A rua é nóis
O esforço coletivo para evitar uma calamidade ainda maior na vida das pessoas em situação de rua
O esforço coletivo para evitar uma calamidade ainda maior na vida das pessoas em situação de rua
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No asfalto das cidades, a pandemia foi marcada principalmente pelo medo do desemprego e da fome, problemas históricos das metrópoles brasileiras. Mas o que vimos também foi o fortalecimento e o surgimento de um grande número de projetos inspiradores que visam atender as populações vulneráveis. Hoje, no Brasil, mais de 222 mil pessoas vivem em situação de rua, segundo dados de março deste ano divulgados pelo Instituto de Pesquisas e Economia Aplicada (Ipea). Com a crise gerada pelo coronavírus, é certo que este número aumentou.
Apesar do pessimismo quase inevitável, líderes de comunidades pobres Brasil adentro se dizem esperançosos com o legado de solidariedade nas regiões metropolitanas de Manaus (AM) a Maringá (PR), indica levantamento recente da Rede de Pesquisa Solidária, que monitora as respostas à Covid-19. Se a cidade é nossa, a rua é nóis.
Este é um capítulo da série
Inspiração em tempos de pandemia
O casal João Gordo e Vivi Torrico trabalha diariamente por alimentos e roupas para pessoas em situação de rua
João Gordo, 56, e Vivi Torrico, 48, mantêm há alguns anos uma rotina intensa na cozinha do restaurante vegano Central Panelaço, na Bela Vista, em São Paulo. Com a pandemia, porém, as portas foram fechadas, mas as panelas não ficaram guardadas. O casal formado nas doutrinas do punk, do faça você mesmo e da ação direta, criou no espaço um projeto para alimentar a crescente população em situação de rua de São Paulo. O projeto entregou até agora 34.520 marmitas, 3.200 garrafinhas de água, 732 pedaços de bolos e tortas e 1.020 litros de chocolate, além de fraldas, kits de higiene, roupas, sapatos e chinelos.
"Ela chegou um dia toda emocionada em casa, chorando muito. Perguntei o que tinha acontecido. Ela me contou e a gente decidiu fazer alguma coisa. Chamamos nossos filhos, cada um deu uma ideia, e chegamos no nome, Solidariedade Vegan", lembra João. Vivi tinha saído para levar marmitas a pessoas em situação de rua. Mas o que levou não deu conta, era muita gente. Segundo o Censo da População em Situação de Rua divulgado em janeiro de 2020, há 25 mil pessoas nessa condição na cidade de São Paulo ? com a pandemia, a estimativa é de que esse número já passe de 30 mil.
"Em São Paulo, tem 7 bebedouros públicos, numa metrópole enorme, com mais de 30 mil pessoas nas ruas. É inacreditável. A gente entregava a marmita e eles pediam água, porque todos os comércios, onde eles podiam beber água, estavam fechados."
"A gente pode combater o fascismo desse jeito, com a solidariedade, que é a única coisa que nos resta. Eu não vou colocar bomba, nem dar tiro na cara de fascista. Eu vou fazer o que eles não fazem, que é entregar marmita e ajudar os pobres."
Assim, todos os dias, Vivi e João seguem preparando marmitas para projetos parceiros, que as entregam nas ruas. E, aos domingos, eles preparam um café da manhã, que distribuem pessoalmente na Matilha Cultural, no centro da cidade. Lá, também disponibilizam roupas e organizam doações para o Natal. "Começou com marmita, partiu para livro, presentes de Natal para as crianças, chinelos", conta João.
A ação encontra, além de agradecimentos, diálogo e mudança. Há entre os voluntários pessoas que estavam na rua e conseguiram trabalho com a ajuda do projeto, que forneceu roupas limpas, ajudando quem não teria como se vestir para uma entrevista de emprego. E as peças são escolhidas pelas próprias pessoas beneficiadas em meio ao que tem disponível. "Tem amigo nosso aqui saindo da rua. É muito recompensador", conta João. "Fazer marmitas veganas faz total sentido. Elaborar uma comida que seja gostosa, com cores e com vida. Era a mensagem que a gente estava passando", diz Vivi.
