Retorno da vida selvagem

Projetos de 'rewilding' restauram ecossistemas pelo mundo com a reintrodução de animais localmente extintos

Lia Hama Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Marcelo Rheingantz

Em 2008, ao caminhar pela floresta do Parque Nacional da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), a servidora aposentada Ivandy Castro notou frutos de cutieira apodrecendo no chão. Como o nome da árvore indica, esses frutos são consumidos por cutias, mas os animais estavam extintos na região e, por isso, não exerciam mais o papel de dispersar as sementes dos frutos. Surgiu então a ideia de reintroduzi-las no parque para que retomassem sua função no ecossistema.

"As cutias costumam enterrar as sementes no solo para consumo posterior, mas muitas vezes as esquecem, dando origem a novas árvores e contribuindo para a regeneração da floresta", explica Marcelo Rheingantz, biólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Marcelo é diretor-executivo do Refauna, iniciativa que reintroduz múltiplas espécies da fauna nativa em áreas remanescentes da Mata Atlântica com objetivo de restaurar funções ecológicas perdidas. Os pesquisadores do Refauna buscam combater o que chamam de "síndrome da floresta vazia": quando a floresta existe, mas a fauna não. Desde que foi criado em 2010, o projeto trouxe de volta três bichos que haviam desaparecido da paisagem da floresta da Tijuca: as cutias-vermelhas, os macacos bugios e os jabutis-tinga. Os cientistas agora estão prestes a realizar o reforço populacional do trinca-ferro, pássaro que é alvo cobiçado de traficantes de animais, e aguardam as autorizações para reintroduzir as araras-canindé.

The National Park Service/Reuters

Lobos que mudam rios

O Refauna é inspirado no conceito de rewilding (retorno à natureza selvagem), uma estratégia criada nos anos 1990 que prevê a restauração de ecossistemas por meio da reintrodução de espécies animais. Em todo o mundo, o caso mais conhecido é o dos lobos reintroduzidos no Parque Nacional de Yellowstone em 1995. Após 70 anos de sua extinção na região, a volta dos predadores de topo da cadeia alimentar transformou completamente a paisagem local.

Um vídeo chamado "Como lobos mudam rios" mostra como o retorno desses predadores provocou um efeito cascata em todo o ecossistema. Alces e veados começaram a evitar regiões onde seriam alvo fácil de lobos e passaram a se refugiar nas terras altas. A vegetação que consumiam nos vales se recuperou e estabilizou o curso dos rios, pois suas raízes reduzem a erosão. A altura de algumas espécies de árvores quintuplicou e atraiu populações de pássaros e castores. Com a entrada de lobos, houve redução no número de suas presas, os coiotes. Com isso, cresceram as populações de coelhos e camundongos, que, por sua vez, atraíram mais falcões e raposas.

O termo rewilding ganhou repercussão no meio acadêmico internacional em 2005, com a publicação de um artigo assinado pelo pesquisador norte-americano Josh Donlan na prestigiosa revista científica "Nature". Nele, Donlan e colegas defendem o resgate de grandes carnívoros, como leão, lobo e leopardo, ocupando savanas e pradarias da América do Norte.

Segundo especialistas, o rewilding representa uma mudança de agenda na biologia da conservação, que antes buscava apenas preservar o que existe na natureza por meio de ações contra a extinção das espécies e da criação de parques nacionais e unidades de conservação. "

O rewilding entra com a proposta de restaurar a biodiversidade porque a degradação atual é tão grande que só preservar não basta. É preciso ter ações mais pró-ativas, incluindo a reintrodução de animais localmente extintos

Marcelo Rheingantz, biólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Marcelo Rheingantz Marcelo Rheingantz

Ilhas cercadas de cidades

No Brasil, 1.172 espécies da fauna se encontram ameaçadas de extinção, segundo a lista vermelha do ICMBio. Uma das regiões mais degradadas e fragmentadas é a Mata Atlântica, considerada um hotspot de biodiversidade, com alto grau de endemismo (espécies que só ocorrem ali). "Hoje estima-se que temos entre 22% e 28% do que era a Mata Atlântica quando os portugueses chegaram em 1500. Mais de 70% do bioma deu lugar às cidades, à agricultura e à pecuária. A maior parte do que restou são pequenos fragmentos que não permitem que boa parte das espécies animais voltem a ocorrer", aponta Rheingantz.

