Um homem na estrada

Politizado pelo rap, Preto Zezé se transformou em uma das maiores lideranças globais pelas favelas brasileiras

Kamille Viola Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro Divulgação

A história de Preto Zezé é marcada por violência e dor, como a de tantas pessoas negras e pobres no Brasil. Hoje presidente da Central Única das Favelas nacional, ele é o mais velho dos cinco filhos de um casal de retirantes que migraram do interior do Ceará para a capital. Criado nas Quadras, favela de Fortaleza, precisou largar os estudos aos 12 anos para trabalhar, lavando carros, e ajudar a mãe, doméstica, e o pai, pintor da construção civil. Logo tomou gosto pela rua, pela pichação e os bailes funk. Mas no meio do caminho tinha o hip hop e, por causa dele, a politização.

"A partir daí minha vida nunca mais foi a mesma. O rap ajudou a essa coisa da identidade, do olhar crítico. E o hip hop aqui do Ceará surgiu de uma junção de gente que vinha do movimento estudantil, com toda aquela experiência política, aquela formação de esquerda, e nós, que vínhamos da rua, dos bailes funk, da pichação. Isso deu ao movimento estudantil mais político uma capilaridade nas favelas, e deu uma leitura política de realidade que até então a gente não tinha", lembra o empresário, rapper e ativista de 43 anos, que tem sete álbuns e no ano passado lançou um livro sobre sua trajetória, "Preto Zezé - Das Quadras para o mundo" (CeNE Editora).

Foi o rap também (mais especificamente, a música "Negro limitado", dos Racionais MC's, do disco "Escolha o seu Caminho", de 1992) que o fez despertar para sua condição de homem negro, um momento muito difícil. "No Brasil você não nasce um homem negro, você se descobre. E a descoberta não é um negócio muito tranquilo, é uma coisa muito dolorosa. Eu entendi que era negro com 17 anos de idade. E, quando você descobre, volta o olhar. Não tem como não voltar. E aí é traumatizante, porque você percebe todos os momentos de dor e incômodo que você não sabia que eram racismo nem que passou porque você era preto", recorda.

Logo ele criou o Movimento Cultura de Rua, que o levou a ter contato com Celso Athayde, fundador da Cufa (Central Única das Favelas). Se no início ele implicava com aquele cara que tinha uma visão mercadológica do hip hop, então se viu em uma ação com ele. Dali, foi chamado para trabalhar na ONG. Entre 2004 e 2012 atuou como coordenador estadual da Cufa Ceará e, em 2012, tornou-se presidente nacional da organização. Em 2015, depois de um evento da entidade na ONU (Organização das Nações Unidas), em Nova York, Athayde convida-o para ser presidente da Cufa Global. Ficou no cargo até 2020, quando voltou a assumir a Cufa Nacional, devido à gravidade com que a pandemia da Covid-19 tem atingido as favelas do Brasil.

Em parceria com empresas, a ONG criou o projeto Mães da Favela, que tem foco nas chefes de família e tem feito distribuição de alimentos, material de higiene e limpeza, e transferência de renda, com o chamado Vale-Mãe de R$ 120 pelo período de três meses. Mais de 908 mil de famílias, ou seja, cerca de 3,6 milhões de pessoas (pensando-se em quatro membros por família) já foram atendidas. Foram mobilizados mais de R$ 113 milhões.

Em bate-papo com Ecoa, ele defende que o mais importante agora é deixar o ódio para lá e as divergências políticas para enfrentar o grande problema econômico que acomete o país e deve se agravar ainda mais. "Talvez a gente chegue em 25 milhões de desempregados, vamos ter mais de 60 milhões de pessoas passando fome. Tem que ter um grande mutirão para que se não deixe nenhum brasileiro passar fome. Isso, sim, é ser patriota. Isso, sim, é gostar da pátria, da nação", manda.

Ecoa: Como tem sido a atuação da Cufa agora na pandemia?

Preto Zezé: O foco nosso tem sido comida, economia — na captação de dinheiro, para fazer transferência de renda e ajudar quem perdeu seu pequeno negócio —, a parte de material de higiene e limpeza, e a logística. Como a gente transformou os espaços da Cufa em centros de logística, você recebe dez toneladas de carne da JBS, mas tem que manter isso congelado, tem que ter gente para carregar e descarregar, selecionar, fazer cadastro. Então também parte dessa grana é para bancar essa logística, porque isso tem um custo pesadíssimo. Se você tem aí uma média de quatro pessoas por família, nós temos 14 milhões e quatrocentas pessoas atendidas por essas ações da Cufa. Nós mobilizamos mais de R$ 113 milhões. E a Cufa acabou virando a interface entre as grandes empresas que querem fazer chegar em escala e lugares onde ninguém vai e as pessoas, o público vulnerável, que precisa e não sabe a quem recorrer.

Lançamos inicialmente um documento com 14 propostas de engajamento empresarial e governamental para diminuir os impactos da Covid, está lá no site da Cufa. Fala da história da renda básica, de aluguel de espaço para alojar idosos, de frentes avançadas para medir temperatura, oxigênio — agora, inclusive, como elas são necessárias, com essas aberturas malucas da economia e o povo todo na rua —, cuidar da pressão, gente que tem diabetes. Você tem a parte de logística, que é a parte que separa as cestas básicas, as pessoas vão para supermercados, pegam as compras, dividem tudo. Você tem a parte das redes que vão entregar nos territórios mais vulneráveis também, as pessoas que vão de casa em casa, nas mães solteiras, principalmente. São as redes que estão indo nos territórios, com máscara, EPI. E, basicamente, essa estrutura, o organograma — a central de gestão, planejamento e estratégia. Aí você tem a rede solidária, a parte de operacional, que vai pegar, que vai deixar e tal, e tem a parte da comunicação — que a comunicação das campanhas oficiais foi baseada meio que numa publicidade de álcool em gel, quando grande parte das pessoas não tem água nem sabão para fazer o básico, que é lavar as mãos.