Não interessa se estão drogados, se estão bêbados, se têm vícios. Nada disso tira deles o direito de não passar fome", pensa Vivi
COMO AJUDAR
Instagram: @solidariedadevegan
Facebook: @SolidariedadeVegan
Paypal: vivi.torrico@uol.com.br
Picpay: @vivi.torrico
Site: www.catarse.me
Mesmo sendo parte do grupo de risco, o Padre Júlio Lancellotti seguiu ajudando pessoas em situação de rua
Quando foi declarada a pandemia, o Padre Júlio Lancellotti começou a ser pressionado a sair da linha de frente do trabalho que realiza há mais de 35 anos, em São Paulo. Aos 71 anos (72 no fim de dezembro), ele faz parte de um dos grupos considerados de risco da Covid-19, por ser idoso. "Foi muita pressão: 'Por que você, nessa idade, está na rua com eles? Você está louco'", lembra. "Você não pode dizer para uma pessoa a quem você quer bem: 'Eu não vou estar junto a você no momento mais difícil'."
"Eu decidi continuar a convivência com a população de rua durante a pandemia porque nós temos laços, vínculos, proximidade. Eu não podia, em um momento tão difícil como esse, diante de uma população tão vulnerável, simplesmente ficar afastado. Nós temos que estar juntos, eles tem que saber que a nossa ligação é verdadeira"
Com a crise, Padre Júlio conta que aumentou muito o número de pessoas que iam até ele em busca de ajuda. "De manhã, quando eu saía de casa, pensava: 'O que eu vou encontrar?'. E a fila cada vez maior. Nós chegamos a ter 600, 800 pessoas em um dia", lembra, destacando como precisou mudar a forma de convivência com essa população, que normalmente é de muita proximidade. "Tivemos que seguir regras, normas de higiene. Como conseguir que pessoas que estão na rua lavem as mãos? Fizemos um grande movimento para arranjar lavatórios para a população de rua."
De máscara, escudo facial e luvas, álcool em gel à mão, ele segue todos os dias na distribuição de alimentos e outros produtos, de absorventes a roupas. E entrega e recebe mais do que isso. "Com eles todos de máscara, aprendi o que eu tenho chamado de alfabetização do olhar. Ler nos olhos deles a dor, o sofrimento, o abandono, a solidão."
As pessoas em situação de rua são sobreviventes de uma pandemia ainda mais grave do que a do coronavírus: a pandemia da miséria, do descarte, da discriminação. Quanta gente morre vítima da discriminação, do preconceito, do abandono. É uma pandemia muito mais grave, muito mais letal e cujo pico não diminuiu"
COMO AJUDAR
Telefone: (11) 2692-6798 (Paróquia São Miguel Arcanjo)
Janaína Xavier atua para amenizar os impactos da pandemia na Cracolândia, em São Paulo
Janaína começou a infância fugindo, com a mãe, da violência doméstica, que as obrigou a mudar de cidade, passou pelo vício em cocaína e pela prostituição, e há cerca de uma década vive na Cracolândia, um dos lugares mais degradados de São Paulo. Com uma abordagem policial violenta contra a filha viciada em crack, sensibilizou-se com os direitos das pessoas que vivem na região. A Igreja, diz, deu o empurrão que faltava para mudar de vida. Depois de defender informalmente diversas vezes a população de rua, foi incentivada a se tornar, de fato, uma porta-voz.
A luta seguiu pandemia afora. Janaína, que integra o Comitê Intersetorial da Política Municipal para População de Rua, manteve a ajuda na distribuição de cestas básicas à população carente e, quando sobra algum recurso, ela mesma cozinha e distribui quentinhas. Enquanto isso, continuou seus estudos para concluir, aos 40 anos, o ensino fundamental. "Quero me formar em Direito para poder defender as pessoas", conta, sobre um desejo que não se abala mesmo com ela tendo que lutar diariamente pela própria existência.
