Retrô 2019

O que podemos levar de positivo de um ano difícil

Fred di Giacomo Colaboração para Ecoa Priscilla Torres/PhotoPress/Estadão Conteúdo

2019 foi um ponto final para muitos. Foi um ano em que nove jovens e adolescentes perderam a vida brutalmente assassinados em um baile de Paraisópolis, ano em que três indígenas guajajaras foram mortos em emboscadas enquanto tinham suas terras ameaçadas, ano em que a ONU (Organização das Nações Unidas) avisou ao mundo que encostamos no limite irreversível do aquecimento global. Foi ainda o ano em que dois ciclones mataram 649 pessoas em Moçambique e que a barragem de Brumadinho arrebentou por desleixo dos homens, levando em seu curso a vida de 249 pessoas, milhares de animais e um rio inteiro.

Quando começamos a elaborar essa retrospectiva para Ecoa, foi difícil não sentir o peso desses acontecimentos e um grande sentimento de impotência diante deles, mas, ao mesmo tempo, não poderíamos esquecer o foco de Ecoa: contar histórias de pessoas e projetos inspiradores que atuam para construir um mundo melhor. Existem iniciativas avançando para "adiar o fim do mundo", como afirma o escritor e líder indígena Aílton Krenak?

Nossa régua para definir quais seriam as áreas em que focaríamos nesta retrospectiva são os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da ONU, que condensamos em nove temas: Saúde, Educação, Trabalho, Gestão Pública, Vida Urbana, Mudanças Climáticas, Meio Ambiente, Desigualdade e Diversidade. Cada um desses temas será foco de um artigo diário que publicaremos neste espaço. Prontos para começar? Abaixo listamos os destaques de 2019, que abordaremos com profundidade nos post dos próximos dias. Respire fundo e inspire-se!

Eduardo Carmim/Folhapress
Sérgio Lima/Folhapress

Saúde

Brasileiras e brasileiros que sofrem de epilepsia, esclerose múltipla, esquizofrenia, parkinson, entre outras doenças, fecham o ano com algo a comemorar.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) divulgou em 3 de dezembro a liberação da venda em farmácias de produtos à base de cannabis para uso medicinal. A medida entra em vigor 90 dias depois de publicada no Diário Oficial da União.

A vitória é resultado de uma batalha deflagrada pela Katiele de Bortoli Fischer, mãe da garotinha Anny, 11, e que convive com a síndrome CDKL5. Trata-se de um transtorno neurológico que provoca crises de convulsão e tem um impacto gigante no desenvolvimento da criança.

O uso de remédios à base de canabidiol, no entanto, melhorou muito a vida da menina. Só que, por algum tempo, ela teve que importar os medicamentos ilegalmente dos Estados Unidos. Até que, em 2014, ela recebeu uma autorização que abriu espaço para a extensão desse direito.

Há ainda um entrave. A Anvisa não liberou o plantio de maconha no Brasil, e a matéria-prima para o remédio tem que ser importada de países que legalizaram essa prática. A próxima batalha da família Fischer é, portanto, a legalização do cultivo no país, reduzindo o preço do CBD.

Vitória contra os vírus

A cidade de São Paulo tornou-se a maior cidade do planeta a receber certificado por ter eliminado a transmissão do HIV de mães que vivem com o vírus para seus bebês. Só duas outras cidades brasileiras já tinham a certificação: Curitiba e Umuarama, ambas no Paraná.

2019 também foi o ano em que vimos a epidemia de Ebola ser controlada no Congo graças ao trabalho de pessoas como o secretário técnico do Comité Multissetorial de Resposta ao Ébola (CMRE), Jean Jacques Muyembe.

Pamela Tulizo/AFP Pamela Tulizo/AFP
Arquivo Pessoal

Trabalho

O desemprego e a crescente informalidade, que assola 41% dos brasileiros com alguma ocupação, preocupam muito. Mas tem gente muito séria investindo em iniciativas para mudar esse cenário.

É o caso de Cesar Gouvea, do Vozes das Periferias, que, em parceria com a Rede Gerando Falcões, conseguiu treinar 470 jovens das quebradas da zona leste da capital paulista e empregar mais de 70 deles este ano.

2019 foi um ano duro para todo o terceiro setor, todas organizações sofreram em maior ou menor grau. Mas também foi um ano de superação, pois todo o trabalho se manteve de pé, atendemos mais pessoas e conseguimos empregar mais que o dobro em relação a 2018", diz.

Mais vagas para negros

Um outro problema na área é a disparidade racial no mercado de trabalho. Dados do IBGE divulgados em novembro de 2019 revelam que os negros são 64,2% dos trabalhadores desocupados e 66,1% dos subutilizados, mas ocupam apenas 30% dos cargos de chefia. No entanto, pequenas empresas e autônomos respondem por maior parte dos empregos no mundo, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Em 2019, a ONG Educafro, que começou seus trabalhos focada em cursinhos pré-vestibular voltados para os afro-brasileiros, mirou em outros desafios. Em parceria com a Co.esão, iniciativa criada pela publicitária Janaína Assumpção e Dilma Souza Campos, CEO da agência Outra Praia, a Educafro desenvolveu o Programa Empreender.

