Futuro negro

Como o afrofuturismo pode ajudar a estruturar modelos de sociedade mais justos para a população negra

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Amanda Miranda/UOL

O futuro desse planeta nascerá do lado de lá do Atlântico. E será cada vez mais preto.

Ou, como declarou em 2016 Achille Mbembe, filósofo camaronês e um dos principais estudiosos do pós-colonialismo: "O mundo de amanhã será a África", referindo-se ao fato de que daqui 30 a 50 anos uma em cada três pessoas no planeta será africana ou descendente de uma em diáspora. Na visão do intelectual, torna-se necessário pensar caminhos para que essa vantagem populacional se traduza em produção de riquezas em vez de uma maior precarização da vida de negros e negras no mundo.

E se perguntarem qual será a cara desse futuro, talvez possamos dizer que se parecerá com um pássaro, muito conhecido em algumas culturas africanas. Diferente dos outros, o bicho pode ser facilmente reconhecido por estar sempre olhando para trás enquanto voa para frente. E por isso é comumente usado para ilustrar o conceito de Sankofa, que tem como base um provérbio vindo do que hoje conhecemos por Gana, que diz: "não é errado voltar para buscar aquilo que esquecemos", em tradução para o português. Comumente também observamos a utilização dessa imagem para representar um movimento que justamente nasce para abrir espaços largos para o negro em diáspora fantasiar imagens de futuro.

O afrofuturismo, assim como o pássaro, apesar da grande ligação com o que ainda está por vir, sempre olha para trás. Busca os saberes ancestrais enquanto avança. O movimento formalmente recebeu esse nome no começo dos anos 1990 e possui algumas definições — só nessa reportagem, seis pessoas dão seis visões diferentes, porém não excludentes. O afrofuturismo vive em uma constante conversa entre o que é a realidade e o que é ficção. Apesar das obras mais conhecidas serem no campo do cinema, música e literatura, o diálogo com a ciência e a tecnologia também se faz de forma direta.

Enquanto pessoas negras estão escrevendo obras ficcionais, cientistas, professores, estudiosos trabalham para provar na prática e formalizar os conhecimentos que o movimento prega.

Ficção e realidade andam juntas, se completam e buscam, também juntas, construir o movimento que tem como principal trunfo apresentar novas narrativas que contam histórias do povo negro para além das tragédias, da dor e do sofrimento, buscando no passado pré-colonial respostas para perguntas que podem construir um outro tipo de presente e de futuro.

O que é afrofuturismo?

Gosto de uma definição curta que é a de pensar o afrofuturismo como a junção entre narrativas, as obras de ficção especulativa e a autoria e perspectivas negras. Juntando as duas coisas você tem o afrofuturismo.

Kênia Freitas, doutora em Comunicação e Cultura e mestre em Multimeios

Afrofuturismo é um movimento político, é um projeto de soberania preta autônoma, que tem por interesse e meta garantir um futuro para o povo preto a nível mundial.

Esdras Oliveira de Souza, professor, especialista em educação e pesquisador do afrofuturismo

Para mim, afrofuturismo é: arte, ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente. Ou seja, o que foi historicamente negado a nós relacionado à presença de africanos e afrodescendentes no processo da história enquanto participação na construção do conhecimento universal.

Zaika Santos, multi-artista, pesquisadora, cientista e divulgadora científica do Afrofuturismo

A minha definição de afrofuturismo é muito pautada na ficção especulativa. Então, eu defino o afrofuturismo como ficção especulativa de autoria negra e que traz também protagonismo negro nas obras.

Waldson Gomes de Souza, Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira contemporânea

Sempre dialogo com duas definições que acho que explicam bem o que o afrofuturismo é: uma delas vem da Kênia Freitas que fala que o afrofuturismo é um movimento multifacetado e plural. Mas também gosto da simplicidade da definição da Nataly Nery, que é influencer, quando ela fala que o afrofuturismo é a ideia radical de que negros estarão vivos no futuro.

Morena Mariah, pesquisadora

Ele é uma possibilidade dos novos tempos da tecnologia, da comunicação dessa nova geração negra que tem feito e ocupado espaços de literatura, artes, ciência, tecnologia, entre outros, como uma possibilidade de refazermos a nossa própria história.

Lu Ain-Zaila, escritora afrofuturista

Temporalidade circular

Vale ressaltar que afrofuturismo nada tem relação com o movimento Futurista, nascido na Itália, na década de 1900. Enquanto o primeiro prega um olhar atento ao passado para construir o futuro, o segundo rejeita o que já aconteceu, focando apenas na ideia de futuro, de modernização futurística.