Antes da pandemia, a líder comunitária morava em uma quitinete no centro de São Paulo com seis de seus oito filhos e seu ex-marido, que sustenta a família fazendo bicos como cozinheiro. Quando as medidas de quarentena chegaram, a família viu a renda minguar até não ser mais possível pagar pelo aluguel de R$ 1,6 mil. Grávida, tentou negociar com o proprietário do imóvel, irredutível.
A saída encontrada foi ocupar um prédio na avenida Rio Branco, no centro da capital paulista. Mas ela não foi só: articulou-se com outras 20 famílias, que ocupam o imóvel desde maio. Uma reintegração de posse marcada para o começo de dezembro, no entanto, a força a pensar, mais uma vez, em uma solução para a família. Para ela, da pandemia não emergiu um mundo melhor: os mais pobres, como pode testemunhar, ficaram ainda mais vulneráveis. Mas ela segue fazendo o que está ao seu alcance.
Eu sinto muita revolta, mas a fé me move. Eu não fujo da luta"
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Produtor cultural Heitor Werneck distribui marmitas diariamente para pessoas em situação de vulnerabilidade
Produtor cultural, estilista e figurinista, Heitor Werneck, 52, mantém na pandemia uma rotina voltada a dar assistência às pessoas em situação de vulnerabilidade em São Paulo, especialmente a população LGBTQIA+, foco do projeto Parada pela Solidariedade. "Desenvolvi a iniciativa em parceria com a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, junto com o vice-diretor Renato Viterbo, como uma ação social que auxilia a comunidade LGBT, ciganos, índios, circenses e moradores de rua. Sempre fiz ações sociais, mas na pandemia comecei a distribuir marmitas diariamente, principalmente em locais onde poucas pessoas vão", conta Heitor.
"Uma das coisas mais legais é justamente você conseguir dividir o que é teu e levar para pessoas que estão no mesmo espaço tempo que você, no mesmo espaço mundo, e você não as reconhece. Por que a rua é um espaço democrático e todos têm direito a ela, e todos têm que tratar ela muito bem, e quem vive nela e quem vive com ela. É isso: amar a rua."
Na rotina, além das marmitas, são entregues água mineral, kits de higiene pessoal e cobertores, essenciais nos dias mais cinzentos da capital paulista. "Já distribuímos quase 40 toneladas de alimentos e cobertores. Nossa previsão é, até dezembro, colaborar e auxiliar 300 famílias cadastradas."
Doar alimento para as pessoas em estados vulneráveis é o maior exercício de amor ao próximo e amor a você mesmo. Não tem forma mais legal do que você doar o seu amor em forma de comida para pessoas vulneráveis"
COMO AJUDAR
Instagram: @paradasolidariedade e @heitorwerneckoriginal
Site: paradasp.org.br
"Uma coisa bem positiva que aconteceu é que meu pai tinha o hábito de sair do trabalho e ir direto para o bar. Com a pandemia e a orientação para ficar em casa, isso mudou. Ele está bem mais participativo nas tarefas de casa, cozinha várias receitas, surpreendendo eu, minha irmã e minha mãe. Isso aproximou muito a gente, porque não tínhamos uma relação tão boa antes."
Renata Caetano, 37, editora de texto, São Paulo (SP)
Rodrigo Oliveira, chef do restaurante Mocotó, distribui comida e cuidado na zona norte de São Paulo
No mesmo dia em que decidiu fechar o restaurante Mocotó, na capital paulista, ainda antes do decreto que obrigava o setor a parar por conta da pandemia de Covid-19, o chef Rodrigo Oliveira soube que a cozinha não iria ficar ociosa. O restaurante virou imediatamente um centro de produção de marmitas para a população vulnerável da zona norte de São Paulo.
A decisão pareceu óbvia para Rodrigo, que mora e mantém seu negócio em uma região periférica da cidade, e sua esposa, a historiadora Adriana Salay, que tem como objeto de estudo justamente a fome no Brasil. "O Mocotó está num bairro que tem suas fragilidades, e a gente sabia que a pandemia ia ser mais cruel aqui. A gente simplesmente começou a fazer", diz o chef. Nascia, assim, o projeto Quebrada Alimentada.
