Por médicos mais pacientes

Médica do SUS, Júlia Rocha luta para humanizar a medicina um paciente por vez; "eles são únicos"

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo (SP) imon Plestenjak/UOL

Júlia Rocha viralizou nas redes falando de saúde humanizada. Que Júlia Rocha? A médica negra que trabalha no SUS, em uma profissão onde 77,7% são brancos? Ou a cantora mineira que acumula mais de 75 mil seguidores no Instagram e quase 54 mil no Twitter? É possível que tenha sido a Júlia Rocha militante, que esteve no último sábado protestando contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Bom, Júlia Rocha, uma das colunistas mais populares de Ecoa, é todas essas Júlias e mais: compositora, escritora, mãe, doula... Nessa entrevista ela fala sobre uma medicina mais humanizada, a importância do SUS e as questões raciais que cortam o sistema público de saúde, onde 80% dos usuários são negros.

Simon Plestenjak/UOL

Médica e música

"Sou médica. Aprendi tudo que sei em minha graduação de medicina na Universidade do Vale do Sapucaí, em Pouso Alegre, sul de Minas Gerais, e nas experiências profissionais que tive durante os anos. Mas costumo dizer que quando um novo paciente pisa em meu consultório pela primeira vez, tenho que aprender a ser médica do zero.

Digo isso porque é comum consideramos que a doença é a mesma para várias pessoas, mas, na verdade, a experiência do adoecimento é única para cada paciente. No final das contas, a gente é especialista em medicina, mas aquela pessoa é especialista nela mesma.

Só percebi isso com mais clareza quando fui para Pará de Minas, cidade próxima de Belo Horizonte (MG), para trabalhar com medicina de família e comunidade pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Precisamos não apenas ouvir o que é falado, mas também o que não é falado. Observar mesmo.

Subjetividade essa que me vem antes da medicina, para falar a verdade, e chegou em forma de arte. Tenho em minha família muitos médicos, claro, mas também muitos músicos. Sempre fui deixando essas influências chegarem, e com 14 anos, comecei a cantar profissionalmente.

Certa vez recebi um convite do pessoal da residência de medicina de família do Rio de Janeiro para trabalhar lá por um ano. Aproveitei para me dedicar a conhecer profundamente o samba carioca, que é o estilo que mais canto hoje.

Quando voltei, dividia meu tempo entre atender meus pacientes durante o dia no interior, e a noite eu voltava para cantar em Belo Horizonte. Diariamente, eram sempre os mesmos 400 km que separavam geograficamente uma profissão da outra.

Foi essa decisão de não escolher entre uma ou outra que me iniciou de alguma forma no atendimento médico humanizado."

Ouça "Sementinha" de Júlia Rocha

"Não há soluções simples para problemas complexos"

"Dois anos após me graduar, eu estava frustrada com a realidade fora da sala de aula. Achava um absurdo como o protocolo a ser seguido por qualquer pessoa que tivesse determinada doença, na prática, não funcionava.

Baseada no meu conhecimento teórico científico, eu achava que as consultas, os diagnósticos e os tratamentos tinham que acontecer de uma certa maneira. Chegava a ser matemático: o paciente me contava os sintomas, eu receitava um remédio que agiria de determinada forma dentro do organismo da pessoa, e pronto.

Só depois de um tempo lembrei de um detalhe: os pacientes não leem os livros teóricos de medicina. E mais do que isso: eles são únicos.

Percebi que não há soluções simples para problemas complexos. Não é um comprimido que vai resolver uma depressão, por exemplo, já que a depressão tem a ver com a história de vida daquela pessoa. Não é simplesmente uma situação de desequilíbrio dentro do corpo que vai fazer com que uma pessoa adoeça — tem toda uma bagagem de história de vida.

É importante lembrar sempre que quase 80% dos usuários do SUS são negros. Isso quer dizer que diariamente médicos em todo Brasil lidam com pessoas marcadas até a alma com as feridas do racismo que, na maioria das vezes, não são visíveis e nem faladas.

Eu, como mulher e médica negra, tenho isso sempre em mente. E é importante que a maioria dos médicos brasileiros também tenham. Só considerando todas as questões que não são apenas biológicas, mas também sociais, podemos dar um atendimento digno."

Simon Plestenjak/UOL

Médicos mais pacientes

Às vezes me perguntam como eu consigo tirar tantas informações e histórias dos meus pacientes. Uma colega me apareceu com a resposta:

Júlia, eles só falam tudo com você porque você está disposta a ouvir.

Nós, médicos, precisamos ser mais pacientes. Precisamos ter mais paciência porque trabalhamos com pessoas e os sofrimentos delas. Certa vez atendi uma mulher que me dizia que a vida estava horrível, mas ela estava lidando bem com isso tudo porque tomava um remédio que a acalmava, que a deixava mais leve. Não fazia terapia, porém. Apenas se medicava. Foi então que a encaminhei a um psicólogo.

