Militar para os outros

Ator, dramaturgo e ex-BBB, Rodrigo França fala de trabalho com PM e da importância da cultura contra o racismo

Diana Carvalho De Ecoa, em São Paulo Divulgação

Ator, dramaturgo, filósofo e cientista social. Com todas essas atribuições, Rodrigo França, 41, não se incomoda com a de menos impacto: ex-BBB. O reconhecimento do seu trabalho no campo artístico e social, levando para os palcos a força do teatro negro, faz com que ele lide de maneira tranquila com o passado de exposição diante das câmeras.

"Quando fui convidado para participar do reality, eu já batia recordes de público com a peça 'O Pequeno Príncipe Preto'. Então, não pensei em entrar para divulgar meu teatro. Topei entrar para furar uma bolha. Me lembro que minha mãe, quando viu que eu estava na dúvida, disse: 'Militar para os seus é fácil'. Essa frase me causou uma inquietação e resolvi encarar", diz o participante da 19ª edição do programa global.

A militância, segundo Rodrigo, não serve só para lutar e fortalecer movimentos, mas também para provocar incômodo, gerar desconforto, e isso deve valer para ambos os lados. Em 2019, no Big Brother Brasil, Rodrigo foi alvo de racismo dentro e fora da casa, vítima de intolerância religiosa e ataques nas redes sociais.

"O racismo no Brasil é na sutileza, é um racismo velado. E um reality show mostra, de alguma maneira, uma parte micro dessa estrutura que vai se desdobrar em nossa sociedade de uma maneira muito maior. Lá dentro da casa eu percebia o racismo em questões muito simbólicas. Gente que me abraçava e depois ia limpar a roupa, gente que não queria comer da minha comida porque achava que tinha feitiço. E aqui eu nem digo intolerância religiosa, é racismo religioso mesmo, porque é sempre com a cultura afro, sempre com a negritude", diz.

Em entrevista a Ecoa, Rodrigo conta o que o motivou a relembrar esses e outros casos no livro "Confinamento e Afins", lançado em parceria com o jornalista Adalberto Neto. Ele fala também sobre a violência policial no Brasil e ressalta a importância de uma cultura não hegemônica, seja no teatro, na TV ou na literatura.

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Você diz que o racismo no Brasil muitas vezes é velado, na sutileza de um olhar, um gesto. Essa subjetividade dificulta, de alguma maneira, que outras pessoas percebam e criminalizem de fato uma atitude racista? No BBB19, por exemplo, a participante que atacou sua religiosidade acabou vitoriosa...

Olha, sem dúvida. Esse ano mesmo, no BBB, o Babu falava que uma das mulheres da casa olhava pra ele de forma diferente. O racismo está nessa sutileza e que possivelmente quem não é negro nunca vai perceber e entender. Como tem uma relação de subjetividade, é difícil você comprovar materialmente e, nesse caso, estamos falando do olhar para o homem negro como violento, como monstro. No livro "Confinamento e Afins", vou contextualizando que tipo de racismo está sinalizado ali, em cada atitude. E muitas delas eu só tive conhecimento aqui fora, depois de ver cenas e vídeos do programa.

O racista, em si, ele é covarde. Ele vai fazer o possível e o impossível para não ser denominado dessa maneira. E quando ele é confrontado, vai negar até a morte, vai dizer que respeita todo mundo e aquele velho chavão desonesto: "Somos todos iguais. Somos todos humanos". Outra coisa que posso afirmar com toda certeza é que o que relativizou o racismo na minha edição [do BBB] foi porque existe uma construção social do monstro e da princesa.

De não enxergar o racista como uma pessoa comum, você diz?

É. Existe uma falha, que vem muito da responsabilidade da literatura e da teledramaturgia, de acreditar que o racista tem aquele estereótipo do grande vilão, da grande vilã. Quando você tem uma construção de bondade - que também é um conceito racista - com uma pessoa branca, jovem, loira... Tudo que essa pessoa fizer, por mais que seja criminoso, vai ser visto como um equívoco, com um "foi mal interpretado". Ainda acredita-se que o racista é aquela pessoa asquerosa, no sentido físico mesmo. Mas o racista pode ser uma ótima e bonita empresária, um ótimo professor, um ótimo engenheiro.

O que precisamos entender é que o racismo no Brasil não é só chamar uma pessoa negra de macaca ou macaco. O racismo aqui se alimenta e se retroalimenta, principalmente quando você, em um país de maioria negra, é único. Em um país onde se determina que a entrada de serviço é para pessoas negras. Em um país que julga pela aparência a pessoa negra como alguém que é criminoso ao esconder sua bolsa, seu celular. Isso tudo é uma construção social.

