Luta no novo faroeste

À frente da Amazon Watch, Leila Salazar-López ajuda a pressionar multinacionais para salvar a floresta

Fernanda Ezabella Colaboração para Ecoa, de Los Angeles (EUA) Divulgação

Em sua primeira viagem à Amazônia, Leila Salazar-López era uma estudante americana interessada em botânica, nos anos 1990. Mas o choque que ela levou ao se deparar com um vazamento monstruoso de petróleo na floresta equatoriana a fez mudar de profissão. Hoje, ela é uma das ambientalistas mais ativas na luta pelos direitos dos povos indígenas amazônicos, diretamente da Califórnia, onde fica a sede da Amazon Watch.

Leila é diretora-executiva da organização não-governamental, fundada em 1996 e conhecida por pressionar grandes multinacionais e instituições financeiras com presença na Amazônia, além de produzir campanhas de direitos humanos e recrutar celebridades para a causa.

Aliada a grupos locais e internacionais, a Amazon Watch ajudou a levantar US$ 2,5 milhões (R$ 14 mi) para o Fundo Emergencial da Amazônia, criado em abril por conta da pandemia. A maioria das doações vem de indivíduos e firmas nos EUA e governos europeus. A ONG também arrecadou outros US$ 2 milhões desde os incêndios de 2019.

Ambientalista há mais de 20 anos, Leila já visitou a Amazônia cerca de 25 vezes através de trabalhos para a Rainforest Action Network, Global Exchange, Green Corps e Amazon Watch. De família de origem mexicana, ela nasceu na Califórnia e hoje mora em San Francisco com o marido e duas filhas. Na tela do Zoom, aparece numa foto ao lado do líder Raoni, tirada numa reunião em Manaus sobre a construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte, nos anos 2000.

Na entrevista a seguir, Leila fala a Ecoa sobre as conexões dos EUA com a Amazônia, incluindo os impactos das eleições americanas deste ano. Também comenta as políticas do presidente Jair Bolsonaro que transformaram a floresta num "faroeste", as formas de combate ao desmatamento e as percepções do estrangeiro com a maior floresta tropical do mundo. "Os incêndios de 2019 acenderam um movimento global", diz. "Nunca tivemos tantos recursos."

Esta reportagem faz parte da série especial que celebra o Dia da Amazônia, comemorado em 5 de setembro. Ao longo da semana, Ecoa mostrará alternativas para a exploração sustentável de um dos principais ativos nacionais e reunirá especialistas para discutir como garantir não apenas sua conservação, mas caminhos para a regeneração do desmatamento constante que a região vem enfrentando.

Bruno Kelly/Amazônia Real Bruno Kelly/Amazônia Real

Ecoa - O Dia da Amazônia está chegando. Temos algo para comemorar?

Leila Salazar-López - Apesar das ameaças e ataques à Amazônia, aos seus povos e, de quebra, ao clima global, é encorajador que tantas pessoas ao redor do mundo estejam cientes e mostrando solidariedade. Um ano atrás, na época daqueles incêndios, o fogo acendeu também um movimento global. Recentemente, há algumas batalhas legais encorajadoras por conta da pressão internacional, como a determinação [pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em julho] da retirada de garimpeiros do território dos Yanomami. Há 20 mil garimpeiros ilegais por lá. Em tempos de Covid, é o último lugar que deveria haver extração, ainda mais considerando que a primeira morte por Covid-19 em povos indígenas foi um adolescente Yanomami. Mas, infelizmente, os garimpeiros ainda não saíram, é preciso aplicar a determinação.

Como surgiu a ideia do Fundo de Emergência da Amazônia?

A Amazônia passa por múltiplas crises, e a Covid tornou tudo ainda pior. Por isso é uma emergência. Nos unimos em abril porque sabíamos que a ameaça da pandemia atingir comunidades indígenas era séria demais. Mesmo se o governo fizesse algo com intenção de proteger, sabíamos que seria ruim. Organizações por toda a Amazônia pediram apoio internacional e nós nos unimos a elas. Conseguimos apoio de outras 200 organizações. O fundo é específico para ajuda emergencial. Muitas famílias não têm recursos para se informar, material médico, máscaras, nem mesmo comida. Embora US$ 2,5 milhões sejam significativos, muito mais é necessário. Os casos de Covid não estão se estabilizando nestas populações.

Qual impacto as eleições americanas deste ano podem ter na Amazônia?