O tempo do afrofuturismo funciona de forma diferente do que é ensinado no ocidente porque segue algo já sabido em culturas africanas: a temporalidade não é linear, mas cíclica. "A esteira do tempo move-se para trás mais do que para a frente", como definiu a doutora em psicologia e antropologia da África negra Ronilda Ribeiro em "Alma Africana no Brasil", referindo-se a como essa concepção de tempo está mais atenta ao que já aconteceu do que ao que poderá ocorrer.

A antropóloga descreve o ciclo da vida circular da seguinte forma: "A criança vai se transformando até chegar a adulto; este se transforma até chegar a velho; este, por sua vez, se transforma, inclusive atravessando o portal da morte, para alcançar a condição de antepassado; o antepassado renascerá como criança."

A pesquisadora e estudiosa do movimento Morena Mariah desenvolve bem o tema no podcast "Afrofuturo", projeto que aborda vários aspectos do conhecimento afrofuturista. Segunda ela, quando a concepção de tempo está sempre voltada ao futuro, ao que pode ou não acontecer nesse tempo que virá, como ocorre nas culturas ocidentais, o resultado disso é a ansiedade que "se torna a tônica do tempo da cultura ocidental. O que a gente vai perceber é que a orientação temporal africana busca na tradição uma alternativa para os problemas e desafios do presente".

Ou seja, existe o entendimento de que as soluções para os desafios que encontramos na vida já estão dadas. Enquanto a cultura ocidental acredita que as respostas para esses problemas, desafios e inquietações estão no futuro, a temporalidade africana vai dizer que elas já vieram no passado.

E mais do que olhar a todo o tempo para o passado que já está definido e guarda todas as respostas, a temporalidade africana vê uma coexistência entre o que vivemos no passado, o que estamos vivendo no hoje e o que viveremos no futuro. O resgate do passado que o afrofuturismo faz está diretamente relacionado a esse outro tipo de temporalidade que não é linear. É olhando para o passado que o povo africano ou diaspórico encontra sua identidade no presente para conseguir projetar modelos de futuros.

Humanidade compartilhada

Mas o fato é que ainda é difícil ser uma pessoa negra e pensar em futuro. Não à toa é necessário que exista um movimento para incentivar esse tipo de especulação. As desigualdades sociais e raciais às quais essa parte da população está submetida ainda apresentam-se como um entrave para o sonhar. Como pensar em futuro em um país onde já decoramos de cabo a rabo a estatística que diz que a cada 23 minutos um jovem negro é morto? Algo parecido pensou Samuel R. Delany, um dos principais autores do afrofuturismo, em 1994.

O escritor dizia que o motivo dessa ausência de imagens de futuro para a população preta era histórica e encontrava suas raízes na sistemática privação de qualquer imagem de passado. "Quando, de fato, nós dizemos que esse país [no caso, os Estados Unidos] foi fundado na escravidão, nós devemos lembrar que queremos dizer, especificamente, que ele foi fundado na destruição sistemática, consciente e massiva das reminiscências culturais africanas", escreveu sobre a tentativa de apagamento por completo de qualquer vestígio da cultura de países africanos em negros da diáspora.

Agora, se no afrofuturismo é preciso voltar ao passado para pensar no futuro, para onde volta um povo que não tem qualquer referência ou mesmo noção de onde veio?

"As respostas são muito de ir para os processos imaginativos desse passado, sabe? Ir para processos de fabulação. Por exemplo, existe o conceito de fabulação crítica que algumas historiadoras usam", explica Kênia Freitas, doutora em comunicação e cultura pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e mestre em multimeios pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Nesse processo, estudiosos passam a olhar para fatos históricos que geralmente são contados dando foco ao desfecho mais do que o processo, com outra lente.

A história contada por quem venceu já não interesse mais, é preciso falar também das contribuições dadas por quem perdeu. Kênia exemplifica falando sobre os episódios de rebelião de negros escravizados, que costumam ser lembrados pelo fim trágico que muitos tiveram, mas pouco lançamos o olhar para a criação do sentimento de coragem que gerou um ato revolucionário.

Nesse sentido, o afrofuturismo vai contra o que a autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie definiu como "história única", quando alertava para os perigos de conhecer apenas um lado de uma narrativa e torná-lo a única versão do ocorrido. Assim, ela diz que a consequência disso é a seguinte: "ela [história única] rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difícil. Enfatiza como nós somos diferentes em vez de como somos semelhantes."

