Paz, amor e natureza

Referência de pacifistas e ambientalistas, indiano Satish Kumar quer que tenhamos uma vida simples e elegante

Lia Hama Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Patrick Gilliéron Lopreno/Divulgação

Em 1962, no auge da Guerra Fria, o ativista indiano Satish Kumar iniciou uma marcha por três continentes para alertar sobre os riscos de um conflito nuclear. Inspirados pelas ideias do filósofo britânico pacifista Bertrand Russell, ele e o colega E.P. Menon partiram do túmulo do líder indiano Mahatma Gandhi, em Nova Déli, e levaram a mensagem de paz às capitais de quatro potências nucleares: Moscou, Paris, Londres e Washington. A pé e de barco, percorreram 13 mil quilômetros por dois anos e meio. Desde então, Satish tornou-se um ícone dos movimentos pacifista e ambientalista em todo mundo.

A trajetória incomum começou na infância. Aos 9 anos, o garoto nascido no estado do Rajastão tornou-se um monge jainista [o jainismo é uma das religiões mais antigas da Índia]. Aos 18, conheceu um dos principais discípulos de Gandhi, Vinoba Bhave, e se juntou a ele em protestos pela reforma agrária na Índia. Nos anos 70, mudou-se para a Inglaterra, onde foi editor da revista de ecologia "Resurgence" e escreveu uma dezena de livros sobre o assunto. Em 1991, fundou o Schumacher College, centro de referência em estudos sobre sustentabilidade e destino de muitos brasileiros — mais de 500 fizeram pós-graduação ou cursos rápidos na instituição sediada em Totnes, na Inglaterra.

O ativista e educador de 85 anos falou a Ecoa sobre a guerra na Ucrânia, o desmatamento da Amazônia, o risco de greenwashing na agenda ESG (sigla em inglês para boas práticas na área ambiental, social e de governança) e o papel de cada um para enfrentar os desafios da crise climática global.

Roy Riley/Divulgação Roy Riley/Divulgação

Ecoa - Como ativista pela paz, o que você faria para pôr fim à guerra na Ucrânia?

Satish Kumar - A guerra é o resultado do fracasso da diplomacia de ambos os lados. Aos ucranianos, eu diria: "Vocês podem manter relações amistosas com os vizinhos europeus e russos e, ainda assim, a Ucrânia pode ser soberana, independente e neutra". Aos russos, eu diria: "Vocês têm um território gigantesco e são poderosos, mas, para se tornarem uma grande nação de verdade, devem ser generosos e fazer o bem". A ambos, eu diria: "Sentem-se para negociar e encontrem juntos uma solução. Não 'do meu jeito', mas 'do nosso jeito'". São dois países cristãos que deveriam seguir o ensinamento bíblico: "Amarás ao próximo como a ti mesmo".

Eventos climáticos extremos são cada vez mais frequentes, como secas prolongadas e fortes chuvas que provocam inundações e milhões de mortes e desabrigados. Ainda assim, há poucas ações para frear o aquecimento global. Por que é tão difícil o engajamento nessa causa?

O aquecimento global é o resultado do nosso desejo por crescimento econômico contínuo e padrões de vida cada vez mais elevados. Desde a Revolução Industrial nos século 18 e 19, passamos por um processo de lavagem cerebral para acharmos que, tendo mais, viveremos melhor. Somos ensinados pelas escolas, pelos meios de comunicação, pelos governos e pelas indústrias de que mais crescimento econômico e um padrão de vida como o dos americanos nos farão mais felizes. Queremos ter uma casa maior, um celular melhor, um carro mais potente, mais estradas, mais aeroportos. Queremos tudo mais e mais. Até os que entendem que o aquecimento global é uma ameaça real não querem reduzir o consumo. Vai demorar até mudar essa mentalidade.

Marcelo Delduque/Divulgação Marcelo Delduque/Divulgação

Qual é a saída?

Não estou defendendo a pobreza, mas a frugalidade. Temos que levar uma vida simples e elegante, tendo o suficiente, mas sem excesso. É preciso evitar o desperdício e a poluição do solo, dos rios, dos oceanos e do ar, assim como [reduzir] a emissão de gases de efeito estufa. A humanidade sobreviveu por milhões de anos nesse planeta sem provocar aquecimento global. Este foi criado nos últimos 200 anos por causa da ganância. Não é necessidade, é ganância.

Como dar início a essa mudança de mentalidade?

Todos os grandes movimentos de transformação começam pelas margens, depois crescem e, quando se tornam grandes, então o governo e as empresas mudam. Não devemos esperar que o governo lidere o movimento pelo meio ambiente. O fim do apartheid na África do Sul começou com Nelson Mandela e outros líderes da sociedade civil. Temos que inspirar as pessoas a agir e mudar seus hábitos. São elas que vão liderar a mudança. Os governos são os últimos a mudar.

Como engajar as pessoas nessa causa?

Primeiro é preciso dar o exemplo. Seja a mudança e um irradiador dela. Depois é preciso aprender a se comunicar, seja por meio de discursos, canções, textos ou poesias. Gandhi e [líder do movimento dos direitos civis nos EUA] Martin Luther King eram ótimos comunicadores. Então organize a mudança, como fez [a ativista pelo clima] Greta Thunberg com o movimento Fridays for Future, de forma que ele cresça a ponto de ser capaz de pressionar os governos.

Marcelo Delduque Marcelo Delduque

O que é a cultura regenerativa pregada pelos ambientalistas?

