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A capacidade de organização de favelas em todo o Brasil impediu uma tragédia ainda maior nas periferias
A capacidade de organização de favelas em todo o Brasil impediu uma tragédia ainda maior nas periferias
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O Brasil passa dos 170 mil mortos e, enquanto muitas pessoas flexibilizam o distanciamento social, nas favelas, a luta segue não sendo apenas contra o vírus. Desde os primeiros dias de pandemia discutiu-se que, junto com a Covid-19, viriam também a explosão do desemprego e outros problemas comuns às regiões mais vulneráveis, como a escassez e a fome.
E se não há como cuidar do doente sem olhar para os determinantes sociais, as soluções mais efetivas surgiram muitas vezes dentro das próprias comunidades, que, com um histórico de mobilização pela sobrevivência, demonstraram o poder da articulação regional e nacional.
Este é um capítulo da série
Inspiração em tempos de pandemia
Gilson Rodrigues lidera enfrentamento ao coronavírus na comunidade paulistana
Ao longo deste ano, nos acostumamos a ver nomes antes desconhecidos da maioria das pessoas ganharem notoriedade a partir de ações de solidariedade. Entre os personagens que mais se destacaram está Gilson Rodrigues, 36, presidente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis e fundador do G10 Favelas, bloco de líderes e empreendedores de impacto social das maiores comunidades brasileiras. Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, tem mais de 100 mil habitantes, marca ultrapassada por apenas 324 dos 5.570 municípios que formam o Brasil, segundo dados de 2019 do IBGE.
Com o trabalho de voluntários e de outras lideranças locais, Gilson criou uma infraestrutura robusta para enfrentar a pandemia, que incluiu a contratação de três ambulâncias (sendo uma UTI móvel), dois médicos, dois enfermeiros e três socorristas, além da capacitação de 240 moradores como socorristas. A ação, que ainda mantém uma produção própria de marmitas e máscaras, garantiu até novembro mais de 10 mil atendimentos à comunidade. Além disso, duas escolas foram transformadas em casas de acolhimento para isolar da família quem contraísse a Covid-19. Por isso, lá, Gilson é conhecido como prefeito.
"Boa tarde, comunidade. Primeiro, muito obrigado por terem vindo. Aqui é o Pavilhão Social, uma das seis bases de atuação nossa aqui na comunidade. Ali, acontece o projeto Mãos de Maria, são mais de 10 mil marmitas sendo distribuídas por dia aqui. Ali, fica a coordenação, ali embaixo, fica a ambulância, e, ali do lado, uma fábrica de máscaras..."
O legado que fica é o posicionamento das favelas como potência, econômica e também de organização. As soluções da favela vão sair de dentro para fora e não de fora para dentro"
É para a produtora cultural Renata Alves que a comunidade liga quando precisa de atendimento
Renata Alves, 39, tinha apenas 18 anos e recém saído do ensino médio quando começou a se envolver em ações sociais dentro da comunidade em que nasceu, filha de migrantes vindos de Minas Gerais. Durante a pandemia, Renata se transformou na responsável por atender os chamados de emergência da comunidade e chegou a se mudar para o alojamento para proteger seu pai e seu filho, que moram com ela.
Mesmo sem nunca ter trabalhado em saúde, seu conhecimento da região era fundamental para os atendimentos e não saiu da linha de frente um minuto desde março. "Fizemos até agora mais de 10 mil atendimentos", conta. "Meu número particular virou literalmente o 192 [telefone do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o SAMU]. Não só os presidentes de rua, mas também 90% dos moradores ligam diretamente para mim", diz, fazendo menção aos 658 voluntários empossados como presidentes de rua, cada um responsável por monitorar e fazer chegar doações a 50 domicílios.
Nunca nos colocamos na posição de coitado, de esperar o poder público fazer, porque nós crescemos vendo isso não acontecer. Então, é gratificante tudo isso que está acontecendo, a gente vê que não é hora de parar e que tem muito mais ainda pela frente para fazer"
COMO AJUDAR
Facebook: @g10favelas
Instagram: @g10favelas
WhatsApp: (11) 97723-4537
Email: g10favelas@gmail.com
À frente do coletivo Fala Akari, Buba Aguiar oferece assistência, alimentação e dignidade aos moradores da comunidade
Patologista e estudante de ciências sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bruna Aguiar, 28, ou Buba, é uma das lideranças em Acari, zona norte do Rio de Janeiro. Com um histórico de militância, ela conta que o desafio na região inclui, além de ações de conscientização sobre as práticas de prevenção, o combate à disseminação de notícias falsas, que ameaçam a segurança na comunidade. Foi com esse objetivo que nasceu a campanha #Covid19nasFavelas, da rede Meu Rio, em prol do Fala Akari e de outros coletivos do Complexo da Maré, Complexo do Alemão, Duque de Caxias, Santa Cruz e Niterói.
