Um convite para parar

Rael lança EP na quarentena para músicas funcionarem como respiro e acalanto

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Bruno Trindade Ruiz/Divulgação

Como se relaxa no meio de uma pandemia? Algumas pessoas têm encontrado soluções para essa pergunta: fazer ioga, ler, cozinhar, ouvir música? Para Rael, a saída tem sido fazer música. O rapper paulistano tem passado os dias e as noites produzindo um som que é um convite para a pausa. Pensado para ouvir, relaxar e mergulhar no momento.

Assim nasceu o EP "Capim Cidreira (Infusão)", lançado hoje (2). A inédita "Rei do Luau", parceria com Iza, ganhou a companhia de cinco músicas já conhecidas do público em versões repaginadas - a escolha obedeceu o gosto popular, eram aquelas que os fãs estavam mais escutando durante a quarentena. As letras leves — falando de amor ou transmitindo a mensagem de que tudo vai ficar bem — e os beats animados, às vezes parecem destoar do momento atual. Mas a ideia é justamente essa: servir como um acalanto em meio a tantos problemas e perspectivas de futuro pouco claras.

"Cara, os fascistas e os racistas nunca pararam, o fascismo e o racismo nunca parou. Se os caras estão lá, sempre tramando, pensando em várias ideias ruins para nós, a gente que está do outro lado, falando de amor, tentando resgatar pessoas através da música com diálogo sobre amor próprio, sobre fazer uma pausa no seu dia, sobre respirar... Eu vou parar de falar isso para as pessoas também? A música, a arte nesse momento é uma ferramenta fundamental para isso. Foi isso que bateu em mim. De parar e pensar: 'Caralho, tio, você já viveu várias coisas, vários bagulhos, agora você vai ficar nessa? Vamo pra cima!'", diz.

Sentado no estúdio que tem em casa, onde produziu parte das músicas, o artista que cresceu no Jardim Iporanga, extremo sul de São Paulo, e aos 8 anos entrou no rolê do hip hop, parou para conversar com Ecoa sobre o lançamento do novo EP. A data prevista originalmente era 10 de junho, mas foi adiada por causa das mortes de George Floyd e João Pedro, que acenderam o debate sobre o racismo no mundo. Sobre isso, porém, o músico é categórico ao questionar: "Como é que um país quer crescer sendo que 55% da população é deixada de canto? Não vai."

As seis faixas chegam para lembrar a todos que, apesar dos pesares, ainda existe vida lá fora, e que é preciso estar forte e saudável (física e mentalmente) para encarar a realidade que se impõe. Relaxar, cuidar de si e dos que estão próximos também são peça-chave para ajudar a pensar em um projeto de país mais igualitário.

Bruno Trindade Ruiz/Divulgação Bruno Trindade Ruiz/Divulgação

Tudo vai passar, mas nada ficará no esquecimento. Eu sei que é triste o cenário. Um dia de cada vez. Força!

Rael , em "Tudo Vai Passar", música de abertura do EP "Capim Cidreira (Infusão)"

O que você espera causar nas pessoas com essas músicas repaginadas?

Eu acho que é essa coisa de acalanto mesmo, né? Essa coisa de acolher. Tanto que a sonoridade dele é mais para você ouvir e fazer parte dessa infusão. Essa textura de violão e voz, as pessoas no Brasil estão muito acostumados com isso. Eu já tentei apresentar a minha música de várias outras maneiras. E que também traz essa coisa mais intimista, mais calma, mais capim cidreira mesmo, sabe? A gente precisa desse ritmo do desacelero agora, sabe? Essa coisa da introspecção, de você apertar o play e desacelerar um pouco. Porque a gente se encontrou nessa situação de pausa. A gente parou literalmente. E o disco é um pouco esse convite de "tá bom, acho que é hora de a gente respirar um pouco e ver o que tem que ser feito".

Sempre fui um cara que fui cobrado a me posicionar por ser negro e por ter vindo rap. Mas quando comecei a gravar, quando começou a pandemia, falei: "tenho que fazer alguma coisa por mim. Tenho que fazer alguma coisa para não endoidar." E aí eu vi aquela coisa... Todo mundo no Twitter falando um monte, e eu pensando que não sabia se conseguiria contribuir muito ali. Fiquei pensando: será que a revolução é isso mesmo? No Twitter ou deixar a página em preto no Instagram? Era muita coisa. Então, o disco é um convite a isso: vamos pensar, gente!