São essas voltas, de olhar para o passado e desafiar a narrativa, imaginar além, imaginar nas brechas, contar de outra forma, que não é desviado esse processo real e histórico, não é uma invenção da história, é entender que essa história oficial que chega para a gente já é uma história fabulatória e que existem outros meios de contá-la.

Kênia Freitas, doutora em Comunicac?a?o e Cultura e mstre em Multimeios

Reconstrução de imaginários

Em seu artigo "Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira contemporânea", o escritor e pesquisador do movimento, Waldson Gomes de Souza escreve sobre a possibilidade de mudar o passado quando há narrativa. Em entrevista a Ecoa, ele explica: "o movimento vem para mudar imaginários. Quando a gente mudar o foco e colocar pessoas negras como protagonistas, temos aí essa capacidade de mudar o passado porque a gente está mudando as imagens que estão sendo reproduzidas sobre nós."

Assim como ele, Morena Mariah acredita que um dos maiores potenciais do afrofuturismo é justamente o de conseguir trabalhar na prática com a reconstrução de imaginários.

"De onde viemos? O que aconteceu nesse lugar antes virmos para cá? O que aconteceu depois que chegamos aqui? Como esse processo que vivemos hoje como sociedade pode se desenrolar no futuro de pessoas negras? E que futuro será esse? Como chegaremos lá?", são as perguntas que ela utiliza e julga necessário de serem abordadas dentro do movimento.

E, assim, por meio desses questionamentos surge um processo de retomada da cultura negra por pessoas que passam a contar suas próprias histórias de forma diferente do que estamos acostumados a aprender formalmente em instituições de ensino ou livros didáticos.

"O afrofuturismo é uma espécie de mola propulsora ou de gatilho que vai gerar uma série de reflexões, que aí sim vão transformar nossa realidade e que podem trazer objetivos a serem conquistados. Mas essencialmente ele traz a reflexão para a gente entender onde queremos chegar e o que queremos conquistar. Isso provoca um movimento de crítica também da nossa situação do presente", completa Morena.

Afrofuturismo em dupla frequência

"A própria existência do afrofuturismo já é uma prática de afrocentricidade e antirracismo combinadas", diz Luz Ain Zaila, primeira mulher negra a publicar um livro de ficção científica afrofuturista no Brasil. Para ela, o processo de colonização que gerou três séculos de escravidão e produziu diversas tentativas de apagamento de culturas, saberes e costumes de povos negros africanos, dificultou a criação de um novo imaginário sobre o que é ser negro no Brasil.

"Precisamos entender que as coisas foram feitas para que a gente acredite que só existe uma história única, que é a história branca, de quem venceu. E isso nos faz chegar em um ponto que a nossa mente não consegue visualizar uma imagem de representação negra. É como quando você lê um livro e automaticamente imagina que o personagem é branco", fala a escritora. Por isso, ela desenvolveu o que chama de "Afrofuturismo em dupla frequência", tema que virou até um curso.

Nesse conceito, o movimento passa a ser visto como uma ferramenta antirracista porque fala para a pessoa negra que ela tem uma História para além da escravidão, que existe cultura, matemática, biologia, entre tantas outras coisas, mas, principalmente, humanidade.

Enquanto diz para pessoas brancas contemporâneas que "apesar delas não terem culpa pela criação do racismo, são elas as responsáveis pela manutenção dele e, por isso, "precisam ter um posicionamento antirracista, de entender que o povo negro tem humanidade e que elas precisam fazer parte da mudança, do combate ao racismo que venha da consciência prática do cotidiano".

Afinal, o afrofuturismo é uma utopia?

Enquanto pessoas brancas tentam imaginar como seria o apocalipse que resultaria no fim do mundo, pessoas negras já passaram por ele. Essa é uma das principais concepções do afrofuturismo. O apocalipse negro já ocorreu. E foi justamente quando africanos foram retirados de seus lugares para serem levados forçosamente para a Europa e as Américas. O colonialismo, a escravidão, o racismo, as desigualdades sociais e raciais que negros enfrentaram e enfrentam até hoje é a distopia que já chegou e se mantém firme desde então.

Nesse sentido, considerar o afrofuturismo uma utopia não significa simplesmente acreditar que esse é um ideal, mas sim uma oposição ao momento atual distópico no qua a humanidade vive há séculos. Ao telefone, quando perguntado qual a maior contribuição do movimento para o cotidiano dele, o professor Esdras responde sem titubear de forma simples e poética: "o Afrofuturismo me ensinou a sonhar. O que eu mais ganhei foi isso. E sonhar coisas boas."