Foram selecionados dez projetos de afroempreendedores, que receberam R$ 1.000,00 cada para impulsionar negócios próprios. Eles também receberam mentoria com 10 profissionais negros de destaque no mercado publicitário. Além disso, foi fundada a EducafroTech, para formar profissionais negros para o mercado de tecnologia. A primeira turma capacitou 32 pessoas.

Lucas Lima/UOL

De egresso para egresso

O rapper Dexter voltou aos palcos em 2019 com o 509-E, um dos mais importantes grupos de rap do Brasil, que formou com Afro-X há duas décadas na extinta Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru.

Depois de cometer sete assaltos, Dexter foi preso em 1998. Após 13 anos de reclusão, o músico foi salvo pela paixão que se tornou profissão.

Consegui sair do sistema por meio do rap. E quantos não têm o rap como apoio? Quantos não têm uma oportunidade?"

Consciente da importância que essa oportunidade teve em sua vida, Dexter tenta multiplicá-la. Desde que estava em condicional, participa de projetos para ajudar na reinserção social de egressos. E, este ano, foi além: lançou ao lado do juiz Ibere Dias, o projeto Trampo Justo, cujo objetivo é conseguir trabalho para jovens prestes a atingir a maioridade e, por isso, deixar abrigos públicos. Lançada em fevereiro deste ano, a iniciativa já empregou 54 pessoas.

Dexter também foi nomeado padrinho da ONG Responsa, focada na capacitação e integração de egressos no mercado de trabalho.

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL
Lionel Bonaveture/AFP

Mudanças Climáticas

A ambientalista sueca Greta Thunberg, de apenas 16 anos, tornou-se uma das pessoas mais conhecidas do globo em 2019. Sua decisão de não ir à escola toda sexta-feira para protestar em frente ao Parlamento da Suécia contra o aquecimento global acabou tornando-se um movimento mundial conhecido como "Fridays for Future" ("Greve das escolas pelo clima", no Brasil).

A pressão exercida pelo movimento de Greta é um dos motivos que tornaram o Partido Verde o mais popular grupo político entre os alemães e também que fez a União Europeia declarar emergência climática adotando uma série de medidas de impacto para tentar frear o aquecimento global.

O hype em torno de Greta acabou lançando luz sobre o trabalho de outros ativistas ambientais, como a brasileira Yakawilu "Anita" Juruna. Líder dos protestos contra instalação de Belo Monte nas terras de seu povo, no Pará, ela foi um dos destaques do evento Amazônia Centro do Mundo, que reuniu jovens ativistas do Brasil e da Europa.

LUCAS LANDAU/REDE XINGU + LUCAS LANDAU/REDE XINGU +

Meio Ambiente

Quem também participou do Amazônia Centro do Mundo foram os líderes indígenas Aílton Krenak e Davi Kopenawa. Aílton, fundamental na luta socioambiental e por seu inesquecível discurso em defesa dos direitos dos povos indígenas na Assembleia Constituinte de 1987, lançou este ano o elogiadíssimo livro "Ideias para adiar o fim do mundo". São três reflexões obrigatórias para quem quer salvar o planeta do caos socioclimático que se aproxima.

Por sua luta em defesa da floresta e da biodiversidade, o xamã yanomami Davi Kopenawa, nascido no estado do Amazonas, venceu, agora em dezembro, o Prêmio Right Livelihood, conhecido como "o Nobel alternativo", e que dá ao vencedor 430 mil reais para ajudar em sua causa.

No mesmo ano em que o desmatamento na Amazônia aumentou em 91%, presenciamos a catástrofe ambiental do rompimento da barragem de Brumadinho, que matou 249 pessoas em Minas Gerais. Ao lado dos principais dados dessa tragédia, gostaríamos de lembrar a incrível história da mãe e da filha que fecharam o restaurante que mantinham em Belo Horizonte e passaram a cozinhar para os sobreviventes de Brumadinho.

Marília Camelo/UOL

Diversidade

"Mulher-Maravilha" pode ser um filme incrível, mas do que a gente gosta mesmo são as super-heroínas da vida real, gente comum que faz a diferença. Quem já conseguiu colocar o líder de uma célula de terroristas brancos e misóginos na cadeia e ainda foi indicada ao Prêmio Internacional "Coragem" da ONG Repórteres Sem Fronteiras foi a ativista e professora universitária Lola Aronovich. Vítima de ameaças e crimes cibernéticos há anos, ela colaborou com uma ação da Polícia Federal que conseguiu mandar o terrorista Marcelo Valle Silveira Mello para a cadeia.