"Formamos uma frente periférica envolvendo diversos militantes e comunicadores para propagar a informação de como estava a pandemia fora do eixo Rio-São Paulo. Focamos muito em procurar comunicadores no norte e nordeste, para a gente ter noção da situação nesses lugares, e focamos muito também nas favelas do Rio de Janeiro. A gente sabia que este seria o povo mais massacrado com a pandemia."
Desde março, o Fala Akari tem executado estratégias de comunicação e campanhas de financiamento coletivo para a compra de cestas básicas, além de atuar em questões como a falta de água, instalando pias públicas na comunidade. A lista de necessidades não se esgota. "A gente dá suporte tanto àquela empregada doméstica que continuou trabalhando e foi infectada, como para as pessoas que eram informais e ficaram sem condições de trabalho, ou que tinham seus trabalhos formais e perderam por conta da crise."
Conseguimos doações de roupas, calçados, chinelos, brinquedos... Não fossem essas ações, muitas pessoas teriam passado por uma situação, na pandemia, muito pior do que aquela na qual já se encontravam. Porque o poder público não esteve presente"
#MinhaHistóriaECOA
"Sou psicológica e mãe e, durante a pandemia, percebi que outras mães também estavam muito preocupadas. Decidi montar um grupo no WhatsApp para oferecer suporte emocional para elas, responder dúvidas, compartilhar sugestões de jogos e atividades saudáveis para terem com as crianças. Isso ajudou a me sentir útil e a divulgar o meu trabalho como psicoterapeuta infantil."
Ana Paula Antunes Savagnago, 36, psicóloga, Santo Augusto (RS)
Como Alexandre Kombi Lopes se surpreendeu com tanta solidariedade
"Fiquei espantado", diz o paulistano Alexandre Kombi Lopes, 49, sobre a quantidade de respostas após um chamado publicado em suas redes sociais. O inspetor de alunos da rede pública não tinha ideia da proporção que sua atitude ganharia, mas já distribuiu mais de seis mil cestas básicas e materiais de higiene pessoal em bairros periféricos da capital paulista, como Brasilândia, na zona norte, Jardim Ângela, na zona sul, Guaianases e São Miguel, na zona leste, entre outros. Esse é o impacto até agora do projeto Cesta Básica do Amor, que idealizou conversando com uma amiga.
Toda a logística de doação, distribuição e montagem das cestas conta atualmente com uma rede de 30 profissionais voluntários de escolas públicas. E é por meio de pedidos realizados nas unidades de ensino que são cadastradas as famílias que serão beneficiadas. "Formamos um grupo tão forte que o pessoal está até querendo montar uma ONG", conta. "Não sei o que vai acontecer, mas acho que vale a pena, porque tem sido possível amparar a muitos que precisam."
E Kombi não parou nas cestas básicas. Com o período de intenso frio que fez em São Paulo, ele decidiu incluir em suas campanhas as pessoas em situação de rua. "Quando vi aquelas pessoas congelando, sem abrigo, pensei: 'se fomos capazes de arrecadar todo aquele montante em alimentos, também poderíamos fazer algo por eles'. Em 48 horas, arrecadamos cerca de R$ 45 mil para distribuição de barracas."
Nunca imaginei que nossa ideia fosse virar uma coisa de tamanha magnitude. Achava que ia conseguir arrecadar algo entre R$ 3 e R$ 5 mil. Mas agora estamos chegando a quase R$ 300 mil. Só no mês passado, foram R$ 30 mil"
O rapper, empresário e ativista Preto Zezé faz a ponte entre empresas e favelas para atender milhares de famílias
Foi a partir de "Negro limitado", do disco Escolha o seu caminho (1992), dos Racionais MC's, que a politização cruzou o caminho do cearense Preto Zezé, 43. A música lhe despertou um olhar crítico sobre a realidade brasileira, mais especialmente as favelas brasileiras. À frente da Central Única das Favelas (Cufa) nacional, ONG fundada por Celso Athayde e MV Bill no Rio de Janeiro, ele articulou, em parceria com a iniciativa privada, o projeto Mães da Favela, que viabilizou a distribuição de alimentos, material de higiene e a transferência de renda (o chamado Vale-Mãe, de R$ 120) para o enfrentamento da pandemia.
