O ambientalista ousado

Aos 7, ele teve uma 'visão divina'; 71 anos depois ainda segue o chamado: 'Minha bronca é destruir a natureza'

Lucas Veloso colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Fernando Moraes/UOL

Às 8h de um domingo, Seu Quintino, 78, abre as portas de uma casa no Jardim Damasceno, um dos morros da Brasilândia, periferia da zona norte de São Paulo. A porta do local, inclusive, traz os dizeres "salve a natureza" e o alerta: "Não enterre o lixo embaixo da terra. É crime ambiental". Ali funciona a sede improvisada da Associação Movimento Ousadia Popular, que fundou nos anos 2000 para lutar pela preservação da região.

Aquele dia (como todos os outros na vida dele) a programação seria extensa. Ainda faria uma das caminhadas ambientais que ficou famosa por ali, uma roda de conversa sobre demandas locais, almoço com lideranças do bairro e visita aos parques do entorno para verificar a situação de cada um. Seu Quintino não tinha previsão de quando poderia parar para descansar.

Dentro da sede do movimento, uma faixa na parede diz que a comunidade do Damasceno está em defesa do SUS (Sistema Único de Saúde) e lutando pela criação da UBS (Unidade Básica de Saúde) do bairro. Divide espaço com símbolos do Corinthians, quadros pintados pela neta dele, os presentes que ganhou durante a vida, uma imagem enquadrada do fotógrafo Sebastião Salgado, uma bandeira do Brasil e sementes de plantas que ele cultiva.

Respeitado na região, ele é visto pelos vizinhos como pioneiro, já que foi um dos primeiros a chegar ali falando de um tal meio ambiente e em defender a natureza. Se tornou referência ambiental na favela.

Sentado em uma cadeira e vestido com uma roupa toda verde - uma de suas marcas -, seu Quintino logo puxa a conversa dizendo que seu interesse pelo meio ambiente começou depois que teve uma "visão divina" quando ainda era muito menino.

Fernando Moraes/UOL
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A visão que mudou tudo

Quintino Viana nasceu em Derribadinha, distrito do município brasileiro de Governador Valadares, no interior do estado de Minas Gerais. Logo muito novo, uma tragédia caiu sobre a família: o pai morreu quando ele tinha apenas 2 meses de vida.

Viúva, a mãe criou o filho sozinha até os dois anos. Depois disso, casou novamente. Com 7 anos de idade, no entanto, Quintino colocou na cabeça a ideia de ir para o mundo, sair de casa, queria trabalhar.

"Não vou depender mais da minha mãe", pensava. A decisão deixou a mãe triste, pedindo para o filho ficar. Não adiantou. Quintino estava certo do que deveria fazer.

Juntou as poucas coisas e colocou em uma sacola. "Minhas trouxinhas de roupa", comenta. Com tudo debaixo dos braços, se despediu da mãe e foi ganhar o mundo, sem endereço, dinheiro para nada e sem conhecer ninguém fora daquele interior. No meio do caminho só via mato e a estrada de terra. Ali era uma região sob os cuidados indígenas, completamente preservada, sem casas ou construções.

Em determinado trecho da jornada, seu Quintino conta que ouviu uma voz, que dizia: "Menino, olha para cima, pro céu". Mas não tinha ninguém ali com ele. Confuso, ouviu ainda mais três vezes a mesma ordem - até que obedeceu.

"Vi uma pedra gigante, uma floresta linda, uma cachoeira de água muito bonita, além de plantas e beija-flores", relata. A voz do além também avisou que ele deveria seguir o caminho que estava trilhando e que ele seria muito feliz se seguisse adiante. Para ele, foi uma visão divina, um recado enviado dos céus que chamava-o para uma grande luta em defesa do meio ambiente.

''Aquilo foi Deus. Era muito bonito! E aconteceu o que a voz disse: fui muito feliz".

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A caminhada, então, seguiu. Depois de andar algumas horas, encontrou uma fazenda, onde entrou à procura de emprego. Olhando o menino, o responsável pela área disse que ele não aguentaria o trabalho, mas seu Quintino retrucou dizendo que sabia andar a cavalo, podia mexer com o gado e era muito corajoso.

