QUEBRADA ELÉTRICA

Como é dirigir um carro elétrico de R$ 400 mil e com 'banco de garrafa pet' na periferia de São Paulo?

Giacomo Vicenzo De Ecoa, em São Paulo (SP)

Horas no trânsito, gás carbônico em abundância, barulho de escapamento. Estamos na selva de concreto e aço e 9 milhões de veículos motorizados entopem suas vias, entre motos barulhentas, que "tiram de giro", e carros que servem de ganha-pão para motoristas de aplicativo.

E não estamos falando de poucos carros. No estado de São Paulo, são mais de 19 milhões de automóveis, segundo o IBGE, sendo apenas 41.725 desses EVs, ou carros elétricos, de acordo com o levantamento da NeoCharge, empresa especializada em infraestrutura de recarga para veículos elétricos.

Carros elétricos são silenciosos, não poluem o ar com gás carbônico e escapam das regras de rodízio da capital. Mas quantos desses EVs rodam nas periferias da metrópole, onde vive a maior parte dos trabalhadores paulistanos? Existem pontos de carregamento de carros elétricos nas quebradas do Brasil?

Durante uma semana, a Volvo nos emprestou seu modelo XC40 Twin, um SUV de luxo totalmente elétrico com características esportivas, e que funciona sem nenhuma gota de gasolina.

Entregando 408 cavalos de potência, o veículo, de mais de duas toneladas, é capaz de uma aceleração de 0 a 100 km/h em apenas 4,9 segundos, números semelhantes ao do Camaro V8.

Toda essa potência foi percorrer as ruas da Cidade Tiradentes, periferia do extremo leste de São Paulo, e lar do repórter que escreve esta matéria.

Fiz fortuna, tesouro, nesse ano de novo. Nós já forgava a pé, imagina de Volvo.

MC Lon, "Volvo", música com 14 milhões de visualizações no YouTube

De nave de luxo na quebrada

Dirigir um carro de luxo é atrair olhares curiosos, e a lógica se repete com intensidade, quando se está na periferia, em especial por dirigimos um veículo com o preço de R$ 399.950,00, valor que permitiria comprar cerca de três apartamentos de dois quartos na Cohab Santa Etelvina II, localizada na Rua Nascer do Sol, na Cidade Tiradentes.

Em 2022, a Volvo foi a montadora que mais vendeu carros elétricos no Brasil. Seu modelo XC40 foi o mais vendido. O que pouca gente sabe é que dois anos antes, no início da pandemia de covid-19, a montadora disponibilizou parte da sua frota de teste para ajudar profissionais de saúde, voluntários e entidades comprometidas com o auxílio de pessoas em vulnerabilidade social.

Ao todo, a montadora emprestou 270 de seus carros de luxo para diferentes organizações, como a Cufa (Central Única das Favelas), a UNEAfro, a Rede Rua e a Cruz Vermelha Brasileira.

Inicialmente a proposta da montadora era manter os veículos emprestados por até trinta dias. No entanto, em alguns casos, como no da UNEafro, a parceria perdurou por cerca de dois anos.

E a loira da Volvo me ligou e falou que a noite quer dar um pião. (...) Ela é filha de empresário e, eu, funkeiro nato, favelado de quebrada

MC Menor da DS, "Loira do Volvo", funk com quase 3 milhões de visualizações.

Quem pode dirigir um Volvo sem ser suspeito?

"Os carros ajudaram muito para realizar os trabalhos, porque podíamos ir presencialmente fazer as entregas de cestas básicas em comunidades, conversar e ouvir as demandas das pessoas", conta Fabiola de Carvalho, coordenadora da UNEafro Brasil.

Fabiola conta que a UNEAfro conseguiu, inclusive, "reverter o valor que seria para fretar carretos em mais alimentação". A maioria das entregas de cestas básicas e atendimentos feitos pela ONG foi em comunidades e periferias da capital de São Paulo e da Região Metropolitana. Carvalho lembra, contudo, que circular com o veículo acabou chamando a atenção do patrulhamento policial.

Dentro da periferia, uma mulher preta com um Volvo, que não é comum nessas regiões, faz com que a nossa presença nos torne suspeita para a polícia. Mesmo não devendo nada, ficamos preocupadas com abordagens.

Fabiola de Carvalho, coordenadora da UNEAfro Brasil

Carvalho conta que passou por situações em que era preciso se explicar. "Por vezes eles não entendiam o motivo da Volvo emprestar um carro desses para uma mulher preta, com tatuagens e turbante. Em uma das ocasiões me abordaram, em movimento, e gritaram alguns palavrões, perguntando se eu tinha passagem [criminal]", diz.

