Vida de seringueiro

Primo de Chico Mendes, Raimundão relembra lutas do povo extrativista: 'Eramos verdadeiros escravos'

Carlos Minuano colaboração para Ecoa, de Xapuri (Acre)* Katie Maehler / Mídia NINJA

"Um caboclo nascido e criado no pé da seringueira". É assim que Raimundo Mendes, o Raimundão, se define. Aos 77 anos, o seringueiro viu a região onde nasceu se transformar: a soja, o pasto seco e o gado pelo caminho até a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, em Xapuri (AC), tomaram o lugar da vastidão da floresta amazônica da infância de Raimundão.

Sobraram as lembranças do que chama de "festividade da floresta": ele, menino de tudo aos 5 anos, andando pelas estradas de seringa ao lado dos irmãos mais velhos, o canto dos macacos ou do uirapuru, até o riscar da asa do jacu...

Aprendeu a observar a natureza com o pai, seu Francisco Deodato, que o ensinou também a colher borracha, plantar arroz, feijão, mandioca, banana e jerimum. "Desde menino tomei consciência de que a floresta era para ser mantida em pé."

Foi esse ensinamento um dos motores para as lutas que o seringueiro travou (e ainda trava) contra fazendeiros e empresas que chegaram devastando a região. Por anos, ao seu lado estava o seringueiro e ambientalista Chico Mendes - primo de Raimundão.

Os seringueiros resistiram à invasão violenta dos fazendeiros criadores de gado que chegavam do sul do país e juntos fundaram em 1977 o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri.

"Eramos escravos"

"Os seringueiros eram explorados demais", relembra Raimundão sobre a luta ao lado de Chico Mendes e tantos outros companheiros. Os patrões pagavam mal pela borracha colhida. Também vendiam mercadorias para os trabalhadores no preço que bem entendiam. E quando a produção ficava abaixo das expectativas, mandavam embora.

"Eramos verdadeiros escravos", reflete.

A situação piorou ainda mais com a expansão da pecuária na década de 1970, que foi promovida pela ditadura militar por meio de incentivos fiscais. Foi o início de uma época marcada pela violência.

"Era um verdadeiro inferno, o latifúndio expulsando os seringueiros queimando casa, matando as pessoas". Para Chico, Raimundão e vários outros seringueiros foi o começo de uma luta sangrenta que deixou muitos mártires pelo caminho. Segundo Raimundão, desde o início, seu primo previa que o pior poderia acontecer.

"Dificilmente veremos o final dessa luta", previu o ambientalista. As ameaças de morte que começaram a receber a partir do início do movimento sindical sinalizaram que ele não estava errado.

"Eu também fui ameaçado muitas vezes. Nosso caminho era cheio de perigo. Tinha que fazer desvios porque sabia que estávamos sendo perseguidos", conta Raimundão.

Ponto de virada

"Até hoje eu ainda fico pensando como foi que a gente conseguiu sobreviver sem dinheiro e sem governo ao nosso lado", comenta Raimundão. Logo ele se corrige. "Muitos não conseguiram, vários companheiros foram mortos."

"O governo estava a favor do latifúndio, botava a polícia para ajudar os fazendeiros a fazerem essas atrocidades", completa. Segundo ele, um dos companheiros do Acre, Raimundo Calado, foi morto, na década de 1980, com policiais dando proteção ao jagunço. "Invadiram a casa do seringueiro e assassinaram ele lá."

Mas o tiro de escopeta que matou Chico Mendes na porta de sua casa em Xapuri em 22 de dezembro de 1988 foi o que gritou mais alto. Chamou a atenção do mundo para o terror que assolava a região amazônica.

Raimundão lembra que só então começou uma pressão internacional para conter o desmatamento e as más condições de trabalho, além de cobrar a preservação das terras indígenas na região.

Dois meses depois, em 22 de fevereiro de 1989, foi criado o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), principal órgão federal de combate ao crime ambiental.

No ano seguinte, em 1990, foram criadas as primeiras quatro reservas extrativistas, entre elas a Resex Chico Mendes, que a reportagem de Ecoa visitou para entrevistar Raimundão.

Hoje são 53 reservas que ocupam uma área aproximada de 35 milhões de hectares, cerca de 7% da Amazônia Legal.