Ela se inspira no caráter circular e regenerativo da natureza: tudo o que ela produz é reabsorvido por ela. Todos os anos vemos o surgimento de flores na primavera, de frutos no outono e, no inverno, os restos orgânicos são reabsorvidos pelo solo para dar início a um novo ciclo. Já a economia humana atual é linear, destrutiva e poluente. O petróleo é extraído da natureza, usado para produzir um plástico que é utilizado uma única vez e jogado fora, poluindo os oceanos, já que leva séculos para se decompor. Precisamos aprender com a natureza e criar uma economia circular com zero poluição e desperdício.

Que exemplos de projetos regenerativos você destacaria?

A Fazenda Toca, no interior de São Paulo, é um belo exemplo de agricultura regenerativa. Fui visitá-la em uma das três viagens que fiz ao Brasil. Na Inglaterra, existe um projeto de 'rewilding' [recuperação de biomas selvagens] tocado por Isabella Tree em West Sussex. Em 1.400 hectares de solo degradado pela agricultura intensiva, ela deixou as espécies de flora e fauna nativas voltarem a ocupar a região e hoje se alimenta dela. Penso que os brasileiros deveriam abraçar o movimento de 'rewilding' e também o das agroflorestas, em que árvores nativas, espécies frutíferas, legumes e hortaliças são cultivados num mesmo lugar. Tanto a agroecologia como o 'rewilding' são ótimos exemplos de cultura regenerativa.

Cultura regenerativa na prática

Antes de comprar qualquer objeto, faça três perguntas: Isso é bonito? Vou usá-lo com frequência? Vai durar pelo menos uns 10 anos? Só compre se o objeto cumprir esses três requisitos: ser bonito, útil e de longa duração.

Satish Kumar, ativista, educador e fundador do Schumacher College

Marcelo Delduque

Qual o papel da educação na crise climática?

O modelo de educação desenvolvido nos séculos 19 e 20 se tornou obsoleto e é parte do problema, porque ensina os jovens a fazerem parte dessa máquina de crescimento econômico, responsável pela crise climática. Universidades renomadas como Oxford, Harvard e USP preparam as pessoas para serem os líderes que estão por trás do aquecimento global. Elas treinam apenas o hemisfério esquerdo do cérebro, ligado à razão, à lógica e à matemática, e se esquecem do hemisfério direito da intuição, da imaginação e da espiritualidade. Enxergam a natureza apenas como um recurso para aumentar a produção, o consumo e o crescimento econômico.

Como o ensino do Schumacher College difere dessas instituições?

Propomos uma economia holística, regenerativa e sustentável. Treinamos o cérebro inteiro assim como outras partes do corpo. Os alunos fazem jardinagem, cultivam horta, cozinham e observam a natureza para aprender com ela. Temos professores como James Lovelock [autor da Teoria de Gaia, segundo a qual a Terra é um enorme organismo autorregulador], Fritjof Capra [físico e ambientalista] e Vandana Shiva [cientista e ativista ambiental que conversou com Ecoa no ano passado]. Ensinamos que a natureza e os seres humanos não são separados, mas uma coisa só. Se a destruímos, destruímos a nós mesmos porque dependemos dela para beber água, comer e respirar. Não é possível ter pessoas saudáveis num planeta doente.

Divulgação Divulgação

Por que o Schumacher College atrai tantos brasileiros?

Acho que há um despertar no Brasil. Os brasileiros têm uma outra consciência por estarem rodeados de uma natureza exuberante, ainda que governos e indústrias tenham destruído parte dela. Alguns dos nossos ex-alunos, inclusive, se uniram para criar a Escola Schumacher Brasil, que oferece cursos, encontros e projetos voltados para promover uma cultura regenerativa no país.

A Amazônia sofre a ameaça do desmatamento provocado pela monocultura da soja e pela criação de gado, que exercem um papel fundamental na economia brasileira. Como equilibrar a produção de alimentos, a criação de empregos e a preservação da floresta?

Não há contradição entre ter uma economia saudável, produzir alimentos e manter a integridade da floresta. A contradição só existe porque alguns brasileiros querem lucrar mais e mais e construir uma infraestrutura que não é sustentável do ponto de vista ambiental. O meio ambiente fica sempre em segundo plano. Temos que aprender a viver em harmonia com a natureza. Você nunca passará fome se estiver rodeado dela. Se plantar uma semente de maçã, ela te dará milhares de maçãs ao longo de 50 anos. Essa é a abundância da natureza. Já existe alimento suficiente hoje para satisfazer a todos.

O discurso do ESG vem sendo adotado por grandes empresas brasileiras por conta da pressão de investidores estrangeiros. Quais são os riscos de greenwashing (propaganda falsa de ações ambientais)?

Muitas empresas querem apenas lucrar com a economia verde porque ela está na moda. Estampam um selo verde em seus produtos, mas, por trás da encenação, não estão mudando, de fato, o ethos do negócio. O dinheiro não deve ser o objetivo final, apenas o meio para promover o bem-estar das pessoas e do meio ambiente. Quando se tem esse objetivo, não é preciso fazer greenwashing.

Quem são as pessoas que te inspiram hoje?

O papa Francisco é uma inspiração. Tive o privilégio de ser convidado a dar uma palestra no Vaticano com a presença dele. Era um encontro entre cientistas e líderes religiosos. O papa me inspira porque fala sobre a necessidade de nos colocarmos acima dos interesses nacionais e religiosos em nome do combate à fome, às guerras e para salvar o meio ambiente.

Eu não seria ativista se não fosse otimista. As novas gerações, como a de Greta Thunberg, me dão a esperança de que há uma consciência crescente sobre a necessidade de se preservar o mundo natural e reduzir a desigualdade. Temos um paraíso na Terra e é preciso cuidar dele.

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