Quarenta por cento das pessoas não têm acesso a um sabonete nas favelas, não têm acesso regular a água. Como você faz? Então a gente também focou nesse espaço. Dentro dessas centrais existe essa estrutura, que faz a gestão, arrecadação, prestação de contas, transparência. A outra parte forma a galera dentro, porque tem que ter os protocolos de segurança, o cara tem que saber: a máscara, distanciamento, as roupas, a gente compra os EPIs, tudo direitinho. A parte de comunicação, para produzir uma comunicação acessível para divulgar dados oficiais e para combater fake news, porque tem muita.

O povo está espalhando que você está indo para o hospital e lá o cara te dá uma injeção e você pega Covid e morre, ou então morre de outra coisa e dizem que a culpa é da Covid. E as pessoas acreditam nisso. E elas deixam de ir para o médico e morrem em casa por causa disso. Loucura total.

Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas

Além da pandemia, quando vocês atuam em favelas já existem questões, como a violência...

Que não parou, né? Inclusive a Covid está concorrendo com a violência, quem mata mais.

...tanto por áreas controladas por tráfico e milícia como com a incursão policial, que está acontecendo mesmo aqui no Rio, onde foi proibida. Vocês têm encontrado dificuldade de chegar nas pessoas em função da violência?

No nosso caso aqui, na Cufa, no Brasil, a gente não tem tido, porque a gente não chegou na favela para tratar da Covid, a gente está na favela faz muito tempo. No Rio, por exemplo, nós estamos em favela de milícia, de facção diferente, favela de qualquer trem. Não há esse problema para conosco. O que a gente está vendo é um recrudescimento da violência policial por outros motivos, na minha avaliação. E também por um histórico de lógica da relação da polícia e de como a polícia herdou posturas autoritárias e trocou seus inimigos, que antes eram os comunistas, na época do regime militar — e como ela parece ter a mesma base de formação da época, inclusive de hierarquia e militarização.

Hoje, o culpado, até provar o contrário, é o jovem negro de favela. E a lógica tem sido de guerra contra esses territórios, o que acaba vitimando pessoas inocentes. Para nós, é preocupante, porque não está na agenda do dia discutir a interrupção dessas ações desastrosas nas favelas. As pessoas se mobilizam com o George Floyd (homem negro assassinado por um policial branco em 25 de maio de 2020, em Minneapolis, nos Estados Unidos), mas, no Brasil, tem 45 mil George Floyds sendo mortos todos os anos, e o Brasil é indiferente. Tem uma questão racial pesadíssima, de recorte de classe, perfil de território, que é herança e é estruturada no Brasil. Senão parece que é um caso isolado, como o comandante das polícias disse. Quando acontece uma violência ou um policial faz uma merda, aí ele vem para a mídia e fala: "Não, isso é um ato isolado, a corporação não concorda com isso, esse policial vai ser afastado." Pasme: esse policial é afastado da rua e vai trabalhar onde? No RH (Recursos Humanos) das polícias. Loucura. E isso é um caso isolado que se repete todo dia.

Vocês estão fazendo essas ações articulados com movimentos que já atuam nos territórios periféricos, e você defende que o Brasil construa uma agenda política pautada por essas pessoas.

A gente teve um período de avanços em agendas que há tempos reivindicava. A história desses movimentos no Brasil está linkada aos partidos progressistas. Quando esses grupos organizados na sociedade tomam o poder, parte dos militantes desses movimentos inclusive vai para cargos públicos. Há, por um lado, conquistas. Mas tem um vácuo enorme do ponto de vista de quem engaja a sociedade. Como não tem quem converse com a população, as pessoas associam a melhora de vida delas nesse período a Deus, à família, aos amigos, muitos ao esforço próprio, e zero vírgula alguma coisa às políticas governamentais.

Com o movimento de inclusão, vem uma nova geração que descobre que tem um Estado, que esses ganhos são direitos. E quer mais. E uma massa extremamente crítica, com acesso a um rol de informações enorme, não ligada a entidades orgânicas, que acho que os grupos progressistas não entenderam. Se por um lado esse movimento inclui os setores — gays, mulheres, negros na universidade, pobre andando de avião —, [por outro] esses discursos específicos geram incômodo no pensamento conservador. Que o brasileiro é isso, conservador. Só que aí os grupos de extrema-direita canalizaram a frustração e a raiva dessas pessoas com os esquemas políticos e você tem um processo de demonização de movimentos sociais que favorece o afastamento das pessoas, o ódio da política. E aí você tem a promessa de melhora da economia e da ordem no país através do acesso às armas para "botar moral nessa vagabundagem que está roubando tudo".

Eu também acho que não houve uma disputa qualificada nem uma atenção devida ao tema da corrupção, ficou naquela conversa fiada da vaga do trânsito, da nota fiscal, quando a grande corrupção é das corporações se apropriando dos recursos públicos para encher cada vez mais seus cofres e diminuir investimento na política pública para combater desigualdade.

Vê maneiras de mudar esse cenário, de sair desse clima de ódio e ressentimento?

A gente tem que construir outra frequência. Odiar mobiliza, chama atenção, tira a atenção, agrega voto. Há uma base no ódio que é ainda muito real, que é o distanciamento do mundo político. O cidadão comum sente isso, é muito puto com isso. Há um ódio às questões de corrupção — até em plena pandemia, aí aumenta mais o ódio das pessoas ao mundo político —, distanciamento das políticas do Estado — e o cabra pagando imposto para caramba e as políticas não chegam, então há também um ódio ao Estado, e que tudo isso está sendo canalizado de novo.