Qual a importância da utopia? Ela serve para criticarmos a realidade atual que é essa distopia. Pensa: a cada 23 minutos um jovem preto é assassinado. Isso não é normal. Mas a vida continua porque a gente nem se comove mais, fomos ensinados a naturalizar a morte de pessoas negras. Essa é a distopia do presente. Nós somos os condenados da terra, como afirma [Frantz] Fanon. Nós vivemos em situação de guerra. Nossos territórios são vigiados, tem policiamento ostensivo. O nosso direito à cidadania é negado. Repito: vivemos uma distopia. O afrofuturismo me apresenta o oposto, a utopia. Existe um mundo para além disso. Se não for aqui na Terra, que seja em Saturno como pregava Sun Ra. Nós merecemos mais do que essa realidade distópica.

Esdras Oliveira de Souza, professor, especialista em educação e pesquisador do afrofuturismo

Mas nem só de ficção vive o afrofuturismo. A mineira Zaika Santos, por exemplo, é multiartista, pesquisadora, cientista e divulgadora científica, com trabalho de comprovação científica dos conhecimentos que movimento prega. O ponto de partida tem sido a própria criação da palavra que denomina o movimento.

Em 1994, foi o crítico cultural norte americano branco chamado Mark Dery que, ao entrevistar três intelectuais negros (Greg Tate, Tricia Rose e Samuel R. Delany), escreveu o ensaio "Black to the Future: Ficção Científica e Cibercultura do Século XX a Serviço de uma Apropriação Imaginária da Experiência e da Identidade Negra", afirmando que certas produções de pessoas negras que utilizavam da tecnologia e ficção especulativa para pensar em futuros poderiam ser chamadas de afrofuturismo.

Ele analisava especialmente as produções culturais do músico e filosofo Sun Ra. "Ele [Mark Dery] escreve esse artigo que vai para uma revista de cultura pop e cunha esse movimento, mas sem visibilizar, por exemplo, que o Sun Ra tinha uma perspectiva antropológica, sociológica, que ele pesquisou Kemet [nome dado ao Antigo Egito]. Não era só numa perspectiva artística, estética, mas em uma perspectiva de realidade da dimensão da vida, de quem estudou muito, sabe? E isso é ignorado", conta Zaika.

O trabalho que ela realiza baseia-se no que não é sabido, do conhecimento desenvolvido por pessoas negras que deixamos de aprender ou que creditamos a pessoas brancas ao longo dos séculos. A partir da pergunta "O que eu não sei sobre Afrofuturismo, Arte, Tecnologia, Ciência e Inovação Africana e Afro Diaspórica?", ela investiga e divulga o conhecimento científico de pesquisadores negros, especialmente cientistas negras, por meio de palestras, debates, cursos e oficinas. O intuito é realizar a investigação histórica relacionada à produção de saberes por africanos ou afrodescendentes para que isso sirva de material a ser usado em sala de aula.

O lugar do afrofuturismo na dimensão de realidade é a investigação histórica. Porque a ciência legitima pautas, mas conhecemos a ciência ocidental, hegemônica, produzida com uma narrativa universalista abstrata que inviabilizou, suprimiu e absorveu para si a História da arte, ciência, tecnologia e inovação das civilizações africanas e de afrodescendentes. A materialidade da História africana e afrodescendente se dá em todos os campos do conhecimento. Isso foi roubado enquanto consciência cognitiva e na contemporaneidade nomeamos este furto de Epistemicídio.

A retomada desses conhecimentos é super necessária e se dá inicialmente pela realização de cientistas negras que estão no campo da ciência e tecnologia com uma perspectiva emancipatória de descolonização da ciência para além do empoderamento, como Ana Botorantin, Eneida Alves, Anita Canavarro, Katemari Rosa, Bárbara Carine, Zelia Ludwig, Sonia Guimarães, Denise Fungaro, Nilseia Amauro, Luciana Silva, Viviane Alves, Joana D'arc Félix, Nina Da Hora, Jaqueline Góes, Sil Bahia, Marcelle Soares, Sueli Carneiro, Lelia González?

Todas essas mulheres, entre outras, que precisam ser visibilizadas, tanto elas quanto tudo que a gente tem no campo da arte, ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente.