Até outubro, a iniciativa mobilizou R$ 169 milhões e atendeu cerca de 1,4 milhão de famílias. "A Cufa virou a interface entre as grandes empresas que querem fazer chegar em escala e lugares onde ninguém vai e as pessoas, o público vulnerável, que precisam e não sabem a quem recorrer", definiu o rapper e ativista, à época. "Estou acreditando muito nesse engajamento da sociedade", apostou. "Estou juntando gente de tudo que é lado para fazer esse grande mutirão social, porque nós vamos ter que reconstruir o país. O estrago é grande."
A gente tem que construir valores, tem que ser uma agenda pública, tem que ser de todos. Se a gente conseguir impregnar todo mundo, se a solidariedade e o coletivismo forem mais contagiosos do que o vírus e o ódio, a gente vence"
O rapper gaúcho Rafa Rafuagi transforma o que canta em suas músicas em ação
Na região metropolitana de Porto Alegre, Rafa Rafuagi, 40, fez da Casa da Cultura Hip Hop de Esteio um elemento fundamental para a resistência de diversas famílias durante a pandemia. Foi a partir dela que ele e seus muitos companheiros criaram uma rede de apoio, com a qual potencializaram o projeto Hip Hop Alimentação, focado em distribuir cestas básicas dentro das periferias. "O projeto é coordenado pela Casa da Cultura Hip Hop, da qual faço parte, e hoje todas as pessoas, e os artistas principalmente, se engajaram em campanhas de conscientização comunitária."
A gente tem se organizado e os grupos de WhatsApp são uma grande ferramenta para a gente se conectar diretamente com quem está na ponta, na base. Não que a gente não esteja, mas ainda há pessoas que passam uma dificuldade maior"
Desde 2012 o ativista social Thiago Vinícius trabalha sem parar no Campo Limpo
Já faz oito anos que Thiago Vinícius, 31, empreendeu e se tornou um agente social fundamental no Campo Limpo, zona sul de São Paulo, onde fica a sede da Agência Popular Solano Trindade, organização que fundou e está à frente de diversas ações transformadoras na região. A iniciativa conta hoje com um coworking, um mercadinho de produtos orgânicos, um restaurante e o Festival Percurso, que leva shows de grande porte para a periferia da zona sul. Com a pandemia, o espaço se tornou o porto seguro de muitos moradores da região.
"Na primeira semana de isolamento social, a gente já começou a se locomover, a se organizar, porque é a nossa família que está em risco, os nossos vizinhos, nossos amigos. A gente agiu rápido e de forma integrada, que é o mais interessante, porque conseguimos integrar toda a equipe para atender 40 mil pessoas, em mais de 200 dias de quarentena."
Quando partiu para ação, Thiago não demorou a se conectar com diversas outras iniciativas. "Com um chamado, conseguimos realizar coisas monstruosas, 20 mil marmitas, 20 mil cestas básicas. A gente já está de cara com o não, com o lance difícil. Então mantivemos a calma e buscamos a capacidade de sistematizar para conseguir fazer chegar rápido nas pessoas a cesta, a marmita, o chinelo. Foi muito rápido e integrado com a necessidades das pessoas."
A primeira ação da Agência Solano Trindade na pandemia foi a campanha através do site Kickante, verba usada para manter o Agência Solano Trindade funcionando, sem deixar de remunerar seus colaboradores e voluntários. Mas, com o batimento dessa meta, outras ações começaram a se desenrolar. "Ficou uma lição de apoio mútuo", diz. "Tudo isso foi forte. Quando é comunidade, o pessoal chama na chincha, pai! [risos] Aí nós fomos lá e fizemos. Rápido, frio, calculista."
Essa rede fez a gente chegar em lugares que jamais achamos que fosse possível. Estamos falando de 40 mil pessoas. O resultado foi algo que eu achei que demoraria uns dez anos para conseguir. De dez quebradas, agora estamos amparando 50"
COMO AJUDAR
Instagram: @agsolanotrindade
Facebook: @agpopular.trindade
WhatsApp: (11) 94946-1583
Email: percursoproducoes@gmail.com
A estudante de medicina Larissa Alexandre transformou o conhecimento sobre determinantes sociais em saúde em ação
Assim que começou a quarentena, Larissa Alexandre, que cursa o segundo ano de medicina na Universidade de São Paulo, sabia que nem todo mundo teria como viver (ou sobreviver) desse modo. Criou, então, com o amigo Rafael Marques, o projeto Preta.ID, focado em ações que incluem campanhas de arrecadação financeira, vídeos educativos e a criação de um totem com álcool em gel para a comunidade São Remo, próxima da universidade. "Inicialmente, a gente surgiu querendo produzir conteúdo. Mas percebemos que a população negra pobre e periférica seria uma das mais afetadas pelos impactos da Covid-19. Então, decidimos partir para ação", conta.