Daqui a pouco, começam a usar, como a gente está vendo nos debates que estão acontecendo, a criminalização do próprio Estado, para poder reduzi-lo, as políticas de austeridade e Estado mínimo. Quando na verdade tem um trunfo a nosso favor, que é o SUS, porque ele está segurando a onda. A gente está tendo essas mortes, mas, se não fosse o SUS, a gente já tinha ultrapassado os Estados Unidos muito, porque eles não têm SUS. Se eles tivessem um, mesmo do jeito do nosso, problemático e caótico, tinham reduzido e muito as mortes por lá. Nós temos que fortalecer o SUS agora. Não pode entrar na frequência do ódio, pelo contrário: nós temos que organizar o ódio, politizar a revolta e transformar em desfecho prático, em agenda pública.

Para transformar em agenda pública tem que juntar gente e construir consensos possíveis, conviver com as diferenças e até oposições para poder trilhar um caminho aqui, que mais de 100 milhões de pessoas estão precisando. Eu estou vendo morrer gente que votou no Bolsonaro e que votou no Haddad. Quando eu vou entregar cesta básica para o pobre, ele não quer saber de onde veio a cesta, quer saber se está chegando. As pessoas até choram, querem se agarrar com a gente, se ajoelham, ficam emocionadas. A pessoa está ali, eu não consigo olhar ela como fascista ou um cara de esquerda, é uma questão humanitária de emergência agora.

A gente precisa sair dessa frequência do ódio. Para a gente, que quer democracia, igualdade, justiça social, essa agenda do ódio adoece, porque ela não é nossa. Ela nos imobiliza. Nos tira do foco das coisas mais básicas que a gente devia fazer e não faz. Faz a gente deixar de divulgar coisas nossas para divulgar coisas do ódio. E, como o ódio é um jogo dos caras, e não nosso, nós vamos perder sempre. E, mesmo sendo, como dizem, 70% [os que estão contra Bolsonaro], [se] ficar esse ódio interno nosso, brigando por protagonismo e nomes, a gente não vai andar.

Para ganhar de volta a confiança das pessoas, a política tem que se aproximar do cotidiano delas. Só para você ter ideia: cinco milhões de pessoas procuraram a Defensoria Pública da União para reivindicar o auxílio [emergencial], porque elas tinham direito e não receberam. Mas vamos calcular aí: são 20 milhões, com uma média de quatro [membros de família] por pessoa. É muita gente. Então você tem uma agenda pública de necessidade de enfrentamento da desigualdade. Eu estou me juntando com todos que quiserem ir por aí, neste momento.

Estou pedindo aos meus amigos políticos que joguem a divergência lá para outubro, novembro, se tiver eleição, ou quando tiver, que agora esse é o foco. Nós vamos ter uma crise grave. Talvez a gente chegue em 25 milhões de desempregados, vamos ter mais de 60 milhões de pessoas passando fome. Tem que ter um grande mutirão para que não se deixe nenhum brasileiro passar fome. Isso, sim, é ser patriota. Isso, sim, é gostar da nação. Há um espaço aqui de agenda pública. Agora tem uma questão com a agenda pública: ela não aceita heróis e donos. Ela não pode ter uma cara só. Ela não é de um partido, nem vai ser pautada por interesse de um político e um partido. E, desta vez, não dá para despregar — e pode [me] acusar de direita, de centro, conservador, qualquer coisa: a agenda é da sociedade. Porque os políticos e os partidos, a estrutura de Estado passam. A nossa agenda permanece.

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Esse aumento da desigualdade possivelmente vai vir acompanhado do aumento da violência. O caos que a gente já vive tem tudo para piorar. Você acredita que a sociedade tem que se organizar, já que a gente tem um governo que está deixando a gente praticamente à nossa própria sorte?

É difícil, porque todo mundo tem um inimigo, que é o vírus. A gente consegue ter dois no Brasil. O Brasil inova em tudo, é impressionante.

Assim a gente consegue diminuir esse quadro grave?

Juntando gente. O jornalismo tem um papel importante, porque ele verifica, vai lá. As pessoas estão ligadas. Querem saber. Estão deixando de acreditar tanto em notícia de rede social para olhar a informação da imprensa, dos jornais. Há uma mudança. Há um deslocamento de parte da juventude, que estava muito puta com a política, acabava contribuindo para a política de extrema-direita, de agora construir valores. Você está vendo os youtubers, inclusive, se deslocando para valores coletivos, humanitários, para uma coisa mais de solidariedade. Isso é positivíssimo. São valores progressistas, democráticos.

A gente tem que construir valores. Tem que ser uma agenda pública, tem que ser de todos. Se a gente conseguir impregnar todo mundo com essa agenda pública, se a solidariedade e o coletivismo forem mais contagiosos do que o vírus e do que o ódio, a gente vence e consegue retomar essa ideia, para rediscutir a função de Estado, de carga tributária, como é formato da política. A gente retoma, a gente consegue dar uma volta. Estou acreditando muito nisso, trabalhando muito por isso, juntando gente de tudo que é lado para poder fazer esse grande mutirão social, porque nós vamos ter que reconstruir o país urgentemente. O estrago é grande.

Você pensa só: uma mãe que tem um filho, que é uma profissional autônoma, está com o filho, está estressada, porque ficar com menino — eu estou com filho em casa, eu sei o que é, e eu tenho condições de ficar com o meu filho em casa. Agora imagina uma mãe da favela. Essa hora, ela está pensando qual é a comida que ela vai botar no prato na hora da janta. Porque o almoço já foi difícil. E amanhã o café da manhã para todo mundo. E as contas do final do mês, que 87% delas não vão ter como honrar. E aí nem ela pode sair na rua atrás de dinheiro, porque não tem circulação, ela está com os filhos em casa e não pode deixar os meninos sós. Complexo. Mas há todo um movimento, estou sentindo sinais bons, estou sentindo uma aproximação de intelectuais dispostos a traduzir coisas complexas para linguagem mais simples.