Ele fazia parte de um grupo criminoso que tem ligações com os massacres de Suzano (SP), Realengo (RJ) e o assassinato de uma jovem em Penápolis (SP). Mello também distribuía conteúdo de pedofilia, racismo e misoginia, além de fazer ameaças a diversas pessoas.

Outra mulher que brilhou muito em 2019, especialmente na luta antirracista, foi a feminista negra, filósofa e escritora santista Djamila Ribeiro (foto abaixo), vencedora do prêmio Prince Claus Awards na Holanda e eleita uma das 100 mulheres mais influentes do mundo pela BBC.

Resistindo aos crescentes ataques homofóbicos contra a arte, foi criado o Prêmio Mix Literário para premiar obras que contribuam com a causa LGBTQ+ — um grupo de 61 autores queer vindos de todos os cantos do brasil lançou a celebrada antologia "A resistência dos Vaga-Lumes".

Lucas Lima/UOL Estilo Lucas Lima/UOL Estilo

Educação

2019 também é o ano em que, pela primeira vez na história, o número de pessoas negras em universidades públicas do Brasil ultrapassou o de brancas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Outra notícia para celebrar é que o brasileiríssimo método Paulo Freire tem sido aplicado com sucesso por organizações como o Paulo Freire Institut, na Alemanha, que o utiliza no ensino do alemão e na integração dos imigrantes que chegam ao país.

Nadando contra corrente do corte de verbas para ciência no Brasil, Andreia Oliveira e Débora Moretti, duas jovens cientistas negras do Rio de Janeiro, criaram a iBench, startup que promete revolucionar a vida dos cientistas e pesquisadores do país.

Divulgação

Vida Urbana

Foi-se o tempo em que as favelas eram vistas apenas como problemas urbanos. Aos poucos, tanto quem vive dentro das quebradas, como quem está fora delas, percebe a potência que elas têm.

Essa mudança deu origem ao G10 das favelas, um bloco que une as comunidades mais ricas do do Brasil, segundo em estudo realizado em 2018. Em novembro deste ano, a favela Paraisópolis, na capital paulista, sediou o evento que lançou um Fundo para Empreendedores de Impacto com recursos do Brasil, Europa e Estados Unidos e que vai financiar empreendimentos apenas de moradores das favelas.

O genocídio da juventude negra (75% das pessoas assassinadas no Brasil são negras) foi denunciado em outubro à ONU e à Corte Interamericana de Direitos pelo advogado Irapuã Santana e pela ONG Educafro, que trabalha há anos para aumentar o número de jovens negros nas universidades.

2019 foi também o ano em que ativistas negros, como a filósofa Sueli Carneiro (foto ao lado), vindos de 18 estados brasileiros e 5 países ao redor do globo, se reuniram no "1º encontro internacional da Coalizão Negra por Direitos".

No final de 2018, a União de Ciclistas do Brasil conseguiu a aprovação do Programa Bicicleta Brasil, a primeira lei nacional sobre bicicletas e uma tentativa de melhorar as condições gerais da mobilidade urbana brasileira. Este ano, iniciaram a elaboração da primeira Estratégia Nacional para Bicicletas que vai regulamentar e colocar na prática a lei aprovada.

Desigualdade

Quantas vezes, neste fim de ano, você já assistiu aos protestos cantados das feministas chilenas que diz que "o estado opressor é um macho estuprador"?

Foi a insatisfação com a desigualdade social, que disparou no Chile, no Brasil e no mundo, o que levou milhares de jovens chilenas às ruas. E é ela que inspira a Aliança Global Contra Desigualdade, que lançou seu primeiro relatório este ano, com insights de 170 ativistas de 23 países.

Editora Boitempo

Gestão Pública

Com uma das menores taxas de encarceramento do mundo, a Finlândia apresentou para a União Européia suas revolucionárias prisões abertas e a ativista afro-americana Angela Davis pregou a abolição do sistema prisional (entre outros assuntos importantes) em suas falas, lotadas, por São Paulo.

Mas por que se preocupar com coisas pequenas como segurança, né? Enquanto não conseguem lidar com os problemas de violência e encarceramento em massa no Brasil, nossos governantes perseguem a imprensa.

Correndo por fora dos grandes veículos, um grupo de coletivos de comunicação das periferias de São Paulo venceu o "Desafio de Inovação", promovido pelo Google News com o projeto InfoTerritório, que busca democratizar o acesso a informação e resolver problemas de quem produz jornalismo a partir dos territórios periféricos.

Veja também

André Lucas/UOL

As dores e delícias da DZ7

Repórter viu o impacto do baile palco de massacre na vida dos moradores de Paraisópolis

Ler mais
Simon Plestenjak

Fora da Margem

Festas, saraus, e outros eventos literários esquentam a cena cultural nas periferias e formam novos artistas

Ler mais
Reprodução

Cada ação importa

Educadora cria biblioteca em cemitério e muda cenário da periferia de SP

Ler mais
Topo