Não quero dizer aqui que sou contra prescrever remédios para amenizar as dores, muito pelo contrário. Mas acho que a gente precisa desenvolver novos olhares porque a medicina costuma ser muito intervencionista. A gente medicaliza tudo, e de forma muito rápida.

A gente não faz uma reflexão sobre o que os sintomas trazem. Eles são a ponta de um iceberg. E se a gente não tem coragem para entender o que o paciente tem de verdade, de olhar para aquilo de uma forma mais profunda, a gente fica só amenizando e maquiando dores.

Lembro de um paciente que chegou até mim e disse:

Olha, tem muitos meses que estou tentando resumir o que sinto em uma fala muito curta, porque não tenho tempo de falar para os médicos tudo antes da consulta acabar. Quando eu começo a falar, eles já me passam remédios.

Essa pressa que agravou o quadro dele, que durante meses foi negligenciado. Eu apenas o ouvi. E ele me contou de uma dor abdominal e detalhes da vida dele. O resultado foi um diagnóstico de câncer no fígado tão avançado que só coube a ele um tratamento paliativo e uma morte que veio meses depois.

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Saúde de qualidade é responsabilidade do Estado

"Esse caso do senhor com dores abdominais me tocou muito. Resolvi relatá-lo em um texto no Facebook para compartilhar meu incômodo e para expor o que estava acontecendo na saúde do país. Para minha surpresa, recebi mais de 10 mil curtidas. Depois disso, fui ganhando alguma visibilidade sempre que postava esse tipo de relato nas redes.

Cada texto que eu escrevia com histórias de meus pacientes era um grito, uma vontade de que pessoas privilegiadas lessem e entendessem o que é a dor de viver essa realidade no Brasil e como a gente pode, de forma muito simples e solidária, impactar a vida dessas pessoas construindo um país menos desigual. Construindo um país onde as pessoas tenham o mínimo de dignidade até para morrer.

Existe uma um projeto de enfraquecimento visando privatização no Brasil, e isso é muito recorrente no sistema público de saúde. Primeiro falam que não funciona, que não dá certo, que é falido. Depois privatizam porque o privado é muito melhor do que o público.

Só queria que as pessoas entendessem que todos nós vamos precisar de algum atendimento médico em algum momento da nossa vida. A gente vai precisar de um sistema de saúde fortalecido. A gente vai precisar de um SUS que seja capaz de prover a saúde que a gente precisa.

Escrevo minhas histórias porque preciso que as pessoas entendam saúde como um direito e não como uma mercadoria que quem pode compra. Estamos falando de direitos humanos básicos. Toda democracia que deu certo e que foi para a frente no mundo, pensou a saúde como um direito universal. E isso não é papo de hippie, de gente de esquerda, de quem apoia um projeto político x ou y. Saúde de qualidade e de graça não é projeto político, é responsabilidade do Estado.

O que a pessoa que tem convênio faz? Quando tem uma dor de cabeça, ela abre na página dos neurologistas e marca a consulta. O problema disso é que a gente sabe que o médico de família está super capacitado para atender todas as pessoas que sentem dor de cabeça, inclusive diferenciar dentro daquele universo de pessoas quem precisa de fato de um neurologista.

Então quando eu capacito e formo o médico de família adequadamente, quando eu consigo fazer com que essa Unidade Básica de Saúde (UBS) seja capaz de atender essa população, quando eu coloco um número de pacientes adequado para esse médico e ele consegue prover um atendimento de qualidade, eu tiro cem pessoas que queriam ir para o neurologista e encaminho duas ou três que realmente precisam dele."

imon Plestenjak/UOL imon Plestenjak/UOL

Racismo?

"Já fui demitida e perdi oportunidades de empregos por pensar assim. Também já senti pressão, e com ela a necessidade cruel de tentar ser muito melhor do que o resto, para não deixar dúvidas sobre minhas capacidades. Talvez por ser mulher negra em um ambiente onde a maioria esmagadora é composta por homens brancos, e por acreditar que é possível exercer medicina de uma forma mais humana.

Ninguém é bom em tudo nessa vida. Nenhum médico é. Já cansei de falar com pacientes meus: 'Olha, eu estou em dúvida do seu diagnóstico. Não estou certa disso daqui, espero um minutinho que eu vou checar se essa medicação é a mais adequada'.

Parece que a gente esquece que todo médico, assim como todo paciente, é humano. Erra. Fica inseguro. Achamos que somos fundamentais o tempo todo, que estamos em um pedestal.

Somos treinados a medicalizar — seja com remédio ou com a nossa presença. Isso nos traz uma reflexão sobre o quanto a gente precisa baixar a bola, entender que somos só mais um fator para ajudar dentro daquela comunidade tão rica e cheia de complexidades."

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