O que você espera causar nas pessoas com essas músicas repaginadas?
Eu acho que é essa coisa de acalanto mesmo, né? Essa coisa de acolher. Tanto que a sonoridade dele é mais para você ouvir e fazer parte dessa infusão. Essa textura de violão e voz, as pessoas no Brasil estão muito acostumados com isso. Eu já tentei apresentar a minha música de várias outras maneiras. E que também traz essa coisa mais intimista, mais calma, mais capim cidreira mesmo, sabe? A gente precisa desse ritmo do desacelero agora, sabe? Essa coisa da introspecção, de você apertar o play e desacelerar um pouco. Porque a gente se encontrou nessa situação de pausa. A gente parou literalmente. E o disco é um pouco esse convite de "tá bom, acho que é hora de a gente respirar um pouco e ver o que tem que ser feito".
Sempre fui um cara que fui cobrado a me posicionar por ser negro e por ter vindo rap. Mas quando comecei a gravar, quando começou a pandemia, falei: "tenho que fazer alguma coisa por mim. Tenho que fazer alguma coisa para não endoidar." E aí eu vi aquela coisa... Todo mundo no Twitter falando um monte, e eu pensando que não sabia se conseguiria contribuir muito ali. Fiquei pensando: será que a revolução é isso mesmo? No Twitter ou deixar a página em preto no Instagram? Era muita coisa. Então, o disco é um convite a isso: vamos pensar, gente!
Como negros, a gente esquece que tem o direito de relaxar, distrair a mente, também, né?
Isso é muito interessante. Porque as pessoas me cobravam posicionamento, mas era uma coisa que, às vezes, eu tentava sair disso por que o negro sempre foi visto assim. Eu ia em um programa de televisão e a pergunta para mim era sempre: "Rael, como é que está a quebrada? E o racismo? E a polícia?" Caralho, mano! Eu sirvo só pra falar dessa porra? Eu estou há 20 anos fazendo música. As minhas músicas desde que comecei falando sobre essas questões raciais, falam dos problemas sociais. Mas eu tentava fugir um pouco disso para não ser visto só como essa parada de: "caralho, só porque eu sou preto tenho que falar sobre racismo." Mas é isso, se for pra falar também, eu tenho muita história triste, só que sempre tentei não trazer só esse lado meu. História triste para nós não falta. Se for pra contar, eu também tenho para contar.
E você colocou um ponto muito foda. Na quebrada, quando se é preto, às vezes as pessoas colocam a gente no lugar de pessoas que não podem pausar. A gente não tem tempo para cuidar de nós. Morre alguém na sexta, na segunda já tem que pegar o busão lotado para ir trabalhar. E tem que estar lá com toda força. A gente não tem tempo para cuidar da gente. Acham que a gente não merece isso. E eu vivi muita coisa. Segurei muito no peito. Falei muito que eu era foda, de quebrada, que não podia chorar, entendeu?
E chegou uma hora que eu me encontrei com depressão depois de tudo isso. Passei os bagulhos mais foda e na hora que eu resolvi toda minha vida, no sentido de conquistar minhas paradas, começou a vir uma bad. Por que? Porque na hora que eu vivi a maioria dos problemas eu segurei tudo nisso de "sou preto, sou forte, sou quebrada?" Só que na hora que o chicote estalou eu falei: "ih, tá vendo? Deu ruim! Fui tentar resolver sozinho e ó no que deu ?"
E isso é muito interessante, porque quando você aborda esse tema na quebrada, as pessoas falam que você está com frescura! "Terapia? Cê é louco! Que frescura, mano! Vai arrumar alguma coisa pra fazer!" É tipo isso. E o disco é esse convite para o autoconhecimento. Aperta e, sei lá, sai um pouco da rede social e vai ouvir esse bagulho.
Você chegou a adiar o lançamento desse EP justamente por causa de uma dor assim, né? Gerada em consequência das mortes do George Floyd, do João Pedro...
Sim, Eu adiei o dia do lançamento do meu disco por que foi muita dor o bagulho do Floyd, do João Pedro. Uma coisa na sequência da outra, e eu senti com uma dor mesmo, me senti impotente. Não sentia conexão para lançar um disco e falar: "Olha, galera, aperta aqui, dá play!" O bagulho pegando fogo e eu nessa? Mas o Bob Marley falava: "mano, as pessoas que fazem o mal não tiram folga nenhum dia, porque nós que falamos de amor e tentamos trazer uma nova proposta vamos parar?" Então, a gente retomou as ideias de lançar o disco com isso também, com esse pensamento de que as pessoas também estão precisando ouvir essas coisas, para servir como uma forma de calmante, de se desconectar um pouco dessas coisas, porque a gente tem que viver um dia de cada vez.
Isso tudo te afetou?
Eu fiquei desesperado, mano. Não tinha conexão. Se fosse lançar alguma coisa naquele momento, eu, como pessoa, sentindo toda aquela dor, aquela confusão, essa turbulência toda? Eu não estava com espírito. E aí eu decidi que eu tinha que me respeitar. E eu acho que tem questões mais importantes agora. Essa luta pela democracia, essa luta contra o racismo? Sabe? É muito além do Rael e da música do Rael. É uma coisa existencial mesmo, de vida. Eu virei e pensei: "E aí mano, o que você vai fazer?"
Quero achar maneiras mais eficientes de contribuir. Eu me senti perdido. Agora, comecei a voltar a encontrar forças de novo porque é aquilo: "Vou parar, caralho? Agora?" Cara, os fascistas e os racistas nunca pararam, o fascismo e o racismo nunca parou. Se os caras estão lá, sempre tramando, pensando em várias ideias ruins para nós, a gente que está do outro lado, falando de amor, tentando resgatar pessoas através da música com diálogo sobre amor próprio, sobre fazer uma pausa no seu dia, sobre respirar... Eu vou parar de falar isso para as pessoas também? A música, a arte nesse momento é uma ferramenta fundamental para isso. Foi isso que bateu em mim. De parar e pensar: "Caralho, tio, você já viveu várias coisas, vários bagulhos, agora você vai ficar nessa? Vamo pra cima!"
Mas, sim, bateu muito em mim todas as questões sociais e raciais. Fiquei me perguntando várias coisas. A gente está cansado, caralho. O barato só vai funcionar quando o Brasil acordar e valorizar o seu 55% da população negra que existe. Como é que um país quer crescer, sendo que 55% da população é deixado de canto? Não vai. Isso é uma coisa que tem que ser pensado em conjunto. O James Baldwin, pensador negro, ele, na época da luta pelos direitos civis, falava uma coisa que serve para o Brasil: irmão, já estou aqui há muito tempo, você, branco, também. Você não vai voltar para a Europa eu não vou voltar para a África. A gente vai ter que arrumar um jeito de conviver pacificamente.