairro. A internet também dá essa visibilidade maluca. Acabou que ele saiu do centro socioeducativo e, num dia em que foi cortar cabelo, outros jovens levaram ele para uma emboscada e ele foi morto com tiro. Aí tem várias versões, de que ele falou alguma coisa, que não, que tinha uma ameaça, que não tinha. Infelizmente, a gente luta com a lógica numa guerra que também atinge a gente. Aí você se sente mal, impotente, culpado, fica se perguntando onde é que você errou que não conseguiu proteger a pessoa.
Agora mesmo, na época da Covid, meus irmãos pegaram, minha mãe pegou. Caramba! Que é isso? Você fica pensando: "Que porra é essa? É uma provação o tempo todo?". E olhe que a minha mãe, a gente isolou ela numa cidade do interior, porque tinha menos casos, para, quando amansasse aqui, a gente trazer de volta. Nesse percurso, alguma brecha ela deu e pegou. E foi muito dolorido. O mais doido é que — olha como é louca a vida. Nesse período [Cufa Global], também, eu estava separado da minha companheira, a gente já estava morando cada um na sua casa. Nessas idas e vindas, ela engravidou e decidiu levar a gravidez à frente. Quando vi ela falar para mim, preocupada, que estava grávida e que ia levar a gestação adiante — acho que ela pensava bem que eu não ia ligar para porra nenhuma, estava morrendo de medo, o término não foi muito tranquilo também —, falei que a escolha que ela fizesse eu ia apoiar. No dia dos exames, ela saiu chorando da clínica. Eu disse: "O que foi que houve, criatura?". Ela falou: "É que não é uma criança, são duas." Comecei a chorar também, deu aquele desespero. Você não sabe o que vai fazer, uma coisa assim, súbita, e a gente não estava bem afetivamente, a relação não estava legal. E eram duas meninas. Viajei nos Estados Unidos na época e lá tudo é exagerado, aquelas grandes lojas de artigos específicos. Tinha uma loja de bebê gigante, e tudo barato. Com os dólares que eu tinha levado sobrando, gordurinha que tinha, trouxe um monte de roupa. Escolhemos até o nome delas. Quando chegou para fazer os exames [de novo], o médico disse que não tinha uma notícia boa para dar. Eu falei: "Pô, doutor, chega de notícia ruim na minha vida, pelo amor de Deus." Aí ele disse: "Não, é que o coração de um dos bebês parou de bater." Eu fiquei: "O que está acontecendo na minha vida, meu Deus? Tanta coisa ruim." Ele disse: "Mas vamos focar aqui no positivo." E eu: "O que é, doutor, que está positivo na minha vida? Está dando tudo errado." Ele: "Não, na criança que ficou." Eu até brinquei, estava ainda chorando: "É, pelo menos roupa repetida ela vai ter um monte." Aí ele disse: "Rapaz, tem um problema." Eu: "O que é, doutor, agora, pelo amor de Deus?". "É que não é uma menina, é um menino." Aí era o José.
Ele está com quantos anos?
Quatro. Ele é muito parecido com o Jonas, o meu filho que faleceu, quando era pequeno. Essas coisas loucas. Aí reatamos, estou morando junto novamente com a mãe dele. É outra vivência você ser pai com 40 anos de idade, com condições para criar o seu filho. Você vê o tempo, você vê que pode parar para brincar com ele, que pode levar ele num parque, na piscina de bolinhas, para comer algodão-doce, para o zoológico, para andar de patinete na beira-mar. Porra! O tempo livre para você conviver com o seu filho, as condições materiais para você conviver com o seu filho — que na minha época com o Jonas eram muito sacrificadas, porque eu estava o tempo todo tendo que arrumar dinheiro, sair na rua, não viver esse momento, a infância, que é quando se solidificam valores. Você vê a importância disso, né?
Eu tenho um vínculo muito grande com o meu filho, você vê nas fotos, os vídeos. E ele me diverte muito, e é supersensível. Quando eu estou meio caladão, triste, ele fala: "Pai, o que é você tem?". Eu digo: "Eu estou meio triste." "Opa, pai, não fica assim." E aí começa a trocar ideia, ele é muito falador. Um dia eu estava mandando um vídeo dele para o Brown, que ele está fazendo beatbox, ele faz uns barulhinhos na boca, ele tem muita noção de tempo da batida. Ele faz "tum-tum-tá, tum-tum-tum-tá". Aí eu digo: "Faz lento." Aí ele faz lentinho, a mesma batida. "Faz rápido." Ele faz rápido. "Faz no tempo dessa música aqui." Eu boto outro tipo de música, ele pega a velocidade também. Impressionante. Aí eu estava mandando para o Brown. Ele falou: "Aí, Zezé, esquece. Esse aí já é da música, não adianta."