Por que parece haver uma semelhança, e até mesmo contatos diretos, entre um ditador como Kim Jong-un e Donald Trump? Ou até mesmo entre [Nicolás] Maduro e Trump, como no jeito de lidar com a pandemia? O que eles têm em comum, mesmo partindo de fontes políticas diferentes?
Para mim, Donald Trump é um ditador da burguesia, mesmo que o regime político estadunidense ainda se dê nos moldes de uma democracia liberal. Digo isso, porque é sempre bom a gente pontuar que como compreendemos cada regime político parte de parâmetros. Como eu enxergo a democracia é diferente de como um liberal enxerga a democracia e também de como Eduardo Bolsonaro pensa que a democracia é ou deve ser.
Há eleições nos Estados Unidos, mas quão livres elas são diante da capacidade do poder econômico de alterar rumos de campanhas e orientar votos através da internet? Ao mesmo tempo em que enxergo o ecossocialismo como uma alternativa mais desejável do que a realidade da Coreia do Norte, acredito que existem rios de distância entre os desafios de uma sociedade que busca o socialismo num ambiente cercado por forças imperialistas e as ações do homem que lidera um estado tão militarizado, intervencionista, imperialista e evidentemente responsável por assassinatos de lideranças de esquerda ao redor do mundo, como é o caso de Trump e dos Estados Unidos. O mesmo vale para o caso de Maduro.
Para falar de Maduro e Trump, sou obrigada a falar das ameaças de intervenção de Trump na Venezuela - mas, até onde eu sei, Maduro não está empenhado em alterar os resultados eleitorais nos Estados Unidos - e mesmo se estivesse, não possui as ferramentas que Trump possui. Então, sobre contatos diretos, Henrique Capriles, oponente de direita à Maduro, afirma estar em contato direto com o governo Trump a respeito das eleições venezuelanas.
Houve um debate acirrado entre Jones Manoel e pensadores, como Celso Rocha de Barros, que chamam a leitura de Manoel de [Domenico] Losurdo como uma apologia à política de estado de Stalin. Em sua opinião, o que Stalin representa na história da esquerda política?
Primeiro, não vou comentar nada específico ao Celso, com quem já conversei sobre o assunto. Prefiro abordar o contexto geral. Jones e eu somos amigos pessoais e isso significa duas coisas: temos total liberdade para discordamos um do outro, pois nos respeitamos intelectualmente, e, também por isso, repudiamos distorções.
Mesmo que eu discorde de Jones no que significa uma política anti-stalinista em si, por exemplo, já que eu me classifico como anti-stalinista e ele como não-stalinista, muito me perturbou a tentativa contínua de deslegitimação (muitas vezes racista) à qual ele foi submetido durante tal polêmica. Losurdo não é um dos meus pilares referenciais neste assunto específico, já que avalio Stalin via ecossocialismo, via Marcuse, via [Isaac] Deutscher, via [Moshe] Lewin, para citar alguns, mas diria que na maioria das vezes, a polêmica cresceu em cima de uma distração. Losurdo apresenta bons argumentos sobre as facetas cruéis do liberalismo, mas muitos liberais (mais à direita e mais à esquerda) desviaram o assunto para Stalin e a posição de Losurdo e de Jones sobre Stalin como forma de abafar a crítica contundente ao liberalismo. Inclusive, pouco se falava sobre a política de estado de Stalin, e sim sobre a conduta específica de Stalin, o homem, sob viés quase que psicológico.
Isso reduz a possibilidade de explorar até mesmo o que considero profundamente problemático no stalinismo, por exemplo, as perseguições políticas dentro da esquerda, pois tende a excluir o contexto conflituoso em que o stalinismo se edificou. Nunca vamos conseguir debater um fenômeno complexo se só permitirmos clichês simplistas e uma historiografia limitada e anticomunista, mas o liberalismo não me parece pronto para avançar nesse caso.
Na política parece haver a parte teórica, filosófica, mas que na prática não tem funcionado muito bem. É um dos casos do PT, que nasce com matriz de esquerda antissistêmica mas que se enrosca em casos de corrupção e forma até alianças com grupos mais à direita. É possível fazer uma política idealista que seja viável e possa se sustentar na vida real?
Esse desalinhamento entre teoria e prática é o que causa o que chamo de crise de práxis na esquerda, mas não é exclusivo da esquerda brasileira ou do PT. O Partido dos Trabalhadores possui um legado importante na esquerda e há muitos militantes do PT que cumprem um papel essencial de formação política e mobilização, mas os governos do PT se enroscaram (é um bom verbo mesmo para se usar aqui) em uma série de problemas relacionados ao que chamamos de "transformismo", em que um partido de esquerda se adequa à ordem em vez de desafiá-la diretamente. Não há uma só razão para isso.
Podemos falar, por exemplo, em como Lula quis garantir a governabilidade através dos poderes institucionais, quando o povo poderia ter sido o maior pilar de sustentação do governo. Podemos falar também de uma certa melancolia no PT, onde se cria que não seria possível chegar mais longe do que o governo federal, naqueles moldes, de forma que seria preciso conciliar com as classes dominantes para garantir alguns outros ganhos sociais.
Como bons materialistas (históricos), nós marxistas entendemos que é preciso construir as condições para exercer o poder, mesmo o poder limitado de um governo federal sob o capitalismo, e para isso é preciso estremecer algumas bases e usar da mobilização como o maior trunfo possível de governabilidade. Não significa que golpes se tornarão inevitáveis, mas pelo menos não seremos nós a convidar golpistas para sentar conosco em nossos governos.