Não pira
A criatividade foi fundamental para quem estava trancado em casa e com medo do mundo lá fora
A criatividade foi fundamental para quem estava trancado em casa e com medo do mundo lá fora
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Na montanha-russa emocional provocada pela pandemia, incerteza, isolamento, medo e um turbilhão de informações provocaram angústia e agravaram quadros psiquiátricos e psicológicos. O rol de sintomas é tão extenso quanto o da Covid-19: dores no corpo, estresse, irritabilidade, insônia, letargia, melancolia e um nó na garganta diante de tudo o que está acontecendo.
Mas se 2020 teve dor e luto, também teve afeto e luta, com incontáveis iniciativas de atendimento e acolhimento, uma mistura de ações aguerridas para tentar manter a saúde mental do país.
Este é um capítulo da série
Inspiração em tempos de pandemia
Mariana Busani criou a Sabiah, rede que tem como missão aproximar as pessoas por meio da conversa
Tudo começou com uma oferta de ajuda no LinkedIn. A gerente de e-commerce Mariana Busani, 38, estava de férias quando as regras de distanciamento social entraram em vigor em São Paulo. Cumprindo a quarentena em casa, ela resolveu se oferecer para conversar online com pessoas que tinham perdido o emprego por conta da pandemia. "Foi aquela coisa de postar e sair correndo. Achei que o post não ia ter nem quatro curtidas. Quando eu vi, já tinha recebido 100 mensagens. E aí foi a maior loucura, tive que me organizar, criar uma agenda. No começo, eu chegava a fazer quatro conversas por dia", lembra.
Não demorou para ela perceber que as pessoas não queriam desabafar apenas sobre carreira e trabalho. "Tinha muito isso das pessoas estarem sozinhas, principalmente quem é do grupo de risco, da terceira idade", conta Mariana. "Mesmo não sendo da área médica, eu seria uma pessoa ali à disposição para conversar e aí começaram a aparecer pessoas para falar sobre diversos temas." Assim, em maio, ela fundou a Sabiah, junto com mais três amigas: Mariana Hiromi, Marina Gladstone e Priscila Manfrini. A demanda aumentada mudou o funcionamento da plataforma, que passou a conectar as pessoas com problemas com outras que tivessem experiências parecidas.
"Você não vai escolher exatamente o voluntário com quem você vai falar, mas vai escolher o tópico, a experiência, sobre a qual você quer falar, e a plataforma vai te conectar com um voluntário que passou por uma experiência parecida. É uma forma de resgate da conexão social e como a gente usa a tecnologia para melhorar a vida", explica Priscila, sobre o funcionamento do algoritmo da Sabiah.
Em sete meses de vida, o projeto já promoveu 600 encontros virtuais e hoje conta com 16 conselheiros voluntários em assuntos como família, relacionamentos, maternidade, sexualidade e vivência no exterior. A Sabiah conta também com uma parceria com o coletivo Apiá, para onde são encaminhadas pessoas com necessidades de acompanhamento psicológico.
As pessoas estão cada vez mais egoístas, egocêntricas, olhando só para o próprio mundo e com menos empatia. Então eu acho que todo mundo tem sentido mais essa necessidade de conversar com alguém que não seja um familiar, um amigo, alguém que não vá te julgar", pensa Mariana
Ana Luiza Novis articula rede de profissionais que oferecem atendimento psicológico gratuito
Em 22 de março, fim da primeira semana de distanciamento social, a psicóloga Ana Luiza Novis, 53, teve a ideia de formar uma rede para atendimentos psicológicos emergenciais gratuitos durante a pandemia. Da ideia para a prática, buscou voluntários em um grupo do qual fazia parte, o Humanidades, coordenado pelo médico Ricardo Cruz, do Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro. Em 24 horas, mais de 50 profissionais se apresentaram para o trabalho. "Tive uma aderência inacreditável", conta. Nascia, assim, o Humanidades 2020. Ao longo dos meses, o grupo foi crescendo e chegou a ter 87 psicólogos trabalhando.
O projeto, explica Ana Luiza, oferece uma orientação psicológica pontual, emergencial, e não psicoterapia continuada. "É para ajudar a lidar com a ansiedade, com os desconfortos gerados pela Covid-19, o medo de contágio, a ansiedade, a insônia, a mudança da rotina", explica, sobre os atendimentos realizados por telefone ou videochamada no WhatsApp. Atualmente, acontecem também rodas de conversa pública, uma vez por semana.
"Temos testemunhos preciosos, que também nos ajudaram muito, porque nós [os voluntários] estamos vivendo a mesma coisa. Também estamos isolados, confinados, distantes dos nossos parentes que são grupo de risco, perdemos pessoas, tivemos filhos que perderam emprego. A gente também viveu muito a pressão deste momento."