Como negros, a gente esquece que tem o direito de relaxar, distrair a mente, também, né?

Isso é muito interessante. Porque as pessoas me cobravam posicionamento, mas era uma coisa que, às vezes, eu tentava sair disso por que o negro sempre foi visto assim. Eu ia em um programa de televisão e a pergunta para mim era sempre: "Rael, como é que está a quebrada? E o racismo? E a polícia?" Caralho, mano! Eu sirvo só pra falar dessa porra? Eu estou há 20 anos fazendo música. As minhas músicas desde que comecei falando sobre essas questões raciais, falam dos problemas sociais. Mas eu tentava fugir um pouco disso para não ser visto só como essa parada de: "caralho, só porque eu sou preto tenho que falar sobre racismo." Mas é isso, se for pra falar também, eu tenho muita história triste, só que sempre tentei não trazer só esse lado meu. História triste para nós não falta. Se for pra contar, eu também tenho para contar.

E você colocou um ponto muito foda. Na quebrada, quando se é preto, às vezes as pessoas colocam a gente no lugar de pessoas que não podem pausar. A gente não tem tempo para cuidar de nós. Morre alguém na sexta, na segunda já tem que pegar o busão lotado para ir trabalhar. E tem que estar lá com toda força. A gente não tem tempo para cuidar da gente. Acham que a gente não merece isso. E eu vivi muita coisa. Segurei muito no peito. Falei muito que eu era foda, de quebrada, que não podia chorar, entendeu?

E chegou uma hora que eu me encontrei com depressão depois de tudo isso. Passei os bagulhos mais foda e na hora que eu resolvi toda minha vida, no sentido de conquistar minhas paradas, começou a vir uma bad. Por que? Porque na hora que eu vivi a maioria dos problemas eu segurei tudo nisso de "sou preto, sou forte, sou quebrada?" Só que na hora que o chicote estalou eu falei: "ih, tá vendo? Deu ruim! Fui tentar resolver sozinho e ó no que deu ?"

E isso é muito interessante, porque quando você aborda esse tema na quebrada, as pessoas falam que você está com frescura! "Terapia? Cê é louco! Que frescura, mano! Vai arrumar alguma coisa pra fazer!" É tipo isso. E o disco é esse convite para o autoconhecimento. Aperta e, sei lá, sai um pouco da rede social e vai ouvir esse bagulho.

Você chegou a adiar o lançamento desse EP justamente por causa de uma dor assim, né? Gerada em consequência das mortes do George Floyd, do João Pedro...

Sim, Eu adiei o dia do lançamento do meu disco por que foi muita dor o bagulho do Floyd, do João Pedro. Uma coisa na sequência da outra, e eu senti com uma dor mesmo, me senti impotente. Não sentia conexão para lançar um disco e falar: "Olha, galera, aperta aqui, dá play!" O bagulho pegando fogo e eu nessa? Mas o Bob Marley falava: "mano, as pessoas que fazem o mal não tiram folga nenhum dia, porque nós que falamos de amor e tentamos trazer uma nova proposta vamos parar?" Então, a gente retomou as ideias de lançar o disco com isso também, com esse pensamento de que as pessoas também estão precisando ouvir essas coisas, para servir como uma forma de calmante, de se desconectar um pouco dessas coisas, porque a gente tem que viver um dia de cada vez.

Isso tudo te afetou?

Eu fiquei desesperado, mano. Não tinha conexão. Se fosse lançar alguma coisa naquele momento, eu, como pessoa, sentindo toda aquela dor, aquela confusão, essa turbulência toda? Eu não estava com espírito. E aí eu decidi que eu tinha que me respeitar. E eu acho que tem questões mais importantes agora. Essa luta pela democracia, essa luta contra o racismo? Sabe? É muito além do Rael e da música do Rael. É uma coisa existencial mesmo, de vida. Eu virei e pensei: "E aí mano, o que você vai fazer?"

Quero achar maneiras mais eficientes de contribuir. Eu me senti perdido. Agora, comecei a voltar a encontrar forças de novo porque é aquilo: "Vou parar, caralho? Agora?" Cara, os fascistas e os racistas nunca pararam, o fascismo e o racismo nunca parou. Se os caras estão lá, sempre tramando, pensando em várias ideias ruins para nós, a gente que está do outro lado, falando de amor, tentando resgatar pessoas através da música com diálogo sobre amor próprio, sobre fazer uma pausa no seu dia, sobre respirar... Eu vou parar de falar isso para as pessoas também? A música, a arte nesse momento é uma ferramenta fundamental para isso. Foi isso que bateu em mim. De parar e pensar: "Caralho, tio, você já viveu várias coisas, vários bagulhos, agora você vai ficar nessa? Vamo pra cima!"