Zaika Santos, multi-artista, pesquisadora, cientista e divulgadora científica do Afrofuturismo

Aplicação na prática

O desafio, porém, ainda é pensar nesse movimento no âmbito da realidade, trazendo os saberes que ele desenvolve para a prática. "O olhar ainda não foi convertido para outros lugares", como afirma Zaika. Na maioria dos casos, por grande parte das produções serem peças ficcionais do campo da arte e literatura, o movimento é encarado como fantasioso.

"Existe uma necessidade grandiosa de se fazer isso, de se pensar nesse movimento como algo real para que possamos entender o que é a dimensão de realidade futura enquanto construção de acontecimento. Tem uma frase que uso muito: 'nós já fomos o futuro de alguém no passado', e isso quer dizer que hoje nós estamos construindo, nesse presente, o futuro de alguém", diz a cientista.

Os entrevistados ouvidos por Ecoa trazem ativamente em seus discursos para o que e para onde nosso olhar como sociedade deve se voltar. Falam sobre a primeira Universidade do mundo ter sido criada no Mali — historiadores afirmam que a instituição existia no século 12. Ou como os egípcios já realizavam procedimentos cirúrgicos em 1700 antes de Cristo, como comprova o Papiro de Edwin Smith.

Em sala de aula, o especialista em educação e interdisciplinaridade pela UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia) e professor da rede estadual da Bahia, Esdras de Oliveira Souza traz para a prática o que aprende na teoria estudando o movimento afrofuturista. "Nossa ideia é que a escola precisa compreender que ela tem que colocar o sujeito, ou seja, o povo preto como protagonista da nossa própria história, né?", diz. E assim, para ele, o afrofuturismo pode ser visto como uma importante ferramenta antirracista.

"Desde o domínio do fogo, que não foi simplesmente obra do acaso, até o surgimento da escrita, como forma tecnológica de comunicação, passando pelo domínio das técnicas de plantação e cura através das plantas e ervas, o povo preto tem contribuído para o desenvolvimento da realidade. A escola não pode continuar reduzindo nossas práticas científicas ancestrais ao lugar do senso comum, do não científico, do não tecnológico," diz.

Para ele, o papel do professor que pretende fazer rodar na prática os saberes adquiridos por meio do movimento afrofuturista é o de reinventar os debates promovidos em escolas e universidades, criticando versões estereotipadas que a supremacia branca criou sobre o povo preto e a produção de conhecimento dele — ou a falta dela. Sendo fiéis aos fatos históricos, é possível promover a longo prazo a construção de espaços e futuros seguros para que uma criança preta possa sonhar com uma vida mais digna e próspera.

Interseccionalidade de pautas

"A gente precisaria de fato construir, trazer, resgatar pensamentos. Não para substituir uma centralidade por outra, mas para que exista outra perspectiva que amplie essa possibilidade da gente construir conhecimento de fato plural. Principalmente quando falando de resgate de pensamentos matriarcais", diz Kênia Freitas.

O afrofuturismo é um movimento que já nasce intersecional. Apesar do termo ter sido cunhado apenas nos anos 1990, na década de 1960, a autora norte americana Octavia Butler já produzia peças que hoje são consideradas afrofuturistas. Ela, uma mulher, negra que passou a escrever sobre ficção científica, bem na época em que as leis de segregação racial ainda existiam nos Estados Unidos. "Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco", diz no início de "Kindred" (1979) a grande dama da ficção científica.

Na obra, a personagem principal é uma mulher negra dos anos 1970 que, misteriosamente, consegue viajar no tempo para tentar salvar um antepassado. Só que, se para pessoas brancas, voltar no tempo é quase um fetiche, um sonho, para pessoas negras a pergunta "para qual época do passado você gostaria de ter vivido?" não funciona na prática. Quando Dana, a personagem principal no livro, viaja no tempo diretamente para uma época em que a escravidão ainda era vigente no país, é possível observar diversos momentos em que raça e gênero se conversam de forma brutal.

Em determinado trecho da história, ela diz: "eu era a pior guardiã possível que ele podia ter, uma negra para cuidar dele em uma sociedade que via os negros como sub-humanos, uma mulher para cuidar dele em uma sociedade que via mulheres como eternas incapazes."

No artigo "Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira contemporânea", Waldson Gomes de Souza afirma que "a abordagem antirracista é indispensável para a construção de obras afrofuturistas, mas não deve ser encarada como única preocupação", o que para ele significa que as pautas feministas e LGBTQIA+, por exemplo, não são raras dentro do movimento. Das três obras afrofuturistas brasileiras que ele analisou para escrever sua tese, — "Ritos de passagem" (2014), de Fábio Kabral, "Brasil 2408" (2016-2017), de Lu Ain-Zaila e "Cidade de Deus Z" (2015), de Julio Pecly —, em duas delas podemos encontrar interseccionalidade de pautas no enredo.