De 80 marmitas ao dia passou-se a produzir centenas, estendeu-se para a distribuição de cestas básicas, de alimentos frescos orgânicos e de kits de higiene. A reabertura do negócio não parou o projeto, que opera de segunda a segunda, gerido por Adriana. "A grande especialidade de um restaurante não é arroz e feijão, é cuidar das pessoas", diz Rodrigo.
Cuidar da comunidade, para o casal, é uma visão que precede a pandemia na gestão do Mocotó, que procura contratar pessoas do próprio bairro e oferece benefícios como bolsas de estudo. E, inspirado pelo contexto atual, o próximo passo, diz o chef, será desacelerar: "Quero trabalhar menos e desejo que as pessoas aqui trabalhem menos. A meta é instituir uma segunda folga na semana. Ter tempo para estar com quem se ama é impagável".
Para que existe um restaurante se não para deixar as pessoas melhores do que quando entraram? E, extrapolando essa ideia, ele é capaz de restaurar e melhorar também uma comunidade"
Projeto Marmita do Bem, liderado pelo chef Henrique Fogaça, já distribuiu mais de 10 mil quentinhas em São Paulo
O projeto Marmita do Bem, encabeçado pelo chef Henrique Fogaça e seus dois sócios no restaurante Jamile, nasceu da soma de um salão fechado por conta da quarentena, um estoque correndo o risco de estragar e a visão desoladora do aumento da vulnerabilidade social provocado pela pandemia. Eram para ser 50 refeições diárias entregues a pessoas em situação de rua, em uma ação prevista para durar um mês. Porém, a urgência multiplicou esse número, que chegou a 500 refeições por dia e segue ativo até agora, quase 10 meses após o início do distanciamento social.
O próprio Jamile, no bairro Bixiga, tornou-se o centro operacional do projeto. São os funcionários, com ajuda de eventuais voluntários, que preparam as refeições. Com a reabertura do negócio e a redução das doações, o projeto agora opera menos dias, três vezes na semana, e distribui entre 100 e 150 pratos por vez. Mas a ideia é que siga adiante.
Essa não foi a primeira vez em que Fogaça se sensibilizou com a vulnerabilidade social. "Há 15 anos, eu já distribuía sopa no centro de São Paulo", conta. Mas a pandemia, admite, foi um incentivo para voltar a atuar socialmente.
Espero que as pessoas tenham mais solidariedade, estejam engajadas. Cada um que tiver a consciência solidária de ajudar com o mínimo que seja é importante"
COMO AJUDAR
Instagram: @jamile_restaurante
Facebook: @jamilerestaurante
WhatsApp: (11) 94060-6203
Site: www.kickante.com.br
Tássia Bento idealizou o projeto Prato Cheio Amigos do Arthur Alvim para distribuir marmitas na zona leste de São Paulo
A rotina de Tássia Bento ficou mais puxada durante a pandemia. Desde fevereiro, ela começa a trabalhar às 8h30 em uma cozinha comunitária improvisada na zona leste de São Paulo, e o expediente só se encerra mesmo às 20h. Poderia ser um emprego, mas não é. Com ajuda do marido e mais três amigos, ela passou a liderar uma força-tarefa para preparar refeições para pessoas em situação de rua.
O grupo já fazia ações solidárias em datas especiais, mas, com a pandemia, veio a ideia de montar o projeto Prato Cheio Amigos do Arthur Alvim, que chega a distribuir 450 marmitas por dia. "Começamos com a intenção de cozinhar a cada 15 dias, e logo estávamos cozinhando todos os dias. A demanda aumentou muito rapidamente", conta, reforçando que o projeto não se encerra com a pandemia. "Passamos a atender também pais de família que ficaram desempregados ou tiveram o salário reduzido."
Além dos afazeres de cozinha, é preciso levantar fundos para potencializar as doações. Por isso, Tassia recorreu a jogadores de futebol e artistas, que contribuem eventualmente. Todo o trabalho ainda é dividido com sua função de mãe de dois filhos, de 14 e 7 anos. Aos finais de semana, trabalha com decoração de festas quando há demanda.