Triste volta ao passado

Com desmonte da fiscalização e recordes de desmatamento, o governo de Jair Bolsonaro foi para Raimundão uma triste volta ao passado. Ele define os últimos anos como um verdadeiro desastre.

"A nossa reserva sofreu um processo de invasão e de destruição muito grande, incentivado por este governo que passou. Foi péssimo para as populações extrativistas e indígenas", conta.

Segundo dados da Plataforma Terra Brasilis do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), os piores índices de desmatamento na Resex Chico Mendes foram registrados nos últimos quatro anos, desde que esses dados começaram a ser coletados em 2008: está em 5º lugar do ranking de desmatamento acumulado em unidades de conservação na Amazônia Legal.

Para agravar ainda mais o cenário, o crime organizado avança rapidamente. Junto com desmatamento, grilagem, caça ilegal, garimpo e narcotráfico trouxeram de volta a violência à região.

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Raimundão - Reprodução Instituto Chico Mendes - Reprodução Instituto Chico Mendes
Raimundão, Jaime Araújo, Osmarino Amâncio, o chefe indígena Suero Kaxinawá, Chico Mendes e Zé Corrêa, durante viagem à Brasília em 1987, no nascedouro da 'Aliança dos Povos da Floresta'.
Imagem: Reprodução Instituto Chico Mendes

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Os tempos de conflitos deixou marcas também em sua família. "Eu tenho muita tristeza na minha vida", desabafa Raimundão.

"Se eu não fugi da luta antes do Chico morrer, depois é que não iria fugir mesmo", diz. "Fui para o estado de Rondônia, pro Vale do Guaporé, para a região de Cruzeiro do Sul, onde Chico tinha deixado iniciado um trabalho, fui lá para dar continuidade".

Sua esposa, com quem teve três filhos, no entanto, não aguentou a ausência e o casamento acabou. Dos três filhos, só a mulher sobreviveu. "Os dois rapazes se envolveram com drogas e foram assassinados."

Ele voltou a se casar e, com a nova companheira, teve mais cinco filhos. "Graças a Deus, foi no tempo em que as coisas já tinham se acalmado por aqui, e como eles já estão todos adultos, agora eles que cuidam de mim."

Katie Maehler / Mídia NINJA
Raimundão

Ecologia sem luta de classe...

"Chico é um heroi", diz Raimundão com a voz embargada. "Foi uma pessoa que resolveu doar a própria vida, não apenas à luta dos seringueiros, mas em defesa da nossa floresta amazônica".

"Ecologia sem luta de classe é jardinagem", dizia Chico Mendes. Por isso, Raimundão acredita que, apesar dos enormes desafios que a região ainda enfrenta, se o primo e amigo estivesse vivo estaria contente, porque, ainda que lentamente, algumas coisas parecem estar melhorando.

"Hoje na reserva não existe mais analfabetismo, antes 99% dos seringueiros eram analfabetos". Uma realidade que Raimundão garante ter começado a mudar com Chico Mendes.

"Ele [Chico Mendes] era criança ainda e pedia ao pai para aprender a escrever o nome, mas foi alfabetizado aos 18, por um refugiado da Coluna Prestes, chamado Euclides Távora, que ficou na casa dele, depois se tornou professor do Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização]."

Apesar da aparente boa forma, Raimundão reclama de problemas de saúde. "Fumei por 50 anos, e passei cinco anos batendo veneno". Ele conta que foi operador de inseticida na antiga Sucam (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública).

Lá, trabalhou com o DDT. Segundo ele, o veneno era usado nos seringais e nas casas para evitar a proliferação da malária e para controle de pragas em lavouras e de insetos.

O DDT foi proibido em 1985 pelo Ministério da Agricultura. Hoje, o seringueiro move um processo contra o estado, pedindo indenização pela contaminação durante o período em que trabalhou. "Tenho muito veneno no meu sangue."

Ainda assim, a rotina de Raimundão, no Seringal da Floresta, na resex Chico Mendes, onde vive, começa bem cedo e não parece em nada com o cotidiano de alguém com problemas de saúde.

Ele levanta todos os dias por volta das 4 horas da manhã. Faz o café, o mingau, coloca milho para as galinhas, macaxeira para os porcos e depois vai cuidar do roçado ou sai para caçar. "Se eu não estivesse aqui hoje, estaria no mato."

*O repórter viajou a Xapuri, no Acre, a convite da empresa Vert

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