Foi lançada agora, em plena crise, uma empresa chamada Digital Favela, que é uma empresa de microinfluenciadores, as pessoas vão ganhar dinheiro para divulgar coisas na internet. O Celso Athayde criou a Favela Holding, é com essa rede de empresas também, que acabam fortalecendo muitas ações sociais que a gente realiza na Cufa. Estou acreditando muito nesse engajamento da sociedade, que a gente tem feito há mais de 20 anos. Acho que agora vai amplificar esse negócio. Tem gente fazendo trabalhos louváveis, maravilhosos, mesmo sendo uma pessoa, mesmo sendo um líder, um coletivo, uma organização. Isso não torna elas menores, nem o trabalho delas deixa de ser digno porque elas não são tamanho da gente.

Naquelas manifestações (Vidas Negras Importam, em maio), houve uma mudança. Não teve o predomínio do vermelho, não teve a luta para quem ia falar nos microfones, a juventude estava com o discurso mais organizado, distanciamento, muito mais solidária, mais descontraída, socializando álcool em gel, máscara, o preto predominou, o jovem de favela predominou, as agendas do dia a dia das favelas, a juventude se ajudando, colaborando, organizada, discurso agressivo, mas mais organizado, mais consciente, não teve violência da polícia, uma cobertura diferenciada da imprensa.

Há muita coisa mudando, o mundo está mudando. Estão acontecendo coisas grandes no mundo. Eu acredito que é por aí que nós vamos.

Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas

Seus pais eram do interior do Ceará e foram para Fortaleza. Como foi sua infância?

A infância foi meio que padrão [de pessoas pobres no Brasil], que é aquela em que você tem que decidir entre estudar e trabalhar, e aí é uma escolha difícil, porque com pouca idade passa a assumir responsabilidades de adulto. Sendo que a gente não percebe: de pequeno, você incorpora a lógica de que aquilo é uma forma de você ajudar a família. Isso acaba se naturalizando. Esses dias até eu falava com um procurador federal do Ministério Público do Trabalho sobre como isso é naturalizado. Até os pais das crianças. Agora nós estamos vivendo um momento de dificuldade econômica aqui: a quantidade de crianças nas ruas, os pais levando... Fico lembrando da minha época. E acabou sendo esse também o meu rumo. Fui lavar carro na rua, num boliche. Quem me levou foi o meu irmão encostado a mim, mais novo do que eu.

Lá foi onde eu conheci a loucura da rua. Eu tinha 11, 12 anos. Fiquei um tempo nisso. Só que lá eu ficava com aquele incômodo de estar na rua. Certo dia, eu lavava o carro de um cara, um deputado. Pedi um emprego para ele. Como era um cara que dava boas gorjetas, o povo não queria muito incomodar. Ele ia me pagar com pizza. Falei: "Ah, não quero pizza, não, eu quero arrumar um dinheiro." Ele disse: "Pô, tu é novato aqui, já chega assim, metendo marra." Eu falei: "É porque eu tenho que levar um dinheiro para casa. Comida já tem, o dinheiro é que não está vindo." Ele falou: "Ó, não tenho dinheiro hoje, não. Por isso que eu estava querendo lhe dar comida. Mas você vai me procurar lá na Assembleia, que eu vou arrumar uma coisa para você fazer e você sair da rua, tá ok?". Eu fui onze vezes lá, cara. E nunca encontrava ele. Aí, certo dia, fui tirar os documentos para procurar emprego — CPF a gente tirava no Correio — e encontrei ele lá, no estacionamento da Assembleia, perto da área onde eu nasci e me criei, as Quadras. Aproveitei para me vingar. Eu disse: "Não tem jeito, né, deputado? Político promete e não cumpre mesmo." Aí ele: "Que é isso, rapaz? Respeite um homem de bigode! Você está pronto para trabalhar?". Eu não tinha nada a perder, estava até arrumado nesse dia, fui deixar currículo. Falei: "Estou." Ele me arrumou de lavar carro no estacionamento da Assembleia. Meu primeiro emprego. Tenho uma foto, um policial que trabalhava no estacionamento que tirou.

A partir daí, acontece uma mudança significativa, eu passo a ter uma renda boa, porque tinha o dinheiro fixo mais as gorjetas dos deputados. Ao mesmo tempo, também não queria deixar a rua, porque tinha aquela flexibilidade, estar com a galera, aquela liberdade. E aí certo dia ele me viu na rua. Deu um cagaço da porra em mim (risos). "Porra, tu ficou me perturbando, falando comigo para sair da rua e tal, e aí agora tu tá aí na rua, rapaz? Tu escolhe: ou tu fica na rua, ou trabalha lá." Nunca mais voltei para a rua. Trabalhei lá para sempre. Passei por todos os setores da Assembleia e, nesse percurso, conheci o rap.

Como aconteceu esse encontro?

Era um momento em que estavam muito no auge em Fortaleza os bailes funk. A gente tinha toda aquela cultura do baile funk, da pichação. Os bailes aqui começaram a introduzir a disputa entre galeras. Era corredor, lado A, lado B e tal, todo mundo se localizava nesses dois lugares, tinha aquele momento da alegria, da porradaria. Nessa época, não eram tão bélicas as disputas, como acontece agora: não tinha arma, não tinha crack. Isso em 1990. Mas aí eu perdi meus amigos quase todos: uns foram presos, outros morreram. Poderia ser eu também, né? Acho que, dos 30 [amigos] na época, 32, sobraram uns quatro somente, para você ter ideia de como era a proporção. Ficaram esses sobreviventes. Tudo muito difícil. Daí veio o rap.

O rap me ajudou a perceber o que era esse submundo em que estava, trouxe uma leitura crítica sobre ele, com uma música que ouvi, chamada "Homens da Lei", do Thaide [lançada em "Hip-Hop Cultura de Rua", de 1988, considerado o disco inaugural do rap paulistano]. Foi muito forte. Eu jamais tinha imaginado que um cara igual à gente, em 1990, fosse gravar uma música denunciando a violência da polícia e ainda fazer um disco. Eu ficava ouvindo a porra da música, ouvindo, ouvindo, ouvindo. Aí cheguei para os caras: "Meu irmão, quero saber onde é que tem isso aqui em Fortaleza." Os moleques me levaram para uma roda de break que estava tendo num bairro distante. A partir daí, minha vida nunca mais foi a mesma. O rap ajudou a [ter] essa coisa da identidade, do olhar crítico. E o hip hop aqui do Ceará surgiu de uma junção de gente que vinha do movimento estudantil, com toda aquela experiência política, formação de esquerda, e nós, que vínhamos da rua, dos bailes funk, da pichação. Isso deu ao movimento estudantil mais político uma capilaridade nas favelas e deu uma leitura política de realidade que até então a gente não tinha. A sabedoria da gente era de rua.