Mas, sim, bateu muito em mim todas as questões sociais e raciais. Fiquei me perguntando várias coisas. A gente está cansado, caralho. O barato só vai funcionar quando o Brasil acordar e valorizar o seu 55% da população negra que existe. Como é que um país quer crescer, sendo que 55% da população é deixado de canto? Não vai. Isso é uma coisa que tem que ser pensado em conjunto. O James Baldwin, pensador negro, ele, na época da luta pelos direitos civis, falava uma coisa que serve para o Brasil: irmão, já estou aqui há muito tempo, você, branco, também. Você não vai voltar para a Europa eu não vou voltar para a África. A gente vai ter que arrumar um jeito de conviver pacificamente.

Bruno Trindade Ruiz/Divulgação Bruno Trindade Ruiz/Divulgação

Esse momento tem sido mais de reflexão para você, então?

Sim, eu comecei a conviver mais com meu filho, mano. E ele me lembra cada vez mais que só tenho agora. Sabe por quê? Porque ele me convida para brincar e eu vou, aí acaba aquele bagulho, estou cansado e ele já fala: "e agora?" Toda hora ele está animado. E aí fico pensando: em que momento da minha vida eu perdi essa interação com a vida?

Você já achou a resposta para essa pergunta?

Eu não sei. Acho que foi o momento que parei de me ouvir e fiquei ouvindo muita gente. Menos eu. Parece que agora estou começando a me ouvir mais. Nesse período que fiquei depressivo, joguei muito coisa na mão de muita gente que me ajudou e que eu sou totalmente grato, como a minha esposa, as pessoas da Laboratório Fantasma e todo mundo ao meu redor porque eu estava incapaz de tomar decisões. Quando você tem depressão, você fica numa ótica cinzenta, tá ligado? E para abrir esse bagulho foi difícil.

Mas achei que era mais justo para mim mesmo abrir que estava com depressão. E eu quis anunciar. falei: "Mano eu estou com bagulho. Preciso de ajuda". E é isso. É igual uma gripe essa porra, qualquer um pode ter. É você entender que a depressão é uma coisa química... Entender que todo dia preciso de uma dose de endorfina, fazendo atividade física para ficar da hora. Mano, eu estou na esteira e fico pensando só ideia positiva, de criação.

É muito foda atividade física, só que para começar tem um processo que você tem que fazer uma luta contra o ser interno que existe em você chamado preguiça e cansaço. Na hora que você começar a suar, e seu corpo começar a funcionar junto com a sua cabeça você vai entender a importância vital da atividade física.

Parar um minuto mesmo. Respirar. Você não sabe a diferença que faz tentar desacelerar o seu coração com a respiração. Porque, às vezes, é isso: a gente já acorda, tem que fazer o café, tem que responder, e-mail... Calma, cara! Respira! É muito doido isso. E cada vez mais está sendo uma coisa mais comum na sociedade porque tem gente que tem isso [depressão] e nem sabe, porque está nesse sistema de alerta o tempo inteiro, parece que vai ser atacado, parece que qualquer hora as coisas vão dar ruim.

No princípio da depressão eu comecei a notar isso. Não estava sentindo prazer nos shows e parecia que a qualquer hora ia tudo dar errado. Comecei a notar que ficava com medo, mesmo estando tudo certo. Não conseguia me concentrar, ficava com medo de tudo acabar, sabe essa coisa? Isso crescia cada vez mais e eu ficava em estado de alerta sem precisar. Demorou para eu entender isso, mas quando você tem essa compreensão, com terapia, você fala: "Caralho, fui eu mesmo que criei essa porra sozinho!"

Na primeira música você fala que cantar te aliviou, tirou a dor. Mas você escreveu isso antes da gente entrar nessa pandemia. E agora? Tem sido assim nesses últimos meses? A música tem sido esse respiro no meio de tudo isso pra você?

Eu tenho produzido muito, né? Eu fico muito no estúdio. Há um tempo eu estava falando que era privilégio ter um estúdio e tal. Aí hoje eu vejo que, não, não é privilégio. Foi do zero, mano, não é herança de nada. Eu me sinto honrado de ter esse espaço para fazer instrumental, estudar violão... Tentando melhorar essas coisas. E tem sido remédio fazer isso porque, assim como a música que alguém vai ouvir, eu também aqui produzindo essa música ajuda a me tirar um pouco desses problemas, dessa enxurrada de acontecimento.

