Poeta da periferia

Sérgio Vaz: 'Pensava: quem vai me ler, caralho? 90% das coisas eram escritas por brancos'

Lucas Veloso Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Léu Britto/UOL

Em uma terça-feira de 2020, um casal chegou com o filho no Sarau da Cooperifa, que acontece no Bar do Zé Batidão, zona sul de São Paulo. Ao vê-los, Sérgio Vaz, 58, criador do evento, anunciou a presença do bebê no microfone, contando ser a primeira vez do recém-nascido ali. Prometeu que entregaria um livro de literatura a ele e assim fez: Deu o livro e desejou saúde e paz ao menino.

Apelidado de 'padre' depois do episódio, Vaz também é chamado de sonhador, produtor cultural, lutador, agitador, poeta, escritor, ativista, artista, cronista, articulador cultural, divulgador, educador. A lista é grande.

E todos eles cabem na biografia após muitos anos de dedicação e atuação direta com a literatura periférica — termo que também ajudou a difundir em livros, estudos acadêmicos e nas ruas das periferias por onde já andou.

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Um mundo de problemas

Nascido em Ladainha, interior do estado de Minas Gerais, Sérgio Vaz chegou com a família a Taboão da Serra, cidade na Grande São Paulo, com 7 anos. "Meu pai arrumou emprego aqui. Veio para cá. Cresci ali na rua e queria ser jogador de futebol, né? Era a única diversão que a gente tinha. Região violenta", lembra.

Começou a ler influenciado pelo pai, que tinha o hábito. Um dia, enquanto Vaz folheava os livros dos adultos, o pai percebeu o interesse do filho e tratou de comprar obras infantis. A partir daí, leitura e futebol passaram a ser a paixão do menino.

"A leitura me resgatou. Imagina um jovem gostar de livros numa periferia dos anos 1970 e 1980, que não tinha asfalto. Você pobre, tá ligado? As coisas são sempre difíceis e você tem o hábito da leitura. Me senti um cara muito estranho".

O livro "Dom Quixote", do espanhol Miguel de Cervantes, foi um dos primeiros lidos por Vaz. Ao terminar a leitura, percebeu que ele não tinha problema algum. Na verdade, se viu como um sonhador. "Quem tem problema é o mundo. Se o mundo tem problema não é problema meu, não é?", completa.

E, apesar de gostar dos livros, na época não curtia muito de poesia por achar que era "coisa de bacana", com palavras muito difíceis, mas a coisa começou a mudar depois que passou a frequentar os bailes black da região.

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Quem vai me ler, caralho?

Em 1983, foi convocado a servir o Exército Brasileiro. Junto com as roupas e demais pertences, levou uma fita da cantora Simone com uma gravação de "Para não dizer que não falei das flores", música que se tornou hino de movimentos sociais que lutavam contra a ditadura militar brasileira — mas isso ainda não era algo que Sérgio Vaz tinha conhecimento.

Certo dia por lá, enquanto ouvia e cantava junto à voz de Simone, um sargento entrou aos gritos chamando-o de comunista. Aquilo despertou o interesse de Vaz pelas metáforas e pela poesia por trás das letras.

Mas, ainda assim, Vaz achava que só intelectuais podiam escrever poemas. Sua visão começou a mudar quando leu "Quarto de despejo", de Carolina Maria de Jesus pela primeira vez.

Mulher negra, favelada. Fez um livro foda falando do jeito dela. Escreveu para nós. Ela não escreveu para classe média, tá ligado? E falei: mano, vou escrever para quebrada também. Vou falar da negritude. Dos problemas que afetam a favela. Quero escrever do jeito que a quebrada fala, dos problemas que ela conhece mesmo com gente falando que isso não virava."

Sérgio Vaz, escritor

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Para fazer o corre virar, Vaz se apresentava em shows, porta de bar e teatros

Uma das coisas que nunca saiu da cabeça de Vaz é que ele queria fortalecer a poesia e também desejava ser lido pela periferia, por pessoas que passavam os mesmos 'perrengues' que ele. Com isso na cabeça, montava barraquinha em todos os eventos que ia.