Foi muito importante, deu um passo anos-luz [à frente]. Porque, quando vem o rap, quando junta essa visão política, abre, como Malcolm X fala, o terceiro olho: você passa a perceber e enxergar uma porrada de coisa que não via antes. Depois vem o Racionais, aí eu passo a conhecer a história da identidade do negro. Principalmente com uma música, "Negro limitado". Essa música deu um choque, ela é um sacode. Às vezes eu falo para o [Mano] Brown que eles não têm dimensão do que era. Você não sabe o que era o Racionais na década de 90, a capacidade de mexer no imaginário, de mobilizar. Na época, o que a gente tinha muito era uma politização da revolta e uma organização do ódio, se eu posso resumir o que aconteceu na hora no rap. A gente passou a perceber que existia um mundo além das marcas de roupa, desse fetiche do consumo, que existia uma outra postura a ser adotada, se afastar do álcool, das drogas. Era um discurso muito moralista com um discurso de autocuidado em termos de disciplina. Era uma coisa bem de igreja mesmo, não à toa muitos de nós também passaram pela experiência da igreja pentecostal.

O rap, nessa época, era muito sectário, muito duro — era um tempo duro também, então o rap acabou sendo um reflexo disso. E era muito focado na denúncia das desigualdades e na violência da polícia. No Ceará a gente sempre conseguiu ter um avanço nesses temas, porque a gente era muito próximo de movimentos sociais politizados, então acabou que a gente teve acesso a uma leitura de mundo muito privilegiada. E aí o que aconteceu? A gente começou a debater a ideia de um hip hop que não fosse só discurso, mas que tivesse prática, que a gente pudesse organizá-lo nas favelas, chamava até de 'posse'. A posse estava para nós como o assentamento está para o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Então seriam os núcleos do movimento nos bairros. Que faziam oficinas, trabalhos comunitários, leituras e tal.

Com o tempo, a influência desse grupo mais político ficou tão grande que muita gente começou a se afastar. Eu já era de direção em pouco tempo, sempre fui um cara de articulação. Começamos a enquadrar a galera, as letras de rap, o que podia ou não podia, as palavras de ordem das manifestações começaram a ser parte dos refrões das letras de rap. Então a galera mais de favela, mais de núcleo vindo de rua, de gangue e tal, começou a pensar: "Pô, isso aqui não é mais um movimento, é um partido político." E aí o povo foi se afastando, que havia uma rejeição, já na época, a essa questão da política partidária.

Até que chega o momento em que eu saio e crio o Movimento Cultura de Rua, uma coisa mais ampla, trazendo de volta a história do hip hop mais cultura na favela, engajado, mas com foco na produção cultural. Ainda existia aqui aquele romantismo das músicas, muita influência do rap de São Paulo, começava muito a bombar um sentimento de produzir as coisas do lugar, as coisas daqui. E para lançar o nosso o MCR, Movimento de Cultura de Rua, a primeira coisa que a gente fez foi o show do Racionais (risos). Sem nunca ter produzido nada, sem ter um tostão, sem saber que diabo era produção cultural. Acabou o dinheiro, eu liguei para o Brown, pedindo pelo amor de Deus que me ajudasse, ele mandou um cheque, duzentos cruzeiros, cruzados, sei lá que porra de moeda que era aquela época. E aí fizemos o show do Racionais, e tivemos noção do tamanho que nós tínhamos, pela quantidade de gente. Conseguimos pagar todas as contas.

E foi muito louco, porque um juiz embargou o show, faltando uma semana. Disse que era apologia ao crime, associação ao tráfico, um negócio de doido. A gente pirou: "Como é que nós vamos fazer?". Aí ligou um cara atrás de ingresso. Eu disse: "Meu irmão, eu não sei nem se vai ter show, eu estou pensando como é que eu vou devolver o dinheiro da galera." Era um lugar que já estava distante da cidade para não chamar atenção, os caras já tinham um pouco pensado nisso, no preconceito. Mas não teve jeito: o juiz viu os folders, viu alguma coisa no jornal e, se a gente fizesse, ia levar uma multa milionária por fazer a porra do show. O cara disse: "Pois faça na minha casa, que aqui é casa de show oficial, não tem problema. Qualquer coisa eu assumo que o show é meu." E acabou nesse lugar, chamado Barraca Biruta, por onde passaram grandes nomes dos alternativos aqui, como Planet Hemp, Zélia Duncan, Nação Zumbi. E foi um sucesso. Resultado: a gente repercutiu, ficou grande. Só que eu continuava com um incômodo, que era o fato de o hip hop não dialogar com a diversidade da favela. Essa coisa da ausência das mulheres, da falta de um trabalho de base concreto para promover mudanças.

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E como foi a sua ida para a Cufa?

