Como será o amanhã?

Flexível, digital, remoto, distópico. Empresários e sociólogos arriscam cenários para o futuro do trabalho

Carlos Minuano Colaboração para Ecoa, de São Paulo Amanda Miranda/UOL

A pandemia do novo coronavírus virou o planeta de cabeça para baixo e colocou a população de cabelos em pé. No campo do trabalho não foi diferente. Entre o "novo normal" e o tão esperado futuro pós-Covid-19 sobram interrogações. Mas não faltam também reflexões e teorias sobre os desdobramentos da atual sobreposição de crises, sanitária, política, econômica e social. Por aqui, há quem preveja para logo adiante um cenário distópico, algo semelhante aos filmes "Bacurau", "Coringa" e "Parasita".

A comparação quem faz é o professor de sociologia do trabalho da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Ricardo Antunes. O sociólogo destaca um elemento comum nos três filmes: uma revolta que emerge das camadas mais vulneráveis da sociedade.

Caso não tenho visto algum deles, atenção porque lá vem spoiler. Em "Bacurau" (de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles), uma pequena população vilipendiada do sertão brasileiro se mistura com um núcleo armado de narcotraficantes para se defender de estrangeiros; no final de "Coringa" (de Todd Phillips), o vilão destroçado vira líder de uma revolta que propõe morte aos ricos; e em "Parasita" (de Bong Joon Ho), o operário coreano mata seu patrão com uma facada bem no coração.

"Uma parcela da humanidade vai explodir", alerta o professor. Segundo ele, no Brasil, antes da pandemia, 40% da classe trabalhadora estava na informalidade e o cenário deve ficar ainda mais complicado. "A tendência empurra para um quadro acentuado de precarização das condições de trabalho, se nada mudar em dois anos esse percentual sobe para 60%".

Se o futuro será mesmo semelhante à ficção, não se sabe. Mas a realidade atual de precarização do trabalho já inspira o cinema dos dias de hoje. É o caso do filme "Você não estava lá", do cineasta britânico Ken Loach. O longa, que estreou há poucos meses no Brasil, retrata a uberização do trabalho (atividades mediadas por aplicativos e plataformas digitais) na Inglaterra.

O filme propõe uma reflexão muito atual sobre uma suposta liberdade ilusória oferecida pela tecnologia, e expõe como na realidade ela tem sido usada para explorar uma parte relevante da classe trabalhadora.

Na trama, o protagonista Ricky Turner (Kris Hitchen), profissional da construção civil, desempregado e sem oportunidades, consegue uma colocação em um serviço de entregas. Porém o CEO de empresa avisa que ele não será um "empregado", mas seu próprio patrão. Dono de seu tempo, mas também responsável por riscos, custos e infraestrutura para o trabalho.

Laboratório do trabalho

Para o sociólogo Ricardo Antunes, vivemos hoje uma tragédia social que não foi causada pela pandemia, com índices elevados de informalidade, desemprego profundo e estrutural, subocupação e uma cada vez mais brutal desigualdade social. "Ela desnudou e potencializou".

O sociólogo acaba de lançar o ebook "Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado" (editora Boitempo) no qual traz reflexões sobre os contornos da realidade atual nas relações de trabalho, com foco na sua parte mais vulnerável: o trabalhador.

No livro, o professor critica grandes corporações que estariam fazendo do atual momento um grande laboratório de utilização da mão de obra de trabalhadores, explorando novas possibilidades da tecnologia e criando uma outra modalidade ou categoria de profissionais, a chamada "uberização do trabalho".

O modelo, segundo análise do sociólogo, possui uma enorme capacidade de expansão. "Para as empresas é a combinação perfeita, alta tecnologia e força de trabalho desempregada em todas as profissões". Para Antunes, de médicos a jardineiros, passando por advogados, professores, entre outros, não falta quem esteja disposto a aceitar a condição de prestador de serviço. "Mesmo que isso signifique ser burlado da legislação social protetora do trabalho."

Home office pode reduzir desigualdades

Recheado de palavras como home office, delivery, digitalização e comércio digital, que passaram a ser bastante usadas após o início da pandemia, o "novo normal" também inspira teorias mais otimistas. Com a necessidade do isolamento social e o fechamento temporário de parte do comércio, reinvenção se tornou a palavra-chave para driblar desafios inéditos e lidar com uma nova e estranha realidade.

Nas empresas, a crise acelerou um processo de mudança que já estava começando a ocorrer, afirma o economista do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Rodolpho Tobler. E, para ele, isso pode ser bom.

