'Lobo mau'

Tiro, milícia e matança: Como a volta do Canis lupus transformou o interior da França numa bomba-relógio

Natasha Mazzacaro Colaboração para o UOL, da França

Uma multidão faz três funcionários públicos de reféns durante 15 horas. Não muito longe dali, um cineasta é ameaçado de morte. O corpo de um animal morto aparece pendurado na porta da prefeitura. Em um vídeo publicado no YouTube, homens armados com espingardas anunciam que uma milícia está pronta para agir.

E a culpa disso tudo, dizem, é do "lobo mau".

Longe de se passar em uma zona de guerra, essas cenas acontecem em vilarejos minúsculos espalhados pela França, onde a tranquilidade da vida rural tem sido perturbada por ataques de lobos que ocupam o território francês e vão atrás de ovelhas nas fazendas.

O Canis lupus italicus, nome científico da espécie que vem da Itália, é um mamífero carnívoro, e em seu menu entram de 2 a 5 kg de carne por dia. A preferência é por presas como os veados e cervos, mas também acabam se alimentando de animais domésticos mais fáceis de serem caçados, como ovelhas e cabras.

Mas várias gerações de camponeses nunca tiveram de encarar esse predador, já que o bicho foi vítima da caça em massa que o exterminou em 1930. Até que, em 1992, um casal de lobos voltou a ser visto no Parque de Mercantour, nos Alpes.

A partir daí, os lobos recolonizaram o interior da França. Hoje, as alcateias se espalharam por quase todo o país, e o clima na região se tornou uma mistura de teoria da conspiração, complô, lobby e violência contra o animal.

Cabo de guerra

Na União Europeia, os lobos são protegidos graças à Convenção de Berna, assinada em 1979, que garante a conservação da fauna e flora dos países que fazem parte do bloco - mais um ponto que contribui para aumentar a tensão deste cabo de guerra entre quem defende o bicho e quem quer caçá-lo.

De um lado, os pecuaristas afirmam que os lobos se reproduzem exponencialmente, ameaçando atividades pastorais centenárias; do outro lado, no entanto, os defensores do animal rebatem dizendo que a população de lobos chegará em breve à sua saturação, já que são territorialistas e não permitem um número grande de indivíduos numa mesma região.

"É aí que chegamos nessa salada explosiva em que vivemos hoje na França", resume o geógrafo Farid Benhammou, professor da Universidade de Poitiers que há 25 anos estuda os conflitos em torno do lobo.

Farid conta que, dentro do grupo que é contrário à presença do lobo na região, há subgrupos com alas mais radicais e barulhentas, que não raro partem para a violência.

Um exemplo aconteceu em 2015. Durante 15 horas, 50 pecuaristas antilobo fizeram o presidente, o diretor e um agente do Parque de Vanoise de reféns. Eles foram liberados somente após a autorização do abate de seis lobos, juntamente com o afrouxamento das regras de caça.

Até hoje nenhum dos sequestradores foi punido.

O direito ao tiro

Pela lei, a caça ao lobo só é autorizada se o pecuarista já tiver implementado as três medidas de proteção exigidas e, em parte (80%), financiadas pelo Estado: cães de guarda, cercas elétricas e pastor ou ajudante de pastor.

Mas para apaziguar os ânimos dos pecuaristas - uma classe com um poder de pressão enorme nesse país -, o governo acaba "readequando" a lei.

Um bom exemplo da eficácia do lobby ruralista pode ser visto no sul da França. Conhecida como Zona Roquefort - por produzir o famoso queijo com o mesmo nome -, essa região abriga forças sindicais muito influentes, que obtiveram status diferente do resto do país para afrouxar as regras de tiro no caso da aparição de algum lobo.

"O poder público, na tentativa de agradar aos lobbies rurais, acaba 'ajeitando' a legislação para que esse animal possa ser caçado. Oficialmente se trata de uma espécie protegida, mas, na prática, é como se houvesse um plano de caça ao lobo, com quotas a serem atingidas", diz Farid.

O governo francês divulga um número de lobos que podem ser abatidos, baseado numa estimativa da quantidade de indivíduos existentes no país. Mesmo com a espécie na lista vermelha de animais vulneráveis da UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza), essa taxa aumenta sistematicamente.

Em 2023, por exemplo, foi fixado que até 209 autorizações de caça aos lobos poderiam ser concedidas. Isso num universo estimado de 1.104 animais dessa espécie na França.

Apesar das inúmeras tentativas, nenhum órgão oficial francês aceitou conversar com a nossa reportagem.

Uma loba na prefeitura

Do outro lado do ringue, encontram-se as associações ambientais e de proteção animal. A Associação pela Proteção dos Animais Selvagens (Aspas) atua pela preservação dos lobos desde 1987.

Além de comprar parcelas de terra para transformar em reservas ambientais, eles também entram em ação como parte civil em processos de lobos que aparecem mortos ilegalmente.

Um exemplo foi a de uma loba morta e pendurada por uma corda na porta da prefeitura de Saint-Bonnet-en-Champsaur, uma cidadezinha dos Alpes.

Segundo o procurador Florent Crouhy, o processo está em segredo de Justiça. Mas para Richard Holding, membro da Aspas, apesar da lei prever encarceramento de três anos pela caça de espécies protegidas, dificilmente os culpados serão punidos.

Geralmente, os juízes optam por multas, que podem chegar a 150 mil euros, mas que, na prática, são quase sempre irrisórias.

"Por tradição, os poderes públicos franceses são muito próximos da caça. Giscard d'Estaing [presidente de 1974 a 1981] era um caçador aficionado, e Macron [atual presidente] deu vários 'presentes' para os caçadores, aumentando o raio em que eles podem atuar e elevando absurdamente o número de lobos que podem ser mortos legalmente", diz Richard.