Nesse mesmo período, um cara já despontava. Era o Celso Athayde, ele já trabalhava com disco, com festa, com baile black. E ele tinha uma visão muito avançada do hip hop, estava vendo mercado, organização, diálogo com outros setores culturais. Os primeiros a ousar entrar na mídia, através do MV Bill. Ele foi um dos primeiros a ir nas grandes mídias. E eu era o maior crítico do Celso Athayde. Porque ele tinha essa visão mercadológica, e a gente, com aquele olhar politizado. Nossa ideia era o hip hop enquanto movimento social. Passou o tempo, a gente conseguiu montar uma frente de hip hop, Frente de Hip Hop Brasil. Conseguimos ir até o Lula, em março. Foi o primeiro presidente que recebeu uma comissão de hip hop, com a articulação do Celso. Vinha continuando aquele incômodo, de que a gente precisava de algo mais. Daí o Celso criou a Cufa (Central Única das Favelas), lá na Cidade de Deus, e começou essa corrida. E eu comecei assim: "Pô, eu estou criticando esse cara, mas ele está numa ação comigo agora." O bicho veio aqui fazer algumas reuniões, quando eu lavava carro ainda, na Assembleia ou na TV Verdes Mares, que é afiliada da Globo, ele cruzou comigo. Batemos um papo rápido, falamos sobre Alca, América Latina, revolução, uma porrada de bagulho. Segundo ele, ele viu: "Esse cara tem uma inteligência." E me falou que ia me tornar o cara mais importante do Brasil. Hoje ele diz até que eu não sou o mais importante, mas sou um dos que ninguém pode falar algo relacionado às nossas questões que eu não tenha como dar opinião. E disse que ia me levar para Cufa. Entrei para lá em 2000.

A base da Cufa é toda do hip hop, tá? O Celso foi empresário dos Racionais, empresário do MV Bill até hoje, Nega Gizza. Grandes lideranças, das mais antigas do hip hop, são todos ligados ao rap. E aí veio na Cufa um novo nível da organização do discurso sobre a favela, [trazendo] uma ideia de território à favela, uma qualificação da postura do que é ser um líder, uma agenda de fazimentos práticos positivos para aqueles territórios — que geralmente, até nos nossos discursos, só eram lembrados como lugares de tragédia, a gente só falava da morte, da violência, da falta de esgoto. A gente nunca tinha visto nada de positivo no nosso discurso disso. E veio uma máquina e uma fábrica de lideranças, que é a Cufa, e ela amplia a visão, promove interlocução com vários setores, a gente começa a intervir direto. Em 2012, eu já assumo a Cufa Brasil, a presidência nacional do MV Bill. Ele saiu.

A primeira decisão nessa época foi que não íamos mais ter presidentes paulistas e cariocas, que, se era um processo de descentralização, começava daí. A Cufa já tinha uma certa visibilidade, então tinha que usá-la para empoderar e colocar luz sobre lugares que não apareciam em canto nenhum, eram invisíveis. A gente não queria que a Cufa virasse mais uma instituição de pessoas do asfalto bem-intencionadas, de brancos amigos. Então nós estabelecemos que nós teríamos 10% de cota para brancos. E, para não virar debate eterno interno na instituição, que as direções seriam de metade homens e metade mulheres. Isso foi muito legal, porque a Cufa levou o debate político a um ponto em que a gente não radicalizou mais no discurso, mas na ação prática.

Em 2012, eu assumo a presidência nacional e, até o meio de 2015, a Cufa já era uma realidade no mundo. Então, muitos ativistas de favela de outros países começaram a nos chamar. Eu aproveitava viagens ou convites para seminários e mergulhava para ficar mais uma semana naqueles lugares. Comentei com o Celso: "Eu ouço isso, o mundo todo está querendo essa experiência." E o bicho veio com a ideia — eu estava num baixo-astral danado, meu filho tinha sido assassinado, eu estava assim, sem fé no mundo. Que nem um vira-lata, sem fé no futuro, como diz o rap ["Vida Loka I", dos Racionais MC's]. Eu disse que não queria mais nada, tinha passado por uma experiência de saúde também muito traumática, quase morri. Tive uma infecção no mediastino [uma sub-região do tórax], chama mediastinite. Por uma questão besta, uma obturação no dente. Uma bactéria entrou e o bicho saiu destruindo. Cheguei no hospital, tinha 20 horas de vida, porque a infecção estava tomando tudo. E aí me salvaram aos 44 do segundo tempo.

Enfim, os bichos me meteram dentro dessa programação e criaram a Semana Global da Cufa, que era um pacote de eventos em Nova York. E a gente ia lançar pesquisas, fazer atividades com os parceiros internacionais, lançamos livro na [Universidade] Columbia, fizemos esse evento na sede da Fundação Ford, fizemos evento com o Facebook, com o TedX, terminamos com o lançamento dos objetivos do milênio da favela na sede da ONU, tomo posse no que a gente chamou Cufa Global. Porque, em vez de ir em cada país, a partir da ONU nós atingimos 194 chefes de nações. Terminamos num carnaval sem autorização na Times Square, quase que fomos presos, mas graças a Deus foi tudo tranquilo. E daí assumi a Cufa Global, que ficou com escritório no Bronx, em Nova York. Está lá ainda, rodando. E, atualmente, devido às complexidades da questão brasileira, eu estou retornando para assumir a presidência da Cufa do Brasil.

O que levou a essa mudança?

Com o advento da pandemia, tivemos que fazer aquilo que as empresas chamam de reconversão da matriz produtiva. O terceiro setor foi muito abalado. Num primeiro momento, chamamos todos os nossos colaboradores no Brasil e mapeamos quem convivia e morava com pessoas vulneráveis — idosos, pessoas com diabetes, pressão alta e tal —, afastamos esses colaboradores, conversamos com nossos patrocinadores que íamos adiantar três meses de salário dessas pessoas do caixa que a gente tinha. Todo o caixa que a gente tinha se foi, então você imagina a dificuldade. E ficamos com a outra parte, mais jovem, que não tinha público de risco em casa. E aí criamos uma grande rede no Brasil, com mais de cinco mil favelas. Pegamos nossas sedes e transformamos em centros de distribuição e logística.

É um negócio cheio de comida, gente com EPI, mascarada, todo mundo de luva, o protocolo de segurança, separando comida, juntando, fazendo cadastro, assinando contrato, pegando nota fiscal, pegando mapa de controle da empresa que doou, mandando o caminhão ir buscar e deixar, fazendo entrega nos bairros, preparando as filas à distância para poder chegar na favela e não ter ninguém junto?