A rotina pesada não é incomum para alguém que começou a trabalhar por volta de 7 anos na roça, no interior de Minas Gerais. "Minha família sempre foi muito humilde, esforçada e sempre ajudou os outros", afirma.
Falta as pessoas entenderem que são todas iguais: a fome que eu tenho é a forme que você tem. Há pessoas que, mesmo com a pandemia, não entenderam"
COMO AJUDAR
Instagram: @projetozlamigosdoarturalvim
Facebook: @prato.cheioarturalvim.9
WhatsApp: api.whatsapp.com
O ambulante Odilon Tavares teve seus 3 mil livros queimados em um ataque, mas conseguiu outros 10 mil com a ajuda de doações
Com a experiência de quem já viveu na rua e viu de tudo um pouco, além de uma fé inabalável, o ambulante Odilon Tavares, 57, diz ter se mantido tranquilo ao chegar à calçada onde vende e "guarda" seus livros, no centro de Belo Horizonte. Um incêndio criminoso, provocado em um final de semana em junho, transformou em pó as cerca de 3 mil obras do acervo.
Odilon se tornou livreiro há três anos, quando percebeu que os livros que encontrava ao procurar papelão eram mais lucrativos do que a reciclagem. Tendo estudado até o quarto ano primário, ele mesmo diz ler muito pouco, e encontra dificuldade em precificar as obras. A solução encontrada foi vender todas por R$ 5.
O incêndio seria um revés a mais em um ano de pandemia, quando diz ter ficado "até sem dinheiro para comprar um cigarro". Mas o jogo virou. Figura conhecida na capital mineira, a história do ambulante viralizou nas redes sociais, e cerca de 10 mil livros foram doados em poucos dias. "Tive a oportunidade de ver que a sociedade não é ruim", conta.
O episódio também fez ele ser notado por gente que queria fazer algo a mais. Um deles foi o designer William Girundi, que se juntou a outras pessoas para ouvir o próprio livreiro e entender como poderiam ajudar. "Descobrimos o sonho dele de ter um sebo itinerante, em um ônibus", conta Girundi. Uma vaquinha online arrecadou quase R$ 190 mil, valor que superou em R$ 40 mil a meta estipulada e aproximou Tavares do sonho, que deve se concretizar em 2021. A ideia é unir o útil ao agradável: ter um lugar para morar e, ao mesmo tempo, rodar o interior.
Quero ir até as menores cidades, onde a galera não tem acesso à cultura, mas pode dar R$ 5 em um livro"
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WhatsApp: (31) 8408-6907
Paulo Lima, o Galo, criador do grupo Entregadores Antifascistas, luta pelos direitos dos entregadores de comida, essenciais na pandemia
Em março, enquanto a população era orientada a ficar em casa, os motoboys tornavam-se essenciais na rua, cumprindo jornadas de até 12 horas, por um ganho médio de R$ 936 por mês, de acordo com a pesquisa da Aliança Bike (Associação Brasileira do Setor de Bicicletas), lançada em 2019. Parte dessa grana, porém, é reservada para a própria comida, visto que os apps não costumam oferecer auxílio-alimentação para sua força de trabalho. O motoboy Paulo Lima, 31, mais conhecido como Galo, entendeu que era hora de reivindicar. Era 21 de março, seu aniversário.
Naquela dia, ele havia saído de casa preocupado com a falta de comida e com as contas atrasadas e, no meio de uma entrega, o pneu furou. Ligou para o suporte do app, que o orientou a cancelar o pedido, assegurando que não haveria problema. Ali mesmo, pegou o celular e gravou um vídeo em que denunciava o que estava acontecendo. Em seguida, criou um abaixo-assinado para cobrar os aplicativos a disponibilizarem comida e kit higiene para entregadores, que substituíram as idas a mercados, farmácias ou restaurantes que garantiam a sobrevivência de quem aderia ao home office.
O passo seguinte foi criar o grupo Entregadores Antifascistas, rede de apoio para entregadores que se articulou em junho, depois que ele e outros dez colegas participaram da manifestação antirracista e antifascista em São Paulo. Um mês depois, Galo liderou a primeira Greve Nacional dos Entregadores, que mobilizou diversas capitais pelo país.