A política dos democratas é uma das bases da política ambiental. O atual governo, tanto nos EUA quanto no Brasil, nega a ciência. Não é uma coincidência que são os países com mais casos e mortes de Covid. Então uma administração democrata mudaria a política para ser baseada na ciência. Isso seria grandioso. Kamala Harris [candidata a vice-presidente de Joe Biden] apoia o Green New Deal [pacote proposto de legislação para combater mudança climática e desigualdade econômica] e quer iniciativas para manter combustíveis fósseis no solo e uma diminuição gerenciada do seu uso. Isso tudo é muito importante para a direção que nosso país e o mundo precisam seguir. A economia que construiu este país está morrendo e precisa ser substituída por energia renovável, justiça climática e empregos verdes. É o oposto da administração Trump.

Mauro Pimentel/AFP Mauro Pimentel/AFP

Quais são as relações entre EUA e Amazônia para entendermos um possível impacto das eleições americanas?

O mercado internacional tem conexões diretas com a Amazônia. A maior parte do petróleo exportado da Amazônia vem parar na costa oeste dos EUA, em El Segundo [Los Angeles] e nas refinarias aqui da Bay Area. Outro exemplo é o agronegócio. As commodities que estão se expandindo pela Amazônia são financiadas e negociadas por empresas como Cargill, que está nos EUA. Elas são cúmplices da destruição. Com um governo que acredita na crise do clima, acho que poderia haver mais pressão sobre empresas como a BlackRock, um dos maiores investidores financeiros na destruição do clima, incluindo agronegócio e combustíveis fósseis.

Qual seria uma política dos sonhos para um novo governo?

O primeiro passo seria voltar ao Acordo de Paris e começar a implementá-lo. O elefante na sala em torno do acordo climático é a extração. Precisamos manter os combustíveis fósseis no solo. Queremos que Joe Biden e Kamala Harris, se eleitos, sejam líderes no debate global sobre o clima. O Green New Deal pode ter impactos reverberantes para a Amazônia e seus povos. É sobre uma nova economia. Precisamos de um novo acordo para a Amazônia também, um compromisso global. Em 2019, logo após os incêndios, alguns líderes globais assumiram compromissos para investir e proteger, mas infelizmente a Covid adiou os planos.

A próxima eleição presidencial no Brasil é apenas em 2022. Qual o tamanho do prejuízo que podemos ter com o governo brasileiro atual?

Só no último ano e meio, desde que Bolsonaro chegou ao poder, vimos os piores índices de desmatamento e incêndio em décadas e um ataque total aos direitos indígenas. Cientistas globais e brasileiros dizem que não estamos a cinco ou dez anos do ponto de colapso ecológico na Amazônia. O momento é agora. Há 17% de desmatamento em toda a Bacia Amazônica. O ponto de colapso ecológico é entre 20% e 25% de desmatamento. Ainda assim, há esperança porque existem os territórios indígenas, e esses são os mais bem protegidos. Os povos indígenas estão decididos a se defender, não vão desistir. Eles são a esperança. É a razão pela qual os apoiamos. E mesmo que as árvores continuem caindo e o fogo queimando, a natureza é resiliente e suas árvores crescerão de novo. Mas haverá muito mais trabalho a ser feito.

Bruno Kelly/Amazônia Real Bruno Kelly/Amazônia Real

Por conta da Amazônia, o Brasil enfrenta possível perda de investimentos estrangeiros, boicote a produtos do agronegócio e agora dificuldade em aprovar o acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Consegue imaginar o governo brasileiro recuando?

O governo brasileiro de Bolsonaro acredita que o desenvolvimento do país está na destruição da Amazônia. A única maneira de mudar esse pensamento é quando as forças de mercado mudarem. Como o banco Rabobank, da Holanda, que está mudando suas políticas em relação aos investimentos na Amazônia. Nenhuma empresa na Amazônia pode continuar a expandir se não tiver financiamento. Então temos que pressionar os financiadores. Muitos já têm políticas de direitos humanos e climáticas que estão sendo violadas. Estamos pressionando a BlackRock em particular e outras firmas, como JP Morgan Chase e JBS, que estão destruindo diretamente ou investindo na destruição. Também precisamos ampliar as vozes da Amazônia, os povos têm soluções de como gerenciar florestas e eles também precisam de investimento.

A agroindústria pode funcionar como aliada na proteção da Amazônia?