Foi fazer seu corre. Sempre estava na porta de barzinhos, teatros... E vez ou outra até achava um patrocinador que o ajudava. Mas os desafios de ser um escritor "fora do padrão" ainda pesavam.

Ele conta que, naquela época, associar pessoas negras a livros era raro, já que as letras circulavam entre brancos. "Pensava: quem vai me ler, caralho? Mais de 90% das coisas eram escritas por brancos", diz.

Escritores e leitores tinham a mesma cor, e como havia raros espaços de leitura nos subúrbios, acessar as obras era um desafio aos mais pobres, aos negros. E isso o incomodava a ponto de o fazer pensar em possibilidades.

Obrigado, Hip Hop

Próximo dos rolês de hip hop, passou a ir nos shows e eventos e pedia para recitar poesia em cima dos palcos. Na maior parte das vezes era atendido e conseguia apresentar suas obras para as plateias.

Em toda a favela que tinha campo, quermesse ou qualquer tipo de evento, ele começou a declamar suas poesias, além de entregar de brinde para quem o ouvia alguns marcadores de página e cartões postais com trechos dos escritos.

Sem cachê, mas com oportunidade de aparecer e divulgar o trampo, depois de alguns meses começou a ser chamado para se apresentar junto a MCs e grupos de rap.

Nas andanças do poeta, certa vez foi a um rolê dentro de uma favela onde tinha um palco improvisado e lâmpada que pouco iluminava. Em resumo, "um negócio zoado", nas palavras dele.

Se por um lado aquilo o deixou pensativo sobre a precariedade da situação, isso também o fez pensar que era isso mesmo, que tinha que fazer com o que tinha em vez de ficar listando o que não tinha em mãos. Essa foi a primeira sacada pessoal para criar o que hoje todos chamam de Cooperifa, a Cooperativa Cultural da Periferia.

Agradeço ao Hip Hop. Gratidão eterna, porque, além do grito de independência para a quebrada, me trouxe essa visão. Foi o movimento que me fez pensar na Cooperifa e no 'vamos fazer'. Não vai ser do jeito que a gente quer, mas tem que ser feito. Reclamar como sempre e agir como nunca, né?

Sérgio Vaz, escritor

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O poeta não está morto

Escrevendo a milhão, mas sem grana para bancar seu livro, Vaz passou a ir em alguns eventos onde conseguisse apoio. Uma das vezes foi na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.

Lá, a equipe da Revista Raça, veículo criado em 1996 para falar de questões raciais a partir da ótica das pessoas negras, o acompanhou no morro para escrever sobre ele. A matéria ganhou o título de "Poeta da Periferia". E o nome pegou. Mas não sem causar dúvidas e estranheza.

O escritor ainda lembra do dia que foi chamado para falar em uma escola e um dos alunos, depois de ouvir que estava na frente de um poeta, perguntou ao professor: "como ele pode ser poeta se todo poeta já morreu?".

A questão da criança intrigou Vaz. "Aquilo me marcou profundamente. Será que vou ter que morrer, mano?", pensou na época. Ali, ele conta, a ficha caiu: a escola não falava dele ou de outros escritores negros e de quebrada. Livros e bibliotecas também eram raridade pelas comunidades mais pobres, mesma coisa com atividades culturais.

A pergunta do menino ainda ecoava em sua cabeça, junto com a consciência de que os jovens estavam crescendo sem acesso a cultura feita por pessoas como eles. Vaz, então, decidiu que faria algo sobre.

"Se eles não me conhecem aqui é culpa minha. Foi aí que comecei a fazer o projeto que chama 'Poesia Contra a Violência', indo em escolas públicas falar de literatura e poesia". Trabalho que ele faz há mais de duas décadas.

Em 2001, para alimentar a fome de palavras que tinha, Vaz criou o Sarau da Cooperifa, junto a Marcos Pezão (1951-2019).