De uns anos para cá, você percebe algum avanço para que esses "equívocos", essas ofensas racistas, não passem batido? Seja ela praticada por pessoas famosas ou não, rolando até o tal cancelamento nas redes sociais...

Primeiro preciso dizer que sou totalmente contra a política do cancelamento. Totalmente. Mas, sejamos honestos, esse cancelamento não acontece na mesma proporção com pessoas brancas. Uma das pessoas mais canceladas da história foi Simonal. As pessoas brancas simplesmente se desculpam. Pessoas brancas que cometem crime, porque racismo é crime, no máximo um dia ou outro causam uma euforia na internet. Mas quem não pode errar, porque é desumanizado, quem não tem uma segunda chance, não são as pessoas brancas. Esse cancelamento tem cor e tem história.

Quando você olha para a comunidade carcerária, a população como Estado não quer uma ressocialização: "Que morra lá dentro", dizem. Então, esse cancelamento é histórico. E esse cancelamento que se cria na internet vai até a página dois. Ele não vai de forma alguma acontecer na mesma proporção com pessoas brancas e pessoas negras.

Rodrigo França, sobre desigualdade até no cancelamento

Você trabalhou 12 anos como pesquisador e professor dando aula de sociologia criminal e direitos humanos para policiais do Rio. De um olhar de quem esteve lá dentro, como você vê a instituição hoje, principalmente com relação ao tratamento violento em comunidades?

Existe uma máxima da sociologia que diz que as instituições sociais seguirão as mazelas e os benefícios da sociedade. Então, se você tem uma sociedade que é racista, as suas instituições também serão. E quando você pensa em Estado, o Estado é uma instituição. A polícia militar do Rio de Janeiro é de 1888, século 19. Ela surge principalmente para defender uso e propriedade, quem é rico de quem não é. E claro, se você fizer a conta histórica, quem não era rico eram principalmente os negros que foram libertos de uma suposta abolição.

O próprio militarismo já significa algo: que alguém é o inimigo. E quem é o inimigo da sociedade? Você está defendendo quem contra quem? A polícia deveria ser uma polícia cidadã, uma polícia que deve existir para garantir direitos. Mas o que a gente vê? Uma construção ideológica de uma polícia que vai contra ela mesma, porque esse policial que mata, que é truculento, que tortura, ele está matando e sendo truculento com os seus, porque a base da pirâmide da polícia militar, ou de qualquer estrutura do militarismo, é composta por gente preta e pobre. Agora, quando você vai subindo para o oficialato, aí sim você consegue ver quem é que está no poder, e é a branquitude.

Você diz que a polícia deveria ser uma polícia cidadã. Em questões de segurança pública, o que precisaria mudar, de fato, para que isso acontecesse?

A gente precisa entender o que está por trás de toda uma política de segurança pública para poder reverter esse quadro. A gente precisa conversar sobre segurança, saneamento básico, educação, lazer. Por que hoje a política de segurança é contra pretos e pobres. Quando se fala de uma suposta guerra contra as drogas é mais um mecanismo de um genocídio dessa população negra em curso. Por que o grande consumidor, consumidora dessas drogas, não está dentro das favelas. Não está dentro dos morros, das periferias. Não é ali que se fabrica armas. A gente precisa ter uma maturidade política no Brasil para poder discutir realmente o que interessa, quem são os reais barões do pó nesse país? O quanto se ganha a partir de uma suposta guerra?

O Estado é uma máquina de moer carne preta. O meu primeiro momento dentro da polícia foi para estudar isso tudo e de uma certa forma como professor fazer a minha parte. Aprendi muito lá dentro, foi uma casa em que fui muito bem recebido. Julgo que sou um profissional melhor a partir desse trabalho em sala de aula com policiais militares, mas chega um momento que você fala assim: deu. E não é que não rendeu, rendeu. Mas eu parei porque não queria ser mais um a desacreditar no processo ali dentro.

Você foi convidado para integrar o elenco da segunda temporada de "Arcanjo Renegado", da Globoplay. A série aborda justamente essas questões de segurança pública, relacionadas a abusos de poder. Como será o seu personagem?

Eu vou fazer um deputado chamado Gustavo. O que posso dizer é que minha construção foi inspirada no teatrólogo Abdias Nascimento. É um papel que tem um viés bastante positivo, e isso é importante porque não cai em uma narrativa subalterna.

Você vê um avanço nessa relação, de papéis para atores e atrizes negros?