As pessoas estão vendo agora o problema de saúde, mas ele é um problema de economia, porque você tinha já na época 11 milhões de desempregados, e a maioria na favela, mais de 50%, vive na informalidade. Como você não tem fluxo de pessoas, quebrou tudo: o cara que vende o churrasquinho do lado do campinho, a mulher que vende a marmita, o cara que que entrega água? E, dentro da favela, o grupo mais atingido foi o das mulheres. Principalmente as mães solteiras, que moram com idosos, têm mais de um filho. Elas estão segurando as barras sozinhas e são líderes de 47% dos lares nas favelas. Por isso a gente criou o Mães da Favela, que é o grande programa focado nelas, em transferência direta de renda, por meio de plataforma digital, para fortalecê-las economicamente. Porque dinheiro na mão delas, apesar de elas serem a base de quem vai ser mais atingido, ativa muitas redes. De cuidado com as crianças, de fortalecimento da economia, de engajamento — porque elas também passam a se engajar.

Houve mães aqui na favela que receberam os seus Vales-Mãe, e tinha uma grande parte das mães que não recebeu, porque a gente é uma ONG, não somos o Estado: pois as que receberam pegaram o Vale-Mãe delas e dividiram com mães que não tinham, cara. E o Vale-Mãe é R$ 120. E hoje muitas delas fazem parte da linha de frente de ações de emergência.

Arquivo pessoal

Nessa sua escalada da conscientização, você sempre se reconheceu um homem negro ou foi algo que veio com o rap e a militância?

No Brasil você não nasce um homem negro, você se descobre. E a descoberta não é um negócio muito tranquilo, é uma coisa muito dolorosa. Eu entendi que era negro com 17 anos de idade. E, quando você descobre, volta o olhar. Não tem como não voltar. E aí é traumatizante, porque você percebe todos os momentos de dor e incômodo que você não sabia que eram racismo nem que passou porque você era preto. Na época em que ninguém escolhia para ser o noivo da festa de São João, a festa que ninguém combinava com você para dançar, brincadeiras que os outros meninos, brancos, da favela faziam com você, ou até os outros meninos pretos também, do cabelo, do nariz, chamando você de macaco... Quanta dor aquilo causava.

Por isso que às vezes, hoje, eu acho que os pais mais antigos protegiam seu filho para não falar sobre isso, como forma até de fugir, porque não é uma coisa fácil. Você pode ter um despertar em que você vai ficar meio neurótico, raivoso, rancoroso, magoado, vingativo. Psicologicamente, é uma porrada muito grande. E, depois, quando você descobre, passa a ver onde está acontecendo isso com você. Aí é mais doido como você administra esse momento e esses conflitos que você vai ter. Porque agora você enxerga e entende como está acontecendo. É o terceiro olho que o Malcolm X fala. Você fica: "Caralho, que porra de país escroto é esse?". E aí o rap, na época, ajudou muito a abrir o olho da autoestima, né? Atitude, história que a gente nunca viu nos livros. Eu tinha ódio de história na escola. Só fiz até a sexta [série], e eu tinha ódio dessa porra da escola, porque parte das matérias não interessava para o meu dia a dia, e história, que era a que eu gostava, comecei a gostar de saber, a história do negro que era contada lá era só ele amarrado, levando chicotada. Era muito difícil.

Você se descobriu negro por causa da convivência com a galera da militância política?

Não, foi por causa de uma música. A militância política só discutia questão de classe, inclusive identificava a questão racial como uma ameaça, uma divisão da luta. Até hoje ainda tem isso. Para você ver como não é novo (risos). E foi a música "Negro limitado", dos Racionais. Essa música deu um choque, é um sacode. Ela chama o negão lá, que está achando que está abalando com as roupas de marca, malandragem, arma e tal, essa vida de submundo de crime, e fala: "Roupas caras de etiqueta não valem nada/ Se comparadas a uma mente articulada", rapá. Tá vacilando, se acha o malandrão, mas "não sabe sequer dizer, veja só você, o número de cor do seu próprio RG". Inclusive até hoje eu sei de cor o número do meu RG por causa dessa música. Então tem uma utilidade social enorme (risos).

Você fica: "Caralho, esse cara está falando de mim." Aí você ouve de novo, que você não acredita. E vem só porrada. E a cabeça... Você se olha no espelho: "Deus do céu, que isso, não, não pode ser." Escuta de novo. Sua cabeça vai a mil. E você se descobre. Aí começa um novo mundo, uma outra caminhada, uma outra trajetória. Você vê o mundo de outro jeito. Você sente um poder do caralho: "Puta que pariu, que força é essa?". Aí, na época já veio o filme do Malcolm X (de Spike Lee, 1992), que era outra loucura, Alabama, 1965 (passeatas pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, na cidade de Selma); Brasil, 1994.

E eu passei um tempo morando nas favelas de São Paulo, ali na Zona Sul, fui morar na Zona Leste. Fiquei lá de 1995 para 1997. Trabalhava com o [produtor] Milton Salles vendendo disco. É o cara que criou o Racionais, ele que me apresentou eles. Trabalhei e usufruí muito da cultura do rap junto a um projeto que tinha no Geledés chamado Pode Crer, um grupo de jovens pretos dirigido por uma organização de mulheres negras. Ensinou a gente a ser homens menos piores, a vestir a camisa "Machistas, não passaremos".

Você falou do assassinato do seu filho. Com a sua trajetória, sua realidade econômica foi melhorando. Mas isso também não te livrou de ser parte da estatística dos jovens negros que morrem no Brasil a cada 23 minutos. Você pode falar como foi [Malcom Jonas foi morto aos 17 anos, em 30 de agosto de 2015]? Em algum momento você imaginou que estava mais protegido desse tipo de coisa?

Quando você melhora, tem que arrastar todos os outros, você vira meio que o centro da sustentação. Então não melhora assim. Parece que você melhorou mais do que é na prática. Com a visibilidade, as pessoas acham que isso quer dizer um monte de grana. Nem sabem a quantidade de conta que tem por trás das nossas aparições públicas.

