Em seu trabalho você busca exatamente isso, tanto no teatro como na literatura. Aliás, o Pequeno Príncipe Preto, o livro, surgiu de uma peça.
Sim. Existe uma realidade da falta de protagonismo de crianças negras no universo infanto-juvenil e esse "livro" dá início com a peça, que levantou essa problemática e ficou em cartaz durante um ano batendo recorde de público em São Paulo.
Na sua infância você sentiu essa falta de protagonismo em algum momento?
Eu senti no ambiente escolar, porque fui uma criança que estudou em escolas de classe média. Se você pensar nos anos 1980, 90, eu e meus irmãos éramos os únicos negros da escola, então eu percebia como se tratava a negritude, a cultura afrobrasileira, de uma forma bastante perversa em que se construía uma África demonizada e sem personagens infantis.
Mas ao mesmo tempo, o que a escola me negava, as minhas relações familiares me apresentavam. Meus pais eram super militantes, tradicionais do samba. O próprio livro "O Pequeno Príncipe Preto" traz muito dessa relação que tenho com a minha família. Quando eu coloco a árvore Baobá passando todo o conhecimento ancestral para o pequeno príncipe nada mais é do que a fala da minha avó, a fala da minha mãe, quando eu era criança.
A sua relação com a família, irmãos, os saberes de sua avó, a militância dos seus pais, de alguma maneira te ajudou a seguir por esse lado de luta social também. Como você a importância disso na sua construção de vida?
Sou a segunda geração de classe média da minha família, sabe? Eu não precisei, na minha infância e adolescência pensar no que ia comer, não precisei trabalhar. Eu tinha apenas que estudar. Então, tudo que tenho, tudo que sou, é por conta de ser muito bem instrumentalizado. E hoje posso dizer que estou num cenário de conforto. E quando falo conforto, é porque não é um lugar de privilégio. Um corpo preto no Brasil, ou um corpo trans, como muitas mulheres sendo cis ou trans, não tem privilégio, embora estejam num patamar social e econômico evoluído.
Nesse momento de pandemia, muito se fala sobre o futuro do teatro, de produções que necessitam de "contato" e ao mesmo tempo de uma valorização maior da nossa cultura e de uma mudança enquanto sociedade. Como você avalia esse momento?
O que a gente precisa é de uma política pública para a cultura. Principalmente para o teatro. Você imagina, se espetáculos bem patrocinados estão enfrentando dificuldades, imagina nós, do teatro negro, que tiramos dinheiro do próprio bolso. Há diversas pessoas que estão enfrentando dificuldades, desde artistas a técnicos, e a gente se organizou com a doação de cestas básicas, por exemplo.
Existe uma associação de que faço parte, chamada A Preta, que a gente está se organizando para que essas pessoas tenham um mínimo de dignidade. Então dizer que esse momento é democrático, que bate em todo mundo da mesma forma, não é honesto. Por mais que o artista tenha a possibilidade de fazer uma live ganhando, de encenar ali sua peça numa chamada de vídeo, no teatro convencional existem dezenas de pessoas como técnicos e técnicas que não estão sendo beneficiados a partir dessa nova estrutura.
Por mais que o teatro negro venha lotando cada vez mais, somos um teatro de resistência. Assim como a luta do movimento negro, que é histórica. Enquanto sociedade, estamos evoluindo, claro, ainda bem. Mas precisamos entender que existe um vício de um Brasil colônia, e que isso deve deixar de existir para além de uma estrutura sistêmica. Eu tenho mais esperança da gente enquanto movimento organizado do que com a sociedade se modificar em si. Isso já é um avanço, estamos juntos e buscando o mesmo objetivo. Alguém falou que acredita mais no varejo do que no atacado, e achei isso genial. Não acho que como sociedade vamos sair melhor do éramos, mas acho que muita gente, em sua individualidade, vai buscar o melhor em si diante de tudo isso que estamos enfrentando.