Nos anos que se seguiram, então, a rotina dele foi lidar com bezerros, amansar burro bravo, recolher as vacas para tirar leite e outras funções típicas de quem lida com o gado. Saiu de lá com 11 anos para tentar chegar no centro de Governador Valadares. Queria estudar.

Dali em diante, a vida seria um longo exercício de 'sevirologia', precisou dar seus pulos: trabalhou em obras, em confeitarias e restaurantes, coletava areia para vender... Até que, aos 18 anos, era hora de servir o Exército - mas só por 11 meses, depois desistiu da carreira de militar e migrou para o Rio de Janeiro.

Na nova cidade, o primeiro emprego foi na construção da ponte Rio-Niterói, ali foi eletricista, encanador e pedreiro. Outras obras famosas também tiveram a mão dele, como as barragens de Paulo Afonso (BA) e Itaipu, no Rio Paraná, trecho de fronteira entre o Brasil e o Paraguai.

No ano de 1972, chegou a São Paulo, na região da Brasilândia, e logo foi trabalhar na linha azul do metrô, a primeira a ser construída na cidade. Na época, atuou no trecho entre Santana e Jabaquara. Com o fim da obra, foi transferido para cuidar das caixas d'água da Serra da Cantareira, local próximo de onde morava.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

O movimento é... Ousado

Aos poucos, conforme se habituava ao novo local, seu Quintino criou uma ligação forte com movimentos por terra, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), em 2000. Influenciado pela luta por moradia, ele resolveu unir moradores da região para criar uma organização com o objetivo de preservar a área verde existente no Jardim Damasceno, e que há décadas sofre por abandono do poder público. Nasceu, então, a Associação Movimento Ousadia Popular.

O movimento é para defender as coisas certas. É ousado porque eu sou assim. Não mando recado, se tenho que falar, vou falar".

Com o tempo, seu Quintino foi percebendo que os problemas ambientais que via (e ainda vê) na cidade, sobretudo nas periferias, atingem principalmente as pessoas negras e mais pobres.

A indignação por causa disso se espalhava pela comunidade junto às ações que ele promovia para tentar chamar atenção para os problemas enquanto buscava as soluções.

"A atuação dele é defender o meio ambiente lutando pela recuperação das áreas degradadas, elaboração de projetos e políticas públicas em prol a preservação da natureza", conta Isabel Cristina Gonçalves, 62.

Moradora da Brasilândia e analista de educação física, ela conheceu Quintino nas atividades do CEU Paz, também na Brasilândia, onde ele fazia palestras sobre o meio ambiente, plantio de árvores e trilhas com os alunos na mata da Cantareira.

Para Isabel, Quintino é um guerreiro e, por isso, ela se sente orgulhosa de ser conhecida como a professora que o auxilia com doações de alimentos e roupas para ajudar as pessoas mais vulneráveis da região. "Ele abraçou, e abraça, essa causa e luta por melhores condições para essa comunidade mesmo não tendo recursos, ajuda todos que o procuram", emenda.

Fernando Moraes/UOL Seu Quintino na sede do movimento Ousadia Popular, da Brasilândia

Seu Quintino na sede do movimento Ousadia Popular, da Brasilândia

Caminhar e ensinar

Um dos trabalhos mais conhecidos em prol da preservação ambiental da Brasilândia que seu Quintino criou, junto ao Movimento Ousadia Popular, foi a caminhada ambiental.

Realizada com frequência, a caminhada é guiada pelo próprio Quintino. Ele reúne grupos de moradores e os leva para passear a pé pelo próprio bairro, sempre lhes ensinando sobre a importância do meio ambiente e o cuidado com a natureza para aquela região e quem mora ali.

Pelo trabalho que realiza há décadas, Quintino é bastante chamado para atividades extracurriculares com os estudantes. ''Faço isso porque acredito muito. Trabalho há anos aqui, e as crianças são aquelas que vão continuar a história daqui'', diz.

Depois de andar com Quintino, alguns moradores do bairro passam a frequentar as reuniões promovidas na sede do movimento, além de se envolverem nas causas promovidas por ele. Nas escolas também há retorno: as falas e as histórias ouvidas nas ruas acabam resultando em trabalhos e atividades escolares quando os alunos voltam às salas de aula.