"Fora do afrofuturismo, é muito comum a gente encontrar obras que abordam sexualidade de uma forma muito positiva, mas aí você não vê nenhum personagem negro, sabe? O contrário também acontece. Quando a gente pensa no mainstream, a Marvel, por exemplo, primeiro fez os heróis brancos, depois vem as heroínas brancas, depois vem os heróis negros e, por fim, as heroínas negras.

E isso é complicado porque parece que a gente tem que ir quebrando as barreiras e avançando aos poucos, sendo que já pode entrar no momento tudo meio misturado porque essa é a realidade das pessoas: não somos uma coisa só. Precisamos ir mais além nesse sentido. E o afrofuturismo é um espaço bom para isso. Vai pensar justamente qual será o futuro melhor para pessoas negras, que não são só cis heteronormativas."

Waldson Gomes de Souza

Mercado pode ampliar alcance

As discussões sobre e o que seria o movimento afrofuturista foram parar em casas brasileiras quando combinadas com a cultura pop. A Wakanda, país fictício localizado na África, do filme "Pantera Negra", fez muita gente sonhar como seria viver ali, naquele paraíso tecnológico de um local que não sofreu com as crueldades da colonização. Também fez muita criança preta ver pela primeira vez um super-herói da mesma cor que elas. Já na mais recente obra visual da cantora norte americana Beyoncé, "Black is King", o afrofuturismo é quem abre espaço para dizer que o negro é lindo e pode ser realeza.

Não dá para negar que esse é um movimento em que a estética apresentada passa a ser facilmente consumível. É só ver que as duas obras citadas acima foram realizadas por duas grandes e famosas corporações: Marvel e Disney.

"Vislumbrar outro futuro, com outras relações sociais passa pelo fim do capitalismo porque ele é feito em cima das desigualdades, inclusive racial. Mas ao mesmo tempo, a gente não tem como tocar uma varinha mágica e acabar com isso. O capitalismo faz isso mesmo, captura movimentos estéticos e produz com ele. O que não é necessariamente é ruim, é melhor que você tenha grandes produtores, diretores e diretoras negras que tenham a capacidade de fazer filmes caros porque assim existe uma penetração, um alcance que só os grandes produtores conseguem ter", diz Kênia Freitas.

No entanto, como explica a pesquisadora, a discussão final não pode ser representada apenas por essas produções. Elas precisam servir como parte de um debate maior, que propague outras obras que vão tratar o assunto de maneira mais aprofundada, possibilitando uma maior compreensão do movimento.

"Acho que é uma questão ambígua, né? É claro que nem todo mundo vai se conectar com essas complexidades da cultura africana, nem todo mundo vai conseguir fazer um processo de retomada ou ter acesso a essas discussões. Mas pode gerar uma influência muito grande em outras áreas que também são importantes, tipo a política", comenta Morena, rememorando que em 2017, com o slogan "Detroit é o Futuro", a candidata Ingrid LaFleur concorreu às eleições para prefeita da cidade usando o afrofuturismo de base para o projeto político que pretendia implantar.

Não é impossível e nem é fora da realidade. O afrofuturismo faz essas discussões. Pensar o futuro das políticas públicas colocando raça como elemento central é algo que pode, de fato, ajudar a resolver as questões no Brasil. Porque numa realidade em que a maioria das é pessoas é negra, se você não trata a raça como questão central, você está enxugando gelo.

Morena Mariah, pesquisadora

A Curadoria Ecoa

  • Anna Benite

    As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à pratica jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Anna Benite, curadora do ciclo Re_construção.

    Imagem: Pryscilla K./UOL
Amanda Miranda/UOL

Ecoa propõe durante o mês de outubro um ciclo temático de reportagens e entrevistas sobre Re_construção. A proposta é falar sobre pessoas e ideias que oferecem diferentes maneiras de ver e lidar com nosso mundo e sociedade durante e após a pandemia.

Ao longo de três semanas nos aprofundaremos em debates que vão da necessidade de se falar (e agir) sobre as populações mais vulnerabilizadas, a luta antirracista, os saberes ancestrais e seus ensinamentos e, é claro, o mundo dos negócios e o futuro do trabalho.

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