"O home office pode reduzir desigualdades", avalia o economista. "Algumas áreas muito concentradas em algumas regiões do país, como Sul e Sudeste, poderão ter pessoas de outros estados trabalhando". O tamanho que esse formato terá ainda é uma incógnita, mas tem espaço, segundo ele, para se sobrepor ao espaço físico.

Outra vantagem do trabalho remoto em casa, apontado por Tobler, é em relação ao bem-estar e a economia do tempo gasto no trajeto para o trabalho. Principalmente nas grandes cidades, dependendo do horário, a locomoção pode se tornar um transtorno gigantesco.

Mas o economista da FGV reconhece que há barreiras de entrada nesse modelo de trabalho. "Tem a questão da tecnologia, do acesso a internet, a necessidade de um computador que permita realizar as atividades, um entrave que o trabalho presencial não tem."

Transformação digital

Na esteira das transformações aceleradas pela pandemia, no final de setembro, muitas empresas aproveitaram para turbinar processos de transformação digital. No caso do Grupo Carrefour Brasil, uma transição que começou em 2018 ganhou este ano uma nova etapa. Funcionários em funções administrativas terão jornada de trabalho flexível permanente e novos modelos de contratos serão experimentados, entre eles o trabalho 100% remoto.
"Colaboradores poderão trabalhar nos escritórios até 60% do seu tempo e todos terão a flexibilidade de discutir diretamente com os seus gestores a melhor forma de colocar isso em prática", explica o diretor de RH do Carrefour Brasil, Alexandre Espinosa.

"Digamos que alguém precise ficar mais tempo em casa, por causa dos filhos, esse funcionário poderá fazer mais tempo de trabalho remoto e menos presencial". O novo modelo atinge mais de 2 mil colaboradores, segundo o diretor do grupo.

A digitalização da área de RH do grupo, processo que começou em 2018, também ganhou velocidade este ano. "Logo no início da pandemia, a companhia realizou a contratação de 5 mil pessoas para sua operação de varejo por meio de processo seletivo online", conta Espinosa.

Apesar do tombo que se assistiu na economia, no decorrer dos últimos meses, foram mais 4 mil posições adicionais. E as contratações seguem, avisa o diretor de RH. "Para atender a demanda de final de ano, como Natal e Ano Novo, iremos contratar [também por meio de processo seletivo online] mais 3 mil funcionários". Segundo ele, todas as posições são efetivas em cargos de recepcionistas, caixa, repositor, agente de prevenção, entre outros.

"O hábito do consumidor mudou por conta da pandemia, houve a entrada acelerada em canais digitais e essa experimentação se tornou uma oportunidade para o mercado online", avalia Espinosa. "Nos preparamos para atender a esta nova demanda com áreas nas lojas físicas para atender o e-commerce e parceiras com aplicativos de entrega."

A aposta no trabalho 100% remoto, por enquanto, está valendo apenas para a área de TI do grupo varejista, 90 vagas foram abertas nesse modelo, permitindo que profissionais de diferentes regiões do país possam se candidatar.

Descartáveis, invisíveis e essenciais

A oferta de empregos durante a pandemia, embora seja algo positivo, revela também como a sociedade brasileira está estruturada de maneira desigual, observa a pesquisadora do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho) da Unicamp, a socióloga Ludmila Costhek.

Segundo ela, a necessidade de isolamento social fez surgir rapidamente uma linha divisória de exclusão. "Algo que deveria ser um direito se tornou um privilégio, de acordo com classe social, condições de trabalho, raça e gênero, pessoas tiveram ou não condições de se isolar", ressalta a pesquisadora.

Outro aspecto que se tornou evidente, segundo Ludmila, é a centralidade de trabalhadores que ela descreve como "descartáveis e invisíveis", e que na pandemia se revelaram essenciais.

Ela se refere às empregadas domésticas e aos motoboys, em geral mal remunerados, altamente explorados e que trabalham em condições precárias. "Passamos a enxergar esses trabalhadores de uma outra forma". Resta saber se essa nova percepção resultará em melhores condições para esses profissionais.

Trabalho fragilizado x impacto social

A pesquisadora há tempos se dedica a estudar as relações de trabalho. Uma de suas imersões no tema, em sua tese de doutorado, virou o livro "Sem maquiagem" (editora Boitempo) sobre as revendedoras de cosméticos da Natura. "Quando comecei, em 2007, eram 200 mil mulheres, quando terminei, em 2011, era um milhão, hoje está em torno de 1,8 milhão".

"Meu foco era entender como a empresa, que na época não possuía lojas, organizava essa distribuição por meio de um exército de mulheres informais", conta Ludmila. Ela critica a fragilidade da relação, que transfere riscos e custos para as revendedoras.