Agora é hora de a gente pensar como vai voltar depois disso tudo. Estou tentando voltar um pouco mais brabo, no sentido de uma pessoa melhor. Mas, em resumo, o disco é isso: uma pausa, um convite para parar.

Rael

Bruno Trindade Ruiz/Divulgação

A maioria das músicas ali você lançou em 2019 no álbum "Capim Cidreira". Como surgiu a ideia de lançar esse EP?

Então, eu tive insônia durante 19 anos, agora que comecei a ficar tranquilão, fazendo atividade física, CBD, essas coisas? Me ajudaram bastante. E aí, por opção, durante a quarentena, comecei a gravar e ficava aqui no estúdio até altas horas da madrugada. Aí eu entrava no Instagram para ver qual é que é, e tinha um monte de gente lá, acordada também. E aí eu comecei a mostrar as bases que eu estava fazendo para essas pessoas. Aí virou uma coisa colaborativa. Assim surgiu até uma live chamada "Madrugada Gang". Através dessa troca com eles, a gente fez a seleção das faixas. "A Flor de Aruanda" foram eles que escolheram através de voto. A própria "Semana" e "Tudo Vai Passar" é uma coisa que notei que eles estavam postando e pedindo mais. O público participou bastante. A escolha de "Beijo B", que tem o clipe com Thiaguinho, tem a participação dos fãs também.

Acho que foi o modo que a gente encontrou de se conectar agora porque eu sinto falta de fazer show, de ver, tirar foto, de abraçar, de se conectar mesmo. Para mim, a internet nunca fez tanto sentido quanto agora. Porque antigamente ficava vendo que era um loop de foto. Agora eu vejo que a gente está tendo mais troca. E foi assim que se deu a história das faixas.

Eu já tinha mostrado "Rei do Luau" [única faixa inédita no EP] no primeiro dia que fiz. Era um outro beat, outra rima, as palavras não estavam 100% boas... E aí eu notei que tinha bastante gente acordada nessa madrugada — antes eu fazia isso lá para uma hora da manhã e agora baixei para as 22h, porque eu também não sou a favor da insônia. Insônia é uma merda, mano. No outro dia você acorda uma merda. E aí eu trouxe mais pra cedo para falar: "mano, vocês precisam dormir. O sono é fundamental."

"Rei do Luau" tem parceria com a Iza. Queria saber por que escolheu a Iza e como foi trampar com ela durante a quarentena?

Então, acabou fluindo muito naturalmente. Nesse período que eu estava trabalhando, ela me procurou para uma outra parada e aí a gente ficou trocando ideia, e ela falou: "ah, vamos fazer algo, você é um cara da hora, você nunca errou" (risos). Eu respondi: "porra, tem uma música aqui se você achar bacana..." Aí eu mostrei para ela, e ela pirou. Depois ela compôs a parte dela, chegou representando, cantando muito. E eu admiro muito ela como cantora, como artista, como postura, como mulher. Acho que era uma coisa que tinha que acontecer mesmo porque fazia tanto tempo que eu não falava com ela e ela surgiu na quarentena e a gente se aproximou ali.

Na música, você fala: "Eu só vou trombar com ela no fim dessa quarentena". Ou seja, nada de furar quarentena, né? Mas agora tem todo um papo das pessoas estarem realmente fatigadas de ficar em casa e como faz falta ver as pessoas. Você tem sentido isso?

Olha, ontem foi a segunda vez que eu saí de casa durante a pandemia. Me deu a impressão de que só eu estou de quarentena, sabe? Pela quantidade de gente na rua. É difícil, né? Eu comecei a gravar para enganar o tempo. Estou pintando uma parede aqui em casa. Eu estava treinando para correr meia maratona, e aí nos primeiros dias eu tentei correr aqui no quintal de casa mesmo, mas é foda. E aí comprei uma esteira. Então, estou correndo de novo só para enganar o tempo. E aí tem meu filho que já não aguenta mais ter aula a distância, já não quer mais ficar na frente da tela, falando que sente falta das pessoas, dos amigos. É difícil.

Bruno Trindade Ruiz/Divulgação Bruno Trindade Ruiz/Divulgação

E você disse que já teve depressão. Não rola medo nesse momento de voltar a esse quadro por causa de todos os acontecimentos que a gente tem vivido?