A equipe de reportagem desta matéria - formada por homens brancos - não sofreu nenhum tipo de abordagem policial durante a semana de uso do veículo.

Luxo sustentável?

O XC40 aposta em uma "pegada ecológica" que não se resume ao motor elétrico. Ele também traz plástico de garrafa pet reciclado no revestimento do piso e em parte da composição dos bancos.

A autonomia do carro é de 305 km com a bateria totalmente carregada. Em comparação com o veículo pessoal do repórter, um sedan médio de motorização 2.0, que consegue fazer em ciclo urbano 7,7 km por litro, seria preciso cerca de 39 litros de gasolina (cerca de R$ 214,50 considerando a gasolina a R$ 5,5 por litro) para percorrer a mesma quilometragem.

Em sua maioria, as estações de recarga ainda são gratuitas (mas lentas). As estações rápidas, como as da Shell, geralmente cobram R $1,95 pelo kWh (o que daria R$ 148 para carregar uma bateria de 78 kWh). Nas estações semi-rápidas, onde o proprietário da estação optou pela cobrança, observamos valores na casa de R $1,50 pelo kWh (o que daria R$ 117 para carregar uma bateria de 78 kWh).

No bolso, o valor gasto é menos da metade para percorrer a mesma distância.

Só que um dos desafios de pilotar um veículo elétrico sem carregador em casa é encontrar pontos de recarga para ele.

Não localizamos nenhum nas quebradas da região. Partindo da Cidade Tiradentes, o ponto mais próximo fica no Tatuapé, bairro de classe média da zona leste paulistana, a cerca de 26 quilômetros. Ali, só havia dois pontos de recarga lenta (leva mais de 24 horas para uma carga completa) e ambos estavam ocupados.

Foi preciso dirigir mais meia hora (14 km) até outro ponto, no bairro do Limão, zona norte. Ali, esperamos 35 minutos enquanto o motorista de aplicativo, Washington Mercês, recarregava seu veículo. Ele explicou que, em nove meses com seu carro elétrico, economizou dinheiro, mas perdeu mais tempo fora de casa - 33% a mais. Se o tempo é dinheiro, ele está no prejuízo.

Na nossa vez, foi preciso baixar o app da empresa Tupinambá Energia e fazer cadastro com cartão de crédito (mas não custa nada). Levou 1h20 para carregar 98% da bateria.

De acordo com a Tupinambá Energia, existem 140 pontos de recarga sob sua responsabilidade na capital de São Paulo e outros 800 de outras empresas. Mas apenas sete desses pontos são de recarga rápida.

Antes, com um carro a gasolina, eu ficava 12 horas fora de casa, agora preciso ficar 16 horas, contando com o tempo de recarga, para completar os 300 quilômetros que rodo diariamente

Washington Mercês, motorista de aplicativo

Dá para carregar em casa?

Sim, se você tiver entre R$ 3.100 e R$ 7.900 para investir num Wallbox, equipamento adaptado a uma rede de 220v para instalar em casa. Leva 24 horas para carregar o carro. Segundo Clemente Gauer, diretor de assuntos corporativos da Tupinambá Energia, o custo dessa recarga, na conta de luz, sairá R$ 56 na Tarifa Normal ou R$ 39, se optar pela Tarifa Branca, em horário fora de ponta. Diferente da Tarifa Convencional, a Tarifa Branca possui valores variáveis ao longo do dia.

"Em uma instalação de 110v é possível fazer um carregamento total em 45 horas. Mas sempre indicamos que a instalação seja com transformador", explica Abdallah Madi, gerente de produto da Volvo Cars.

Clemente Gauer, da Tupinambá Energia, conta que a empresa espera que o motorista de elétricos no Brasil caminhe para a mesma tendência observada em países desenvolvidos. Segundo ele, nos Estados Unidos e na Europa, mais de 70% dos proprietários recarregam seus veículos em suas residências durante a noite ou em locais de uso privativo, como o local de trabalho. Apenas 10% dos donos de elétricos dependem exclusivamente de pontos de recarga públicos",diz Clemente.

Não há dados sobre quantos desses felizes proprietários de carros elétricos, em países desenvolvidos, moram em periferias. Depois de nosso test drive, podemos afirmar que, no Brasil, carros silenciosos, que não poluem o ar com gás carbônico e que escapam das regras de rodízio da capital ainda são para poucos moradores dos bairros nobres da capital.

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