O modelo antecede o trabalho uberizado, tema, aliás, de outro livro, previsto para ser lançado este mês: "Uberização, trabalho digital e indústria 4.0" (também da ed. Boitempo), organizado pelo sociólogo Ricardo Antunes, e no qual Ludmila assina um artigo.

O CEO da Natura & Co, Roberto Marques, acredita que há uma mistificação sobre o trabalho das revendedoras e nega que não sejam reconhecidas. "Elas estão no centro do nosso modelo de negócios."

O grupo (do qual também fazem parte Avon, The Body Shop e Aesop) está presente em cerca de 100 países, em nível mundial, são 6 milhões de consultoras e revendedoras.

"Esse canal representa um impacto social importante de distribuição de renda para elas e ao mesmo tempo oferece uma capacidade de penetração em locais onde as vezes nem o correio chega", afirma o executivo da holding de cosméticos.

Papel do estado na economia

Para além do fogo cruzado de teorias e opiniões, será possível tirar algum aprendizado da pandemia e da crise que ela trouxe? Para o economista e coordenador do curso de Administração do Instituto Mauá de Tecnologia, Ricardo Balistiero, a resposta é sim, e um dos ensinamentos possíveis é sobre o papel do Estado na economia.

"No Brasil, a crise só não foi pior porque se organizou, ainda que a duras penas, o auxílio emergencial". Além do socorro para informais e desempregados, o emprego formal também se beneficiou de programas federais, como a suspensão de contratos e a redução da jornada.

O fim desses programas, aliás, já acendeu um sinal vermelho entre especialistas, que projetam novas demissões e nova elevação na taxa de desemprego como possíveis impactos no mercado de trabalho em 2021.

De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), divulgados no fim de setembro, atualmente o país tem 13,7 milhões de desempregados.

Por mais que teorias liberais digam o contrário, a economia não pode viver sem o Estado. Dicotomia entre eles é bobagem teórica

Ricardo Balistiero, economista e coordenador do curso de Administração do Instituto Mauá de Tecnologia

A saída é verde

Além de laboratório para novos modelos de relação trabalhista, na opinião da pesquisadora da Unicamp, Ludmila Costhek, o Brasil também experimenta neste momento, na esfera política, um novo tipo de liderança. "O governo se ausenta de seu papel de governar e transfere para o cidadão a responsabilidade por sua própria vida". Segundo ela, é um modo "salve-se quem puder generalizado" com omissão do Estado em várias frentes.

Em nível global há um vácuo de lideranças. Erros cometidos no combate à pandemia escancaram isso, na opinião do economista Ricardo Balistiero. Mas ele ressalta que problemas estão em várias áreas. "A situação dos EUA é parecida com a do Brasil, se tornou uma espécie de pária internacional do ponto de vista da gestão ambiental, e também nas questões de raça e gênero".

Enquanto isso, especialistas de diferentes áreas afirmam que a rota de saída para o atual cenário de recessão é verde e de baixo carbono. É o que aponta um estudo recente da WRI Brasil (World Resources Institute), ONG focada em pesquisa, estratégias e ferramentas para clima, florestas e cidades. Se a pesquisa estiver correta, os dois países (entre vários outros) estão de costas para uma transição que é urgente.

O estudo projeta que, no Brasil, a retomada verde - pautada por atividades de baixo carbono - resultaria num aumento acumulado adicional do Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 2,8 trilhões nos próximos dez anos e geraria 2 milhões de empregos em atividades econômicas ambientalmente sustentáveis. De acordo com a pesquisa, número quatro vezes mais do que os existentes no setor de petróleo e gás atualmente no país.

Diversidade na unha

No campo da diversidade, embora se veja algumas movimentações de mudanças em empresas, a configuração do mercado de trabalho ainda é de baixa representatividade para grupos mais vulneráveis, como negros, população LGBT, pessoas com deficiência ou que estudaram em escola pública. Ainda há muitos desafios pela frente, prevê a empreendedora Ítala Herta, curadora de Ecoa. "O Brasil é um país racista, que não assume sua diversidade."

"Vivemos em um país que cultiva de maneira sofisticada a misoginia, o machismo, o racismo, a homofobia e a transfobia", diz a empreendedora. Ítala se dedica há 15 anos a projetos de inovação e economia criativa, sustentabilidade e responsabilidade social e é cofundadora da aceleradora baiana de negócios Vale do Dendê, pioneira no Nordeste com foco na diversidade. Este ano criou a Diver.SSA focada no empreendedorismo feminino.