Fico pensando nessa galera que mora em casa sozinha. Porque essa parada de ficar trancado em casa não é para todo mundo, né? Eu fico me perguntando como é que uma pessoa que mora sozinho deve estar. No começo, quando tinha passado um mês da pandemia, liguei para minha terapeuta só para trocar uma ideia com ela, para saber se eu estava normal. Porque, assim, eu estava muito tranquilo, tá ligado? E ainda estou muito tranquilo. E aí ela me trouxe uma coisa que foi: "Você não tinha horário para nada, você não tinha rotina e agora você está com tempo para estudar inglês, para tocar violão, você está dormindo... É a primeira vez que você está fazendo alguma coisa para você. Por isso você está bem."

Mas é isso, o que mais assusta, na realidade, é o sistema econômico, as finanças. Porque o bagulho de ficar em casa e você fazer suas coisas no seu horário, para quem tem essa possibilidade, é do caralho. Mas as finanças vão pesando, as mortes vão pesando. Minha mãe tem 81 anos e está na cadeira de rodas no Jardim Iporanga, na quebrada, sacou? É foda! Primeira vez na história que a gente está passando isso. E ainda com todo esse debate a racial rolando.

Foi por isso que eu não consegui lançar o disco. Eu me senti, tipo: "Caralho, faz anos que a gente está falando isso!" Tipo "racistas otários nos deixem em paz", como diria o Racionais. Desde o Racionais a gente está falando disso. Quando entrei nesse bagulho do rap, eu tinha oito anos de idade, dançava break. Fui na São Bento, e na primeira apresentação que vi ao vivo foi do MT Bronx falando: "Por que o preconceito...", sabe? A gente está lidando com isso diariamente.

E aí nós assistimos essa parada continuando e parece que não adianta mais. Por isso que eu falei: não é mais só a música. Sim, ela tem um papel superimportante, traz uma mensagem, uma luta. Mas agora chegou a hora de já não ser mais só isso. Não adianta eu ficar lá no Twitter falando um monte. E aí? Vai ficar só no papo do Twitter? Essas mortes foram a gota d'água para todo mundo. Porque as pessoas estão começando a entender que essa instituição não funciona. Caralho, mano, nós estamos no meio de uma pandemia e os cara tem tempo para matar preto? Os caras têm tempo de entrar numa favela e sair atirando?

E, Rael, a maioria das músicas são antigas. O que mudou da pessoa e o músico que você era quando lançou essas músicas pela primeira vez, para a pessoa e o músico que você é agora lançando esse EP?

Acho que é bem aquela frase que fala: quando você entra no rio, tanto você quanto o rio já mudaram. Quando a gente se encontrou no estado pandêmico, naturalmente todas as pessoas mudaram a ótica sobre o planeta e se provou que somos frágeis demais. Só que toda mudança radical como essa leva um tempo de amadurecimento para você digerir. Então, ainda estou me enxergando dentro dessa bagunça toda. Mas, como artista, estou trazendo mais alguma coisa para o mundo nesse momento em forma de abraço, em forma de se conectar com as pessoas através disso já que a gente não pode se ver pessoalmente. Mas essa é uma pergunta difícil.

Acho que talvez trouxe um Rael mais esperançoso. Apesar de estarmos vivendo tudo isso, eu acredito que quando a gente passar por isso, não digo toda a população, mas grande parte população vai começar a enxergar os valores essenciais da vida que são essa conexão com a natureza, essa conexão com espírito, a valorização dos elementos, dos recursos naturais. A gente está no momento pandêmico, mas depois disso gente vai ter que falar dos problemas climáticos também.

Estou mais orador, mais comunicador. Essa coisa que as pessoas sentiam falta de mim, desse posicionamento, agora estou falando para caralho. E eu estou falando coisas que eu não falava antes. Agora bateu, senti a necessidade de falar também. As pessoas naturalizaram negro como uma pessoa que vai lá e fala pelos outros negros. Onde eu ia, nos veículos que eu ia era assim. E eu não queria ocupar esse lugar, porque pensava que não tinha como eu falar em nome do sofrimento de outras pessoas com tanta propriedade. Mas tem outro ponto. Eu não quero ser essa pessoa que é convidada só para falar sobre esse tipo de coisa, só para esse tipo de pauta.

Agora depois que aconteceram essas paradas, eu pensei: "Mano você vai ter que ser mais brabo mesmo. Você vai ter que falar mais, você vai ter que mostrar suas indignações. Posicionamento mesmo, tá ligado?"

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