Meu filho teve um problema de conflito com jovens da idade dele. História de bairro. Sofreu muito com a separação minha e da mãe dele. Ficou morando um tempo com a mãe, depois veio morar um tempo comigo, e ficou com essa dificuldade de adaptação. Depois quis morar um tempo com a avó, a minha mãe. Acho que essa passagem foi meio tumultuada na cabeça dele, e ele procurava muito se encontrar. Ele gostava muito de esporte, de rap, de skate. Quando voltou a morar comigo, a gente estava muito nas coisas junto, e a galera não acreditava mesmo que era pai e filho, porque eram muito próximos os estilos, a vivência. E a gente tinha uma relação amistosa, mas muito tensa, no sentido dessa distância. Ela gerou também muitas visões próprias. Era um cara sempre de visão própria, dele, mesmo novo. E aí começou a arrumar esses conflitos de jovens. Teve treta mesmo, de um ameaçar o outro, disseram que iam dar um tiro, negócio de arma e tal. Nessas confusões, ele ficou uns meses em sistema socioeducativo. Mergulhou muito nessa cultura, de rua, de treta de bairro. A internet também dá essa visibilidade maluca. Acabou que ele saiu do centro socioeducativo e, num dia em que foi cortar cabelo, outros jovens levaram ele para uma emboscada e ele foi morto com tiro. Aí tem várias versões, de que ele falou alguma coisa, que não, que tinha uma ameaça, que não tinha. Infelizmente, a gente luta com a lógica numa guerra que também atinge a gente. Aí você se sente mal, impotente, culpado, fica se perguntando onde é que você errou que não conseguiu proteger a pessoa.

Agora mesmo, na época da Covid, meus irmãos pegaram, minha mãe pegou. Caramba! Que é isso? Você fica pensando: "Que porra é essa? É uma provação o tempo todo?". E olhe que a minha mãe, a gente isolou ela numa cidade do interior, porque tinha menos casos, para, quando amansasse aqui, a gente trazer de volta. Nesse percurso, alguma brecha ela deu e pegou. E foi muito dolorido. O mais doido é que — olha como é louca a vida. Nesse período [Cufa Global], também, eu estava separado da minha companheira, a gente já estava morando cada um na sua casa. Nessas idas e vindas, ela engravidou e decidiu levar a gravidez à frente. Quando vi ela falar para mim, preocupada, que estava grávida e que ia levar a gestação adiante — acho que ela pensava bem que eu não ia ligar para porra nenhuma, estava morrendo de medo, o término não foi muito tranquilo também —, falei que a escolha que ela fizesse eu ia apoiar. No dia dos exames, ela saiu chorando da clínica. Eu disse: "O que foi que houve, criatura?". Ela falou: "É que não é uma criança, são duas." Comecei a chorar também, deu aquele desespero. Você não sabe o que vai fazer, uma coisa assim, súbita, e a gente não estava bem afetivamente, a relação não estava legal. E eram duas meninas. Viajei nos Estados Unidos na época e lá tudo é exagerado, aquelas grandes lojas de artigos específicos. Tinha uma loja de bebê gigante, e tudo barato. Com os dólares que eu tinha levado sobrando, gordurinha que tinha, trouxe um monte de roupa. Escolhemos até o nome delas. Quando chegou para fazer os exames [de novo], o médico disse que não tinha uma notícia boa para dar. Eu falei: "Pô, doutor, chega de notícia ruim na minha vida, pelo amor de Deus." Aí ele disse: "Não, é que o coração de um dos bebês parou de bater." Eu fiquei: "O que está acontecendo na minha vida, meu Deus? Tanta coisa ruim." Ele disse: "Mas vamos focar aqui no positivo." E eu: "O que é, doutor, que está positivo na minha vida? Está dando tudo errado." Ele: "Não, na criança que ficou." Eu até brinquei, estava ainda chorando: "É, pelo menos roupa repetida ela vai ter um monte." Aí ele disse: "Rapaz, tem um problema." Eu: "O que é, doutor, agora, pelo amor de Deus?". "É que não é uma menina, é um menino." Aí era o José.

Ele está com quantos anos?

Quatro. Ele é muito parecido com o Jonas, o meu filho que faleceu, quando era pequeno. Essas coisas loucas. Aí reatamos, estou morando junto novamente com a mãe dele. É outra vivência você ser pai com 40 anos de idade, com condições para criar o seu filho. Você vê o tempo, você vê que pode parar para brincar com ele, que pode levar ele num parque, na piscina de bolinhas, para comer algodão-doce, para o zoológico, para andar de patinete na beira-mar. Porra! O tempo livre para você conviver com o seu filho, as condições materiais para você conviver com o seu filho — que na minha época com o Jonas eram muito sacrificadas, porque eu estava o tempo todo tendo que arrumar dinheiro, sair na rua, não viver esse momento, a infância, que é quando se solidificam valores. Você vê a importância disso, né?

Eu tenho um vínculo muito grande com o meu filho, você vê nas fotos, os vídeos. E ele me diverte muito, e é supersensível. Quando eu estou meio caladão, triste, ele fala: "Pai, o que é você tem?". Eu digo: "Eu estou meio triste." "Opa, pai, não fica assim." E aí começa a trocar ideia, ele é muito falador. Um dia eu estava mandando um vídeo dele para o Brown, que ele está fazendo beatbox, ele faz uns barulhinhos na boca, ele tem muita noção de tempo da batida. Ele faz "tum-tum-tá, tum-tum-tum-tá". Aí eu digo: "Faz lento." Aí ele faz lentinho, a mesma batida. "Faz rápido." Ele faz rápido. "Faz no tempo dessa música aqui." Eu boto outro tipo de música, ele pega a velocidade também. Impressionante. Aí eu estava mandando para o Brown. Ele falou: "Aí, Zezé, esquece. Esse aí já é da música, não adianta."

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