Para ela, os avanços obtidos "na unha" são frágeis e conquistas de espaços ainda muito pequenas. "A pandemia descortinou uma rejeição à diversidade, há pouca vocação entre lideranças políticas e corporativas para que o contexto mude". Mas, ainda que tímidas ou restritas a determinados recortes populacionais, mudanças começam a ganhar corpo. E Ítala faz parte do processo.

A empreendedora integra o Comitê de Diversidade Racial da empresa de bebidas Ambev, que recentemente anunciou uma reformulação no seu processo de seleção de trainees, com foco na diversidade.

"Retiramos algumas barreiras e ainda desenvolvemos uma plataforma de capacitação com conteúdos que vão ajudar os inscritos a se prepararem em todas as etapas do processo", explica a vice-presidente de Relações com a Sociedade da Ambev no Brasil, Carla Crippa.

Um dos entraves retirados foi a exigência do inglês, substituída pela concessão de uma bolsa para estudar o idioma. Carla conta que a mudança foi uma das conquistas do comitê. Outros compromissos foram assumidos para aumentar a diversidade na Ambev, como uma maior representatividade racial nas contratações e promoções e desenvolvimento dos negros com alto potencial.

"A tirada do teste de inglês veio nesse sentido, assim como a expansão nacional do nosso programa de estágio para universitários negros, e, além disso, também definimos o objetivo de ter 60 trainees negros nos próximos 3 anos", acrescenta a executiva da companhia de bebidas.

Contratar não é incluir

Contratar, no entanto, não garante inclusão.

Noah Scheffel estava empregado em uma grande empresa quando passou pela transição de gênero e não imaginava que seria tão difícil vivenciar sua identidade no ambiente de trabalho. Profissional da área de tecnologia, ele se viu obrigado a usar o banheiro de pessoas com deficiência física para evitar olhares e questionamentos. "Em determinado momento, você entra no banheiro com o gênero com o qual se identifica, as pessoas te olham e dizem: 'Não, você não faz parte desse lugar. E aí, depois, ao entrar no banheiro feminino, a situação se repete: 'Você é homem, não deveria estar aqui'", conta ele.

A transfobia sofrida por ele fez com que criasse o EducaTRANSforma — projeto que oferece capacitação gratuita da área de tecnologia para pessoas trans e serviços de consultoria para empresas. Estima-se que 72% das mulheres trans não possuem ensino médio completo. Apenas 0,02% delas estão na universidade.

"É preciso aprender a incluir". Quem alerta é a consultora Carolina Ignarra, cadeirante desde 2001, quando sofreu um acidente de moto que a deixou paraplégica. Depois do acidente que mudou sua vida, Carol fundou a Talento Incluir, consultoria que já ajudou mais de 7 mil profissionais com deficiência a se colocarem no mercado de trabalho. Este ano, a empresária também foi eleita uma das 20 mulheres mais poderosas do Brasil na lista da revista "Forbes".

Ela não arrisca ainda prever um cenário pós-Covid-19. "Nem sabemos quando chegará esse momento", questiona. Por outro lado, durante a pandemia, que ainda estamos vivendo, ela conta ter observado ações positivas de inclusão.

Segundo Carol, há um movimento nas redes sociais fortalecendo a diversidade de modo geral. "Isso tem favorecido a circulação de informação, que é uma grande aliada na quebra do preconceito e na melhoria da cultura inclusiva no país."

A empresária acredita que a expansão do home office também deve favorecer a empregabilidade, e ela espera que isso continue após a pandemia. "Reduz dificuldades de acessibilidade e segurança, o percurso para o trabalho nas grandes cidades é sempre mais difícil e arriscado para pessoas com alguma deficiência."

De acordo com os dados mais recentes do IBGE, de 2019, mais de 24% dos brasileiros (uma população superior a 45 milhões de pessoas) possuem algum tipo de deficiência. Entre elas, 9 milhões em idade e aptas para trabalhar. O levantamento também aponta, porém, que cerca de 400 mil postos de trabalho ainda estão desocupados. Ou seja, menos da metade (48%) do total das vagas reservadas para pessoas com deficiência estão ocupadas.

Amanda Miranda/UOL

Re_construção

Ecoa propõe durante o mês de outubro um ciclo temático de reportagens e entrevistas sobre Re_construção. A proposta é falar sobre pessoas e ideias que oferecem diferentes maneiras de ver e lidar com nosso mundo e sociedade durante e após a pandemia.

Ao longo de três semanas nos aprofundaremos em debates que vão da necessidade de se falar (e agir) sobre as populações mais vulnerabilizadas, a luta antirracista, os saberes ancestrais e seus ensinamentos e, é claro, o mundo dos negócios e o futuro do trabalho.

Não perca nenhum conteúdo do ciclo temático!

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