"A importância da luta dos Entregadores Antifascistas vai além da alimentação. Está em um processo de querer barrar e regrar a uberização. A uberização não pode avançar de forma irresponsável. As pessoas querem utilizar a tecnologia, é muito bacana, mesmo. Só que tem que entender que, por trás da tecnologia, tem um plano de lucro muito forte."
Acredito muito no que eu estou fazendo agora, que é política de rua. Quem salva o mundo hoje está com o punho cerrado na rua, na linha de frente, do lado dos trabalhadores"
José Arludo coordena grupo de entregadores que distribui marmitas e cestas básicas no litoral de São Paulo
De segunda a segunda, com ou sem pandemia, o vendedor de salgados e motoboy José Arludo Nogueira Gonçalves, 27, acorda às 5 horas da manhã para fazer e vender seus produtos em Caraguatatuba, litoral de São Paulo, e só para de trabalhar às 19h. Quando as medidas de quarentena chegaram, só valeram por uma semana para ele. Não era uma opção ficar sem trabalhar, mas ele não buscava apenas a própria sobrevivência.
"Fiz um texto e mandei na lista de transmissão do WhatsApp, cada um foi ajudando com o que podia", conta, sobre como conseguiu, com doações de amigos e vizinhos, montar mais de 200 cestas básicas, em março. E seguiu. Encerrados os trabalhos com as cestas, José se articulou com outros motoboys em grupos para entregar comida aos que varavam a noite na fila da Caixa Econômica Federal esperando pelo auxílio emergencial. "Um grupo passava e dava lanche, a gente, do grupo Família Motoboy 012 N, dava o café da manhã."
A pandemia era novidade, mas a rotina de auxiliar quem passa fome vem de anos para diferentes grupos de motoboys da cidade, entre eles, o Família Motoboy, em que José é um dos administradores. Com o coronavírus, o trabalho feito por eles se tornava fundamental para centenas de pessoas em situação de rua, que muitas vezes recebem sua única refeição nas marmitas que recebem deles. Para José, esse gesto representa perder uma já curta noite de sono. Nada que pareça ser um problema.
A pandemia veio para mostrar quem é quem: aquele que estava bem e era egoísta ficou só esperando passar; aquele que pouco tinha estava dividindo com quem não tinha nada"
COMO AJUDAR
Facebook: @motoboyscaragua
Este é um capítulo da série
Inspiração em tempos de pandemia
Gerente de conteúdo: Daniel Tozzi
Editor-chefe: Douglas Vieira
Coordenadora de MOV: Ligia Carriel
Editoras: Carol Ito e Juliana Sayuri
Direção de arte: Rene Cardillo e Carol Malavolta
Design: Carol Malavolta
Produção executiva: Tita Tessler
Produção: Talita David
Reportagem: Eduardo Ribeiro (João Gordo e Vivi Torrico); Kamille Viola (Júlio Lancellotti); Larissa Linder (Henrique Fogaça, Janaína Xavier, José Arludo, Odilon Tavares, Rodrigo Oliveira e Tássia Bendo); Paula Rodrigues (Paulo Lima)
Editor de redes sociais: Jean Louis Manzon
Editora assistente de redes sociais: Laís Montagnana
Community Manager: Rodolfo Gaioto
Fotos: Alexandre Rezende/UOL (Odilon Tavares); Felipe Larozza/UOL (Paulo Lima); Fernando Moraes/UOL (Heitor Werneck, Janaína Xavier, José Arludo e Tássia Bento); Letícia Moreira/UOL (Rodrigo Oliveira, na porta da cozinha); Marlene Bergamo/UOL (ações do restaurante Mocotó); Ricardo D'Angelo/divulgação (Rodrigo Oliveira, com skyline da cidade); Ricardo Matsukawa/UOL (Júlio Lancellotti); Rodrigo Ferreira e Ugo Soares/UOL (João Gordo e Vivi Torrico); Ronny Santos/UOL (Henrique Fogaça)