A onça-pintada, por exemplo, é inviável de ser reintroduzida no Parque Nacional da Tijuca. O animal se desloca por uma área que chega a 100 quilômetros. Já a área total do parque mais visitado do país, onde circulam 3 milhões de pessoas por ano, é de 40 quilômetros quadrados. O mesmo ocorre com a queixada, que chega a viver em varas de 50 animais e teria um efeito devastador nas comunidades do entorno da floresta.

Em toda a cidade do Rio de Janeiro, há registros históricos de 33 espécies de médios e grandes mamíferos (veja lista abaixo). Dessas, restam apenas 11 na floresta da Tijuca, como o macaco bugio, que foi avistado em 1832 pelo naturalista inglês Charles Darwin [1809-1882], mas estava extinto localmente antes de ser reintroduzido pelo Refauna. Atualmente faltam 22 espécies, incluindo todos os predadores de topo que sumiram por conta da caça e do desmatamento.

Os pesquisadores do Refauna estudam agora em que lugares é possível reintroduzir os animais que precisam de áreas maiores para viver e se reproduzir livremente na natureza. Um deles é a anta, maior mamífero terrestre da América do Sul, extinto no Estado do Rio de Janeiro há 100 anos. O animal está sendo reintroduzido na Reserva Ecológica do Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu (RJ), e é chamado de "jardineiro" por seu papel de espalhar grandes sementes e derrubar árvores por onde passa, ajudando na renovação florestal.

Marcelo Rheingantz Marcelo Rheingantz

A volta dos muriquis

Na região de Ibitipoca, em Minas Gerais, uma ação de manejo busca recuperar outra espécie endêmica da Mata Atlântica: os macacos muriquis-do-norte, os maiores primatas das Américas, que figuram na lista de animais criticamente ameaçados de extinção. Estima-se que restam menos de mil indivíduos na natureza, distribuídos em 12 localidades no norte do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e sul da Bahia.

Criado em 2015, o Muriqui Instituto de Biodiversidade (MIB) lidera as ações de manejo para reabilitação e ressocialização de muriquis em parceria com a Comuna do Ibitipoca, projeto socioambiental de recuperação da Mata Atlântica que ocupa uma área de 6 mil hectares e inclui uma estrutura hoteleira.

"Estamos recompondo um grupo de muriquis-do-norte num viveiro para depois soltá-los na mata de Ibitipoca. Em 2015, havia apenas dois machos na região. Trouxemos fêmeas, eles se reproduziram e vimos nascer o primeiro filhote em cativeiro na história da conservação da espécie. Hoje temos nove indivíduos", conta o primatólogo Fabiano Melo, professor da Universidade Federal de Viçosa e membro-fundador e conselheiro do MIB.

Segundo Melo, é preciso criar dois grupos sociais de muriquis para que as fêmeas possam migrar de um para outro de forma a garantir a sobrevivência da população local como um todo. Além dos muriquis-do-norte, também há projetos para reintrodução de antas, jacutingas, macucos e araras-vermelhas. "Com isso, vamos conseguir fazer a recuperação dos serviços ecossistêmicos prestados por toda essa fauna nativa", prevê o pesquisador.

Marcelo Rheingantz Marcelo Rheingantz

A estratégia de rewilding é apontada como uma potencial aliada no combate às mudanças climáticas por seu efeito de recompor a vegetação que captura o carbono da atmosfera. Um estudo de Christopher Wilmers, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, mostrou o papel que as lontras têm para a manutenção das florestas de algas marinhas, conhecidas como kelps.

A lontra é um predador de topo dessas florestas subaquáticas localizadas no Golfo da Califórnia. Com a ausência da lontra para comê-los, multiplicam-se as populações de ouriços e abalones que dominam a paisagem e provocam uma drástica redução de algas. "Kelps são florestas de algas marinhas que se renovam muito rapidamente e captam grandes quantidades de carbono. Elas só crescem em áreas onde existe lontra. Isso mostra a importância da presença desses predadores de topo para a manutenção da biodiversidade e, indiretamente, para ajudar a conter as mudanças climáticas", resume Rheingantz.

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