''Sempre que vejo as crianças nos parques e sabendo das águas fico orgulhoso, além disso, são os que mais sofrem com as tragédias ambientais''

Fernando Moraes/UOL Seu Quintino caminha pelas ruas da Brasilândia com um grupo de moradores para alertar sobre a importância da preservação ambiental

Seu Quintino caminha pelas ruas da Brasilândia com um grupo de moradores para alertar sobre a importância da preservação ambiental

Fernando Moraes/UOL

'Eu chamo na chincha'

Para os moradores do Jardim Damasceno, seu Quintino é pioneiro. "Ele foi uma das primeiras lideranças comunitárias da região a pautar a questão ambiental e de sustentabilidade, sempre muito coerente. Com o passar dos anos, conseguiu levar este tema para todos os espaços, em especial para dentro das escolas".

Quem conta é o líder comunitário Fábio Ivo Aureliano, 51, que acompanha de perto o movimento Ousadia Popular e é amigo de Quintino há 16 anos. Fábio diz que foram inúmeras reuniões e encontros, que aprendeu muito com ele. "Aprendi que, mesmo com poucos recursos financeiros e sem estrutura, é possível se fazer muito pelo planeta e por pessoas vulneráveis", cita.

Desde que teve a visão que o alertou para o cuidado com a natureza, Quintino se dedica a levar a palavra da preservação ambiental para todos os espaços a que tem acesso. E até aos que não tem.

A militância pelo bairro e pelas demandas dos mais pobres é tão grande que Quintino diz que, por dezenas de vezes, já pediu encontro com o secretário da Habitação e também do Meio Ambiente da cidade, mas não foi respondido pela Prefeitura. "Eles estão se escondendo, não querem falar comigo. Sabem que eu sou bocudo, chego lá e chamo na chincha", diz.

Não à toa hoje ele é conselheiro do CADES Brasilândia (Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável), do Instituto Horto Florestal, do Parque Estadual da Cantareira e da Habitação Municipal. Sua rotina diária é dividida entre atender a população que o procura em busca de comida, por exemplo, e reuniões na Subprefeitura regional, além de outros órgãos de governo.

Aqui tinha macaco, até onça na área, muito pássaro... Mas não achamos mais. O Rodoanel veio para estragar parte da floresta. Minha bronca é destruir o meio ambiente. Chega do que eles estão fazendo na Amazônia! Eles estão acabando com tudo lá e aqui.

Seu Quintino, ambientalista

Fernando Moraes/UOL Na caminhada, seu Quintino leva moradores por regiões de mata na Brasilândia

Na caminhada, seu Quintino leva moradores por regiões de mata na Brasilândia

Fernando Moraes/UOL

As tretas de seu Quintino

Entre as brigas que seu Quintino comprou recentemente, a maior é com a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). Segundo ele, a empresa é a responsável pela despoluição dos riachos da região, mas não faz a sua parte, além de não garantir saneamento básico aos moradores da região.

"Tenho demanda com eles para falar dos lugares aqui. Eles têm que tirar a poluição daqui, tanto esgoto e deixar a água correr livre", conclui.

Em resposta ao pedido da reportagem de Ecoa, a Sabesp informou que, em reuniões realizadas com a comunidade e com a participação de Quintino, prestou os devidos esclarecimentos e informou que as obras de saneamento na região estão em fase de licitação para contratação, conforme exigido por lei.

Outra coisa que Quintino cita na conversa foi um processo que o movimento Ousadia Popular recebeu do ex-subprefeito da região Roberto de Godoi Carneiro, que processou a organização pelo trabalho feito pelo coletivo, mas o caso foi indeferido na Justiça.

À reportagem, a Prefeitura de São Paulo disse que, sobre a defesa das águas, a Subprefeitura Freguesia/Brasilândia está em constante diálogo com a Sabesp e a concessionária está ciente das demandas de saneamento no que diz respeito aos córregos da região.

Quando recebeu a reportagem de Ecoa, o dia de Quintino começou cedo. Perto das 9h30, saiu em direção ao centro cultural da região onde se encontraria com o grupo da caminhada ambiental daquele dia. "Aqui, eu falo que luto por todos. Não é só para mim. Não estou aqui amanhã, mas é importante que todos levem a demanda do meio ambiente onde forem. É nisso que eu acredito".

Fernando Moraes/UOL Seu Quintino na caminhada ambiental que realiza aos domingos no Jardim Damasceno

Seu Quintino na caminhada ambiental que realiza aos domingos no Jardim Damasceno

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