Um dos pontos que os protetores de animais usam para defender o lobo é que a caça pode acabar aumentando os ataques do animal a fazendas ao invés de inibi-los.

Isso porque não há como saber se o lobo abatido é um macho ou uma fêmea alfa (ou seja, o casal de "comanda" a alcateia), e, ao matá-los, a matilha acaba se desmantelando, fazendo com que jovens lobos se dispersem solitários.

Sem o grupo e sem experiência, dizem os estudiosos, se torna muito mais prático atacar animais de fazenda (confinados e mais lentos) do que animais selvagens.

fotos: Pierre Chancy fotos: Pierre Chancy

'Temos que aceitá-lo'

Ingrid Briclot e André Morel criam quase 500 ovelhas e cabras em Sisteron, entre o mar Mediterrâneo e os Alpes. Apesar de estarem em uma das zonas com uma quantidade maior de alcateias, o casal virou porta-bandeira não oficial da coabitação com o bicho.

"O predador está aí, então temos que aceitá-lo. Se entrarmos numa lógica de exterminar tudo, como nossos antepassados, não saímos do lugar", prega Ingrid.

O casal aprendeu isso a duras penas. Em 2010, seu rebanho foi atacado por uma alcateia. Ingrid usa a palavra "carnificina" para descrever a cena. Seis ovelhas foram mortas, mas os danos colaterais foram assombrosos — abortos, perfuração de útero, infertilidade.

A partir dessa situação limite, ou eles se revoltavam ou aceitavam e tomavam providências. Ganhou a segunda opção. Instalaram cercas elétricas e, de uma cadela, passaram a ter 11 "patous" — raça canina gigante dos Pirineus que pesa 65 kg, muito mais que os lobos da região.

O segredo, diz Ingrid, é ter um número de cachorros equivalente ao da alcateia. Apesar do trabalho exaustivo — três vezes por semana, eles percorrem a pé 12 quilômetros à procura de cortes na cerca —, seus esforços têm rendido resultados: zero ataque nos últimos 13 anos.

O lobo do homem

Já o fotógrafo Corentin Esmieu acredita que os franceses estão perdendo a chance de ganhar dinheiro com a presença do animal. Ele cita o Parque Nacional dos Abruzos, na Itália, que recebe milhares de turistas loucos para ver lobos, linces e ursos, para ilustrar sua teoria.

Outro exemplo é o caso da reintrodução dos lobos no Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos. Durante 70 anos, o animal era extinto na região, e, sem eles, animais como veados ou cervos se multiplicaram e reduziram a vegetação local.

Em 1995, então, o parque trouxe de volta o animal, vindo do Canadá. O resultado? A vegetação começou a se regenerar, o que também trouxe de volta outros animais que não apareciam mais ali. Além disso, a "nova floresta" deixou as margens de rios mais estáveis e eles pararam de secar.

Esmieu nasceu e passou toda a vida nos Altos Alpes. Cresceu sonhando em encontrar os lobos que assistia em documentários sobre o caso de Yellowstone. Seu pai passou a desafiá-lo a ser o primeiro a ver o animal na região. Aos 17 anos, após uma tocaia intensa, ele conseguiu avistar o bicho.

Do primeiro encontro para o segundo, houve um lapso de cinco anos. Até que ele encontrou uma alcateia. Ele os fotografou educando seus filhotes, aprendendo a caçar, brincando... A experiência rendeu um livro (agora esgotado) e acabou de forma trágica.

Em 2020, a alcateia passou a frequentar uma fazenda de ovelhas na Savoie e foi toda abatida por caçadores em duas semanas.

"Eles fizeram parte da minha vida por quatro anos e, do dia para a noite, não estavam mais lá", lamenta. Ele costuma dizer que prefere cruzar com 20 lobos do que com um cachorro vadio: "enquanto o segundo, domesticado na antiguidade, não tem medo do homem; o lobo, que já foi exterminado uma vez, foge antes que possamos vê-lo".

Morte é solução?

O que acontece quando um lobo é morto? Em seu estudo, a pesquisadora Oksana Grente mostrou que, em um terço dos casos, a predação diminui após o abate; em outro terço, os ataques se estagnam; e no terço restante, os ataques aumentam. Conclusão: ao matar um lobo, nada está claro.

O cineasta Jean-Michel Bertrand nasceu nos Alpes, os lobos são o centro dos seus três últimos filmes ("La Vallée des loups", 2016, "Marche avec les loups", 2019 e Vivre avec les loups", 2023) - trabalhos que lhe renderam três ameaças de morte e inúmeras intimidações em encontros para divulgar as obras.

"Eu sou uma pessoa moderada, aberta ao diálogo. Mas aqui, nos Alpes, o lobo virou um tabu", diz.

Ele cita as matérias de jornais regionais, ilustradas por fotos de animais mortos onde pipocam argumentos do tipo: "eles invadiram a nossa propriedade", "não pedimos para que o lobo viesse aqui" ou "eles degolam as nossas ovelhas e deixam a carcaça aqui".

O cineasta diz que é quase como se o lobo tivesse que ter noção de propriedade privada e como se o homem não criasse as ovelhas exatamente com o mesmo objetivo: comê-las.

Na França, o homem está o tempo todo tentando regular as espécies, cortando árvores ou fazendo experiências perigosas com animais. A natureza não esperou o homem para se regular. Os predadores nunca provocaram o desaparecimento de espécies em ecossistemas equilibrados.

Jean-Michel Bertrand, cineasta

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