A estrela principal dessas rodas é a empatia, porque você se identifica com história do outro, compreende o que ele está vivendo, não se sente tão sozinho"
COMO AJUDAR
WhatsApp: Ana Luiza Novis: (21) 99609-9346
"O primeiro grande impacto foi a diminuição do trabalho e tive que descobrir como me sentir produtiva cuidando da casa, me preocupando mais com qualidade de vida, alimentação, evitando desperdícios. Também aprendi a pedir ajuda para o meu irmão, algo que eu já tinha esquecido como fazia. Passamos a conversar mais, isso melhorou muito a relação."
Raphaela Souza dos Santos, 37, psicóloga, Juiz de Fora (MG)
A cantora Madonna e a internet ajudaram Maria Solange Gomes a encontrar um novo caminho
Foi graças à onda de transmissão de lives pela internet, impulsionada pela pandemia da Covid-19, que a vida de Maria Solange Gomes, 50, mais conhecida como "Marina Silva de Manaus", tomou um novo rumo. Ex-moradora de rua e ex-usuária de drogas, ela surgiu na internet, no final de julho, dançando em um vídeo ao som de "Holiday", sucesso de 1983 da cantora Madonna. A postagem logo foi compartilhada pela própria estrela do pop, viralizou na web e chamou atenção para a história de vida de "Marina", que se tornou dependente química e foi morar nas ruas depois de ter um filho assassinado.
"Já fazia dois anos que tentávamos internar ela, sem êxito. Então, arranjei um lugar para ela morar e a desafiei a tentar mudar de vida", conta o comerciante Marcos Bastos, 39, amigo, que também faz as vezes de empresário dela. "Depois da Madonna compartilhar o vídeo, tudo aconteceu muito rápido. Ofereceram para a Marina tratamento dentário, internação em uma clínica de reabilitação de São Paulo e até um emprego para quando ela sair, além de propostas para estrelar comerciais."
No fim de novembro, Marina deu mais um passo importante para a nova vida: foi ao Poupatempo tirar um novo RG. Ela ainda está em reabilitação em uma clínica, mas Bastos, que se preocupa em preservar a privacidade de Marina, vem atualizando suas redes (no Instagram, são quase 90 mil seguidores).
Além da questão da saúde, o amigo celebra o fato de a amiga estar retomando o contato com muitos familiares, e estabeleceu uma meta para breve: criar uma fundação para ajudar na recuperação de outros usuários de drogas.
A Marina quer muito poder ajudar outras pessoas, da mesma forma como ela foi ajudada"
Conrado da Luz criou o projeto Contagiando Sorrisos, que distribuiu 10 mil máscaras estampadas por artistas
Unir sorriso, arte e máscaras foi a forma que o produtor Conrado da Luz encontrou para se manter ativo e prestativo enquanto a agência de marketing Remix Promo Criativa, que ele lidera em Curitiba, seguia com as atividades paralisadas pela pandemia de Covid-19. "Lá no início da pandemia, ainda tinha essa dúvida se era para usar a máscara ou não, que se todo mundo comprasse iria faltar para os profissionais da saúde. Então, quando veio a notícia de que a máscara de tecido também poderia ser usada, entramos com a ideia de confeccionar máscaras, mas com esse toque do sorriso estampado", conta.
Conrado criou, então, o projeto Contagiando Sorrisos, em que convidou artistas visuais de diferentes linguagens para estampar sorrisos em máscaras de tecido, e assim passar uma mensagem positiva de alegria e esperança. "O pensamento inicial foi 'preciso ajudar de alguma forma, mas eu não tenho dinheiro'", lembra Conrado. "A minha empresa não estava faturando, mas, ao mesmo tempo, a gente estava numa posição privilegiada porque também não era nada desesperador. Então tivemos a ideia de fazer um pouquinho do que a gente sabe fazer para ajudar", explica o produtor.
"Venho da área de produção e foi muito bom tocar esse projeto, colocar a mão na massa. Isso me ajudou muito a tocar a minha vida também. Naquele momento da pandemia, em vez de ficar parado, eu usei bastante o tempo para fazer isso. Acho que houve uma transformação radical em mim. Em alguns momentos eu falava: 'Poxa, acho que só quero trabalhar com isso'", explica Conrado, sobre como sai transformado da experiência.
Até agosto, o Contagiando Sorrisos distribuiu 10 mil máscaras para a população em vulnerabilidade social e trabalhadores dos serviços essenciais de diversas cidades do Brasil. O projeto contou com o apoio de algumas empresas parceiras e com a doação de desenhos de artistas como Laerte, Ziraldo, Butcher Billy, Rafael Guertzenstein, Solda, André Coelho, Tatiana Stropp, Debora Santiago, entre muitos outros que doaram artes para a confecção das máscaras.
É óbvio que, com o tempo, a gente vai voltando para a realidade, mas esse trabalho social me alimentava a alma. É inexplicável a sensação"
Rubia Santos Lima encontrou uma forma de fazer idosos de um residencial geriátrico abraçarem seus familiares com segurança
Com o novo coronavírus em circulação, a preocupação de Rubia Santos Lima, administradora do residencial geriátrico Três Figueiras, em Gravataí (RS), não passou a ser somente evitar que os idosos contraíssem a doença. As medidas de isolamento social tornaram-se um desafio adicional. "Desde o começo, eu falei: 'Não podemos deixar a depressão entrar'", conta.