Logo nas primeiras edições, o encontro de poesia começou a atrair interessados nas letras. A fama do bar que reunia poetas passou a aumentar e a circular de boca em boca. São 21 anos assim, toda terça-feira à noite, com o espaço sempre abarrotado de gente.

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Inspirado na Semana de 22, Vaz pensou em criar um evento de literatura periférica

Semana de 22 dos pretos

Dentro das escolas, andando pela periferia e trocando ideias com as pessoas que curtiam manifestações artísticas e culturais, Vaz ficou sabendo da Semana de Arte Moderna, em 1922.

"Os caras fizeram uma coisa de boy, não deram moral para preto, mas fizeram", pensou, depois de ler um texto sobre o evento. Dias depois, encontrou uma fábrica abandonada e sugeriu ao dono que cedesse para encontros.

Autorizado a usar um espaço que, na cabeça dele, dava para fazer um teatro, passou a fazer eventos regulares por lá com personalidades das periferias. Assim foi o começo da Mostra Cooperifa, com a primeira edição em 2007.

Nas edições anteriores chegou reuniu grupos de capoeira, escritores que tinham livros a lançar, além de alguns artistas, entre eles Kobra, hoje mundialmente conhecido no grafite.

Neste domingo (13), encerra a 13ª edição do evento, que também celebrou os 21 anos de atividades poéticas na periferia da zona sul de São Paulo. Desde 5 de novembro, espalhada em escolas, centros culturais, CEUs e no Sesc Campo Limpo, a programação reuniu shows de artistas como Fabiana Cozza, Rael e Ana Canãs, além de oficinas com rappers, bate papos e debates com intelectuais negros, como o advogado e filósofo Silvio Almeida e a professora Rosane Borges.

"Em 22, eles regurgitaram, de forma brasileira, o que chegou de fora. Aqui a gente queria regurgitar o que vem do centro de forma periférica", resume Vaz.

Léu Britto/UOL Há 31 anos, o Sarau da Cooperifa acontece toda noite de terça-feira, na zona sul de SP

Há 31 anos, o Sarau da Cooperifa acontece toda noite de terça-feira, na zona sul de SP

Acendendo velas

"O [escritor] João Cabral de Melo Neto escreveu que quando você acende uma vela, a primeira pessoa que se ilumina é você. Acho que eu acendi a minha vela", comenta o poeta.

Hoje, olhando a periferia, ele a compara com várias velas acesas, onde todo mundo se vê e, com isso, tudo fica iluminado. Anos depois das primeiras caminhadas para vender suas poesias, Vaz diz que fica orgulhoso do que enxerga.

"Agora nossas referências estão aqui, na periferia", diz ele, antes de emendar iniciativas e pessoas que vem à mente quando fala em revolução a partir das periferias.

"Tem os Cadernos Negros, Panelafro, a Naruna [Costa] arrebentando, o Douglas Belchior, as candidaturas de mulheres trans, o Nós, Mulheres da Periferia, o Sidney Santiago lançando filmes com os Crespos, o Jé Oliveira, o Salloma Salomão, Renato Cândido na política", cita. "Falei ontem com o [advogado] Silvio de Almeida, que pode ser nosso ministro, entendeu? É um caldo muito louco".

Sem esquecer a ancestralidade, Vaz também diz que é importante falar da juventude negra, que hoje ele vê com orgulho pautando questões na sociedade que nunca antes foram defendidas.

"Fico feliz. Isso é fruto do movimento negro na escadaria do Teatro Municipal, passou pelo hip hop, passa pelo Sarau do Binho, passa pelo Elo da Corrente e está aí hoje resgatando pessoas importantes, como Elza Soares e Conceição Evaristo".

Com um cigarro na mão, rodeado de livros, com palavreado certo para dar respostas e enaltecer o que dá orgulho no coração, Vaz parece mesmo um padre que, do seu púlpito, vê o resultado do trabalho paroquial e abençoa as iniciativas que ajudou a criar e as vidas que salvou com o poder da palavra.

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