Vem avançando bem lentamente a partir de quem chama, de quem escreve, de quem dirige. Cada vez mais a gente tem pessoas pretas nessa relação de poder. E não nos interessa mais representatividade, interessa protagonismo.

Protagonismo não é só gente preta na frente da TV ou no teatro, protagonismo é poder. Narrativa é poder. É poder quem escreve, quem dirige, quem ilumina, quem veste. Então, na medida em que tenho mais produtores de elenco seguindo essa lógica, mais eu modifico essa estrutura hegemônica que a narrativa nos coloca como subalternos.

Rodrigo França, sobre espaço na TV

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Em seu trabalho você busca exatamente isso, tanto no teatro como na literatura. Aliás, o Pequeno Príncipe Preto, o livro, surgiu de uma peça.

Sim. Existe uma realidade da falta de protagonismo de crianças negras no universo infanto-juvenil e esse "livro" dá início com a peça, que levantou essa problemática e ficou em cartaz durante um ano batendo recorde de público em São Paulo.

Na sua infância você sentiu essa falta de protagonismo em algum momento?

Eu senti no ambiente escolar, porque fui uma criança que estudou em escolas de classe média. Se você pensar nos anos 1980, 90, eu e meus irmãos éramos os únicos negros da escola, então eu percebia como se tratava a negritude, a cultura afrobrasileira, de uma forma bastante perversa em que se construía uma África demonizada e sem personagens infantis.

Mas ao mesmo tempo, o que a escola me negava, as minhas relações familiares me apresentavam. Meus pais eram super militantes, tradicionais do samba. O próprio livro "O Pequeno Príncipe Preto" traz muito dessa relação que tenho com a minha família. Quando eu coloco a árvore Baobá passando todo o conhecimento ancestral para o pequeno príncipe nada mais é do que a fala da minha avó, a fala da minha mãe, quando eu era criança.

A sua relação com a família, irmãos, os saberes de sua avó, a militância dos seus pais, de alguma maneira te ajudou a seguir por esse lado de luta social também. Como você a importância disso na sua construção de vida?

Sou a segunda geração de classe média da minha família, sabe? Eu não precisei, na minha infância e adolescência pensar no que ia comer, não precisei trabalhar. Eu tinha apenas que estudar. Então, tudo que tenho, tudo que sou, é por conta de ser muito bem instrumentalizado. E hoje posso dizer que estou num cenário de conforto. E quando falo conforto, é porque não é um lugar de privilégio. Um corpo preto no Brasil, ou um corpo trans, como muitas mulheres sendo cis ou trans, não tem privilégio, embora estejam num patamar social e econômico evoluído.

Nesse momento de pandemia, muito se fala sobre o futuro do teatro, de produções que necessitam de "contato" e ao mesmo tempo de uma valorização maior da nossa cultura e de uma mudança enquanto sociedade. Como você avalia esse momento?

O que a gente precisa é de uma política pública para a cultura. Principalmente para o teatro. Você imagina, se espetáculos bem patrocinados estão enfrentando dificuldades, imagina nós, do teatro negro, que tiramos dinheiro do próprio bolso. Há diversas pessoas que estão enfrentando dificuldades, desde artistas a técnicos, e a gente se organizou com a doação de cestas básicas, por exemplo.

Existe uma associação de que faço parte, chamada A Preta, que a gente está se organizando para que essas pessoas tenham um mínimo de dignidade. Então dizer que esse momento é democrático, que bate em todo mundo da mesma forma, não é honesto. Por mais que o artista tenha a possibilidade de fazer uma live ganhando, de encenar ali sua peça numa chamada de vídeo, no teatro convencional existem dezenas de pessoas como técnicos e técnicas que não estão sendo beneficiados a partir dessa nova estrutura.

Por mais que o teatro negro venha lotando cada vez mais, somos um teatro de resistência. Assim como a luta do movimento negro, que é histórica. Enquanto sociedade, estamos evoluindo, claro, ainda bem. Mas precisamos entender que existe um vício de um Brasil colônia, e que isso deve deixar de existir para além de uma estrutura sistêmica. Eu tenho mais esperança da gente enquanto movimento organizado do que com a sociedade se modificar em si. Isso já é um avanço, estamos juntos e buscando o mesmo objetivo. Alguém falou que acredita mais no varejo do que no atacado, e achei isso genial. Não acho que como sociedade vamos sair melhor do éramos, mas acho que muita gente, em sua individualidade, vai buscar o melhor em si diante de tudo isso que estamos enfrentando.

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