Com isso em mente, ela sabia que o Dia das Mães era uma data importante naquela realidade e não deveria passar em branco. Normalmente, os idosos visitam as famílias, mas, desta vez, o jeito seria receber presentes no portão do residencial, em horários pré-determinados. Ainda assim, a exposição a preocupava e, ao olhar as fotos tiradas no dia, o que Rubia encontrou foram rostos entristecidos.
"Eu sabia que tinha que fazer algo a mais, e foi quando vi que uma família nos Estados Unidos havia criado uma cortina do abraço", conta Rubia, que adaptou a ideia da cortina e, com a colaboração de uma artesã da cidade, concretizou o projeto: um túnel (para proteger ainda mais os idosos), feito com plástico transparente e com bolsos para encaixar os braços.
Com hora marcada, os idosos puderam abraçar e ser abraçados novamente, depois de cerca de 60 dias de isolamento completo. "A reação foi maravilhosa, eles perguntavam: 'Isso é de verdade?'", conta. O projeto durou 20 dias, mas deve voltar no final do ano. Para Rubia, vale tudo, desde que em segurança, para driblar o isolamento e garantir a saúde mental dos 29 idosos que moram no local.
Acho que a pandemia veio para mostrar que uma coisa simples, como um abraço, nos faz falta"
COMO AJUDAR
Instagram: @residencialtresfigueiras
Facebook: @residencialtresfigueiras
WhatsApp: (51) 98484-7219
Email: clinicageriatricatresfigueiras@gmail.com
O historiador Danilo Cesar oferece escuta e acolhimento aos familiares das vítimas da Covid-19
Historiador e produtor cultural, Danilo Cesar, 39, conta que desde antes do coronavírus sua rotina sempre esteve ligada à militância, em diferentes ações e projetos voltados à cultura e aos direitos humanos. Assim que foi declarada a pandemia, Danilo vislumbrou o "cenário de terror que viria adiante" e o caminho que encontrou para ajudar foi trabalhar na prevenção e conscientização das pessoas em vulnerabilidade social e também olhar pelos familiares das vítimas da doença, que se multiplicariam nos meses seguintes.
Danilo se conectou imediatamente com outras pessoas dispostas a trabalhar neste sentido e criaram a Rede Apoio Covid-19 ? Acolhimento, escuta e memórias da pandemia. "Trata-se de uma iniciativa autônoma da sociedade civil, independente, suprapartidária e inter-religiosa, sem fins lucrativos, que passou a reunir dezenas de organizações e centenas de voluntários", explica.
"É um trabalho que só se iniciou neste ano, um trabalho de elaboração, de solidariedade, que a gente pretende deixar sementes, pretende amparar as centenas de milhares de pessoas que estão passando por luto. E que a gente reencontre uma forma de defender a vida rigorosamente, radicalmente, e cuidar do bem morrer também."
"Por um lado, tem a defesa da vida e a prevenção consciente sobre os riscos de infecção e morte representados pela doença, especialmente junto aos grupos sociais e territórios mais vulneráveis; por outro, tem um trabalho de acolhimento e apoio ativo às pessoas que estavam começando a perder seus entes queridos de forma tão traumática", explica Danilo.
Que a defesa intransigente da vida também viralize, assim como a solidariedade sem fronteiras, irrestrita, com quem tem sido obrigado historicamente a lidar com a morte como se ela fosse algo banal, algo que jamais aceitaremos. E seguiremos semeando no sentido contrário"
COMO AJUDAR
Instagram: @redeapoiocovid
WhatsApp: Danilo Cesar: (11) 93011-3281
Email: redeapoiocovid2020@gmail.com
Site: redeapoiocovid.com.br
Este é um capítulo da série
Inspiração em tempos de pandemia
Gerente de conteúdo: Daniel Tozzi
Editor-chefe: Douglas Vieira
Coordenadora de MOV: Ligia Carriel
Editoras: Carol Ito e Juliana Sayuri
Direção de arte: Rene Cardillo e Carol Malavolta
Design: Carol Malavolta
Produção executiva: Tita Tessler
Produção: Talita David
Reportagem: Gilberto Yoshinaga (Maria Solange), Kamille Viola (Ana Luiza Novis), Larissa Linder (Rubia santos Lima), Natalia Guaratto (Conrado da Luz, Mariana Busani), Talita David (Danilo Cesar)
Editor de redes sociais: Jean Louis Manzon
Editora assistente de redes sociais: Laís Montagnana
Community Manager: Rodolfo Gaioto
Fotos: Arquivo pessoal (Ana Luiza Novis, Conrado da Luz, Raphaela Souza dos Santos, Rubia Santos Lima); Bruno Kelly/UOL (Maria Solange); Fernando Moraes/UOL (Danilo Cesar, Mariana Busani, ); Penna Prearo (série "Quem você pensa que é_zeroego", de 2000)