Em meados dos anos 2000, houve uma conversão massiva de florestas em fazendas, no cerrado em particular, no Mato Grosso. Milhares de hectares foram convertidos em plantações de soja e pasto de gado, uma expansão enorme do agronegócio que subiu até a Amazônia. Na época, muitos grupos se reuniram, como organizações ambientais e de direitos humanos, para formar uma moratória da soja com a indústria. Fizeram acordos de uso de terra de florestas e fazendas, acordos de exportação. E, segundo o Greenpeace, houve esforços significativos para se trabalhar em conjunto com a indústria e muitos ganhos e mudanças positivas. Digo isso para ilustrar que existe como colaborar e garantir a sustentabilidade. Porém, o que temos agora é um "liberou geral". Não há nenhum padrão que a indústria esteja seguindo. Você pode ir e queimar e tirar as pessoas que estão resistindo e ser pago por isso. Virou um faroeste. E incentivado pelo presidente e seu ministro do Meio Ambiente. Não era assim quando a Marina Silva era ministra do Meio Ambiente. Havia mais reservas florestais, mais proteções, leis ambientais que funcionavam e eram respeitadas no mundo. E isso tudo foi completamente destruído.

Como você disse, o governo brasileiro acredita que o desenvolvimento do país está na Amazônia, e o presidente vê os povos indígenas como um atraso. Com tantos avanços tecnológicos, não existe uma forma sustentável de explorar minérios a Amazônia?

Isso é um oximoro. Olhando para o legado extremamente tóxico da extração de petróleo e minerais na Amazônia, não existe uma maneira sustentável de fazer isso. Nunca foi comprovado. Veja o legado da perfuração de petróleo na Amazônia peruana e equatoriana. É devastador. Mesmo quando afirmam que possuem a melhor tecnologia, veja o que aconteceu em abril: o pior derramamento de petróleo em uma década no Equador. Quando falamos do ecossistema terrestre mais valioso do planeta, simplesmente não vale a pena, não é possível. Com mineração também. Veja o que aconteceu no Brasil com o rompimento das barragens [Brumadinho em 2019, Mariana em 2015] e todo o lixo tóxico da mineração. Ainda não provaram que podem fazer melhor e ninguém ainda foi responsabilizado.

Bruno Kelly/Amazônia Real Bruno Kelly/Amazônia Real

Como funciona o papel da Amazônia no sistema climático global?

Todo mundo sabe que a Amazônia é a maior floresta tropical do mundo, com o maior rio do planeta. Mas poucos sabem que a acima da Amazônia existem os chamados rios voadores, criados por milhões de árvores que levantam as nuvens de chuva e irrigam não só a Amazônia como também a Argentina, o sul do Brasil e até mesmo a Califórnia e as Montanhas Rochosas. Esses rios voadores, com todas essas queimadas, estão fora de curso. E então você começa a ver seca, tempestades intensas, inundações históricas.

Então é possível traçar paralelos entre os incêndios na Califórnia hoje, causados pelas tempestades secas [muitos relâmpagos e sem chuvas], e os incêndios que temos no Brasil, provocados pelo homem?

Infelizmente estamos enfrentando incêndios sem precedentes da Califórnia à Amazônia. Este é o terceiro ano no norte da Califórnia que temos esses tipos de incêndios florestais que parecem apocalípticos, mas são incêndios florestais causados por impactos climáticos. Já na Amazônia, são incêndios intencionais. São literalmente dias de fogo anunciados pelo governo, quando as pessoas saem para queimar floresta para abrir caminho para o agronegócio. No ano passado, foram os piores em 10 anos, mais de 70 mil quilômetros quadrados queimados. É escandaloso. Os incêndios são em diversos ecossistemas no Brasil, mas, na Amazônia, dobraram neste ano. E com a Covid-19, é como jogar gasolina. É uma doença que ataca o sistema respiratório, e os incêndios pioram muito a qualidade do ar. É uma situação muito perturbadora e assustadora.

Como a Amazon Watch evoluiu desde sua criação em 1996?

A Amazon Watch começou meio que como uma banda de uma mulher só, nossa fundadora. Nos primeiros anos, ela se focou nos impactos causados por empresas dos EUA, multinacionais e instituições financeiras, como o BID, Banco Mundial e FMI. Era um monitoramento. Nossa primeira campanha em solidariedade aos povos indígenas veio no final dos anos 1990 para tirar a Occidental Petroleum das terras dos U'wa, na Colômbia. Com o projeto de construção de Belo Monte, começamos a expandir no Brasil. No começo da Amazon Watch, a maioria das empresas na Amazônia eram americanas e muitas saíram com a pressão. Depois, vieram as empresas estatais, como Petroecuador, Petroperu, BNDES e mesmo estatais chinesas. Isso é um desafio para expor porque não são empresas públicas com reuniões de acionistas que podemos acompanhar. Então é preciso criar estratégias diferentes.