"Acredito que conhecer o território, conhecer os determinantes, é extremamente importante. Eu acredito que isso contribua para que as ações no futuro sejam feitas dessa forma, conhecendo as particularidades e as principais demandas da população."
A gente pensou nas particularidades da população da comunidade e em como o determinante raça-cor impacta nisso. Não fazia sentido a gente falar sobre ficar em casa, porque é um contexto completamente diferente"
Max Maciel, do projeto Ruas, se associou a diversas iniciativas que atuam nas ruas do Distrito Federal
Com um mês de quarentena, Max Maciel, produtor cultural ligado a cultura hip hop, percebeu que a periferia não teria um minuto de paz e imediatamente fez três movimentos: mobilizou a equipe com que trabalha na ONG Rede Urbana de Ações Socioculturais (Ruas) para pensar em ações voltadas para a população mais vulnerável do Distrito Federal; buscou outros projetos com os quais poderia somar forças; e iniciou a captação de recursos com diversas empresas. "Estamos desenvolvendo várias ações com parceiros e apoiando as iniciativas de outros também, para a gente não ficar subdividindo tarefas e acumulando missões", conta.
O resultado da ação confirmou, para ele, a força do coletivo. "A gente atendeu mais de 2.500 famílias, cada família tem média de 4 pessoas, então estamos falando de um potencial grande de pessoas impactadas em vários territórios, na verdade, e não só em Ceilândia", conta, destacando que a rotina de trabalho também transformou a forma como ele olha para a cidade. "Nós tivemos outra forma de relação com o território, para além da perspectiva do alimento, da perspectiva econômica, mas para as relações humanas em si."
"A cesta básica foi montada comprando nos mercadinhos locais. O kit de hortifrúti foi comprado na agricultura familiar, com o MST. O gás foi adquirido com distribuidoras do próprio bairro, a gente dividiu com um mapa as famílias que iam receber e quais eram as distribuidoras dentro desse mapa que seriam responsáveis. A gente fica monitorando cada entrega."
"A gente não tinha outra saída, porque nós estávamos inseridos neste contexto, entre a própria equipe, que estava já em situação de vulnerabilidade, e a comunidade. Então, a ideia foi resgatar tudo aquilo que a gente já tinha como princípio: os comitês de bairro, a necessidade de consumir internamente, o direito de pensar a soberania alimentar como estratégia, plantar o próprio alimento, porque essa crise a gente não tinha noção de quando ia acabar."
Temos contato com o Corona nas Periferias, um grupo de comunicação nacional, e com várias outras frentes, porque cada território tem suas expertises, mas periferia é periferia em qualquer lugar, como diria o poeta GOG. Essa interlocução nacional não é só com a pandemia, é com absolutamente tudo"
Este é um capítulo da série
Inspiração em tempos de pandemia
Publicado em 1º de dezembro
Gerente de conteúdo: Daniel Tozzi
Editor-chefe: Douglas Vieira
Coordenadora de MOV: Ligia Carriel
Editoras: Carol Ito e Juliana Sayuri
Direção de arte: René Cardillo e Carol Malavolta
Design: Carol Malavolta
Produção executiva: Tita Tessler
Produção: Talita David
Reportagem: Eduardo Ribeiro (Alexandre Kombi Lopes, Buba Aguiar, Max Maciel, Thiago Vinícius), Juliana Sayuri (Larissa Alexandre), Kamille Viola (Preto Zezé)
Editor de redes sociais: Jean-Louis Manzon
Editora assistente de redes sociais: Laís Montagnana
Community Manager: Rodolfo Gaioto
Fotos: Arquivo pessoal (Buba Aguiar); Bernardo Giesel/divulgação (Rafa Rafuagi); Coletivo DUCA/divulgação (Max Maciel); Caio Caciporé/divulgação (Gilson Rodrigues, ao microfone); divulgação (Preto Zezé); Fernando Moraes/UOL (Alexandre Kombi Lopes, Gilson Rodrigues, Renata Alves e Thiago Vinícius)