Como a comunidade internacional pode ajudar sem criar conflitos com a soberania dos países da Amazônia?

Isso sempre foi uma questão. Lembro das ameaças nos anos 2000 quando estávamos trabalhando para impedir Belo Monte e havia denúncias de que nós, as ONGs, fazíamos parte dos planos do governo dos EUA para assumir o controle da Amazônia. Era uma grande novidade para mim! Nunca fomos afiliados ao governo, de maneira nenhuma. Mas a Amazônia é o orgulho desses países, é verdade. E isso vem com uma enorme responsabilidade de proteger e gerenciar essas florestas e rios para seus próprios habitantes e para o mundo. Porque a Amazônia é um ecossistema importante para o planeta inteiro, impulsiona nosso sistema climático global. Então, quando o maior país da Amazônia, o Brasil, se retira do acordo climático global, é uma irresponsabilidade e eles vão ter que ouvir da gente, sim.

Só nas duas primeiras semanas de agosto deste ano, eram mais de 15 mil focos de incêndio em toda a Amazônia legal, incluindo 868 em 30 territórios indígenas.

Leila Salazar-López

Arquivo pessoal

Como mudou a percepção do mundo sobre a Amazônia ao longo dos anos?

Não é que os problemas enfrentados pela Amazônia 20 anos atrás não fossem tão vitais, mas parecia que ninguém estava prestando tanta atenção. Não era como agora. Obviamente os tempos mudaram e estamos numa encruzilhada. Hoje, nunca tivemos tanta capacidade e recursos. E acho que é o mesmo para muitos de nossos parceiros e aliados. Entre 2010 e 2019, tínhamos uma dúzia de pessoas. Ao longo do último ano, com toda a atenção global voltada para a Amazônia, conseguimos expandir e contratar mais ativistas, advogados e jornalistas. Hoje somos 21 pessoas. Podemos também obter informações muito mais facilmente, como dados de desmatamento em tempo real e não depois de um mês. Com toda essa tecnologia, não dá mais para se esconder como se fazia antigamente. Você sabe quem está causando, e o governo sabe exatamente o que está fazendo. Tirar a terra e não dar assistência à saúde no meio de uma pandemia, é um genocídio.

Você visitou a Amazônia pela primeira vez em 1995 como estudante para aprender sobre etnobotânica. O que aconteceu que você acabou virando ativista?

Vi um vazamento de petróleo! Fui ao Equador quando estava na faculdade para ser voluntária numa reserva de floresta tropical. Havia biólogos por lá, mas quem realmente conhecia as plantas eram os índios, que aprenderam com suas famílias. Eles conheciam milhares de plantas, sabiam quais eram usadas para medicamentos, alimentos. Isso me despertou para sua importância na proteção das florestas. É a sua casa, seu conhecimento. Depois de aprender tanto com eles, quando estava indo embora, passei por um vazamento de óleo. Era o Oleoduto Transecuatoriano que jorrava sem previsão de parar. Foi um momento chocante. Foi quando aprendi sobre Texaco, hoje Chevron, que havia deixado um legado de bilhões de galões de lixo tóxico, deliberadamente. Isso gerou uma crise de saúde pública que afeta até hoje comunidades indígenas e ribeirinhas.

Existe uma troca entre povos indígenas nos EUA e Brasil?

As ameaças aos povos indígenas na América do Sul são as mesmas na América do Norte. Nos últimos dez anos, vi muitos esforços na sincronicidade e comunicação entre os povos. No Alasca, lutam para proteger o Arctic National Wildlife Refuge contra exploração de petróleo, assim como em Oklahoma não querem mais "fracking" [técnica usada para extrair gás e óleo]. Na Califórnia, as pessoas não querem expansão das refinarias, para onde vem parar o petróleo da Amazônia. Nas conferências de clima, sempre há grupos indígenas do mundo todo com demandas muito simples: proteger e pedir justiça climática às pessoas mais afetadas. Nós organizamos também encontros. Depois de tantos anos frequentando as mesmas conferências e marchas, muitas dessas comunidades se uniram.

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