Sonho manifesto

Para o neurocientista Sidarta Ribeiro, sabedoria antiga pode ajudar a enfrentar crise climática e desigualdade

Lia Hama Colaboração para Ecoa, em São Paulo Jardiel Carvalho/Folhapress

No beco existencial em que a humanidade se encontra hoje, de crise climática, aprofundamento da desigualdade e risco de guerra nuclear, é preciso resgatar ensinamentos ancestrais que sirvam de bússola moral para lidar com os desafios atuais. É o que propõe o neurocientista Sidarta Ribeiro em seu novo livro "Sonho Manifesto: Dez Exercícios Urgentes de Otimismo Apocalíptico" (Companhia das Letras), no qual compartilha conhecimentos de pajés, xamãs, griôs, mestres budistas, cientistas e historiadores e aponta a importância de se sonhar coletivamente para evitar um futuro sombrio.

Ribeiro destaca que existe hoje uma abundância de recursos sem precedentes na história da humanidade. "O problema atual não é de escassez, mas de má distribuição da abundância. As dez pessoas mais ricas do planeta dobraram sua riqueza nos dois primeiros anos da pandemia enquanto a renda da maioria caiu", afirma o autor dos livros "O Oráculo da Noite" (2019) e "Limiar" (2020).

Aos 51 anos, o professor titular de neurociência e fundador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte falou a Ecoa sobre as saídas para a sobrevivência da nossa espécie no planeta, o impacto da pandemia em nossa saúde mental e a importância do sono para o bem-estar coletivo.

Jardiel Carvalho/Folhapress

Ecoa - O que antigas tradições religiosas e escolas de pensamento têm a nos ensinar para lidar com os desafios contemporâneos?

Sidarta Ribeiro - A maioria fala em amor ao próximo, partilha e comunhão. Elas ensinam que os mais fortes têm que cuidar dos mais fracos e não espoliá-los e pregam que vivamos de maneira simples e frugal, para que todos vivam bem. São ensinamentos básicos, mas que precisam ser resgatados. Não podemos continuar na inércia evolutiva da competição feroz que está nos levando ao abismo existencial e ecológico.

Por que a competição não faz mais sentido hoje?

A competição fazia sentido quando havia escassez. Agora que existe abundância, não dá para termos a competição como o cerne das relações. Se, na época do Genghis Khan [fundador do Império Mongol, no século 13], ele decidisse resolver o problema da fome em seu território, não daria conta porque não havia comida para todos. Hoje existe. Então qual é a questão? Precisamos de uma expansão de consciência que melhore nossos padrões éticos para que os recursos sejam melhor distribuídos e possamos viver de maneira mais sustentável. Se não fizermos isso, vai ser impossível para as futuras gerações administrar o caos que estamos gerando.

Zanone Fraissat/Folhapress Zanone Fraissat/Folhapress

Qual é a saída para um futuro sustentável?

É preciso fazer uma passagem para uma noção de felicidade que não está projetada nas coisas e na acumulação de dinheiro, mas sim no mundo interior. Isso não é novidade e pode ser encontrado em muitas religiões e escolas de pensamento muito antigas. Essa toxicidade do dinheiro e das mercadorias precisa ser vista com clareza. Conheço um monte de gente sofrendo por não ter grana ou por ter menos grana do que acha que merece ou pelas consequências de ter muita grana. Por que as 10 pessoas mais ricas do mundo tiveram a sua riqueza dobrada na pandemia? Porque não partilharam quase nada. Não se trata de demonizá-las já que, se trocar por outra pessoa, ela vai fazer igual. Temos que discutir a doença que faz com que todos sofram, salvo raras exceções.

Como esse sofrimento afeta os mais ricos?

Quem tem 5 bilhões de dólares e sofre porque quer ter mais 1 claramente está doente. Os mais ricos sofrem porque competem, querem ter mais dinheiro, têm medo de levar rasteira, desconfiam de que estão rodeados de gente interesseira e acham que os herdeiros não merecem seus bens. É uma novela infinita e patética, mas que está nos levando perto de algum tipo de extinção. Pode ser uma extinção rápida, tipo uma guerra nuclear, ou coisa pior, à la "Mad Max": uma extinção de longo prazo que vai se arrastando, o planeta vai ficando cada vez mais intoxicado, cheio de microplásticos e substâncias cancerígenas.

É preciso ter escola boa para todo mundo, hospital bom para todo mundo, proteção e regeneração dos ecossistemas. Isso é o que vai fazer uma sociedade de pessoas em bem-estar. O sistema que existe hoje não produz bem-estar para quase ninguém.

Sidarta Ribeiro, neurocientista

Que balanço você faz dos dois anos de pandemia de covid? Como ficou nossa saúde mental após tanto tempo em isolamento social, se comunicando por telas?

Para a maior parte das pessoas, foi bem ruim: houve aumento de depressão, ansiedade, pesadelos e sofrimento psíquico. É um momento de crise e de recrudescimento da fobia social. Muitas pessoas estão com dificuldade de voltar à interação presencial. Mas houve também quem aproveitou para se reconectar com coisas fundamentais e tomou mais consciência do quanto estava entregando de sua energia para esse sistema.

Qual foi o impacto da pandemia no funcionamento dos nossos cérebros?

Os efeitos psicológicos foram melhor mapeados do que os efeitos neurais, que levam mais tempo para serem medidos. Mas sabemos que o cérebro, assim como os músculos, respondem ao uso. Quando você para de ter determinado tipo de atividade, sua habilidade diminui porque os seus circuitos neurais estão se desengajando daquilo. Se tivéssemos permanecido tempo demais sem a possibilidade de interação presencial, isso com certeza teria prejuízos em termos de anatomia funcional. É possível que algum prejuízo tenha ocorrido, mas isso não foi medido.

Jardiel Carvalho/Folhapress Jardiel Carvalho/Folhapress

Seu livro anterior, "O oráculo da noite" (2019), aborda a questão do sono. Qual o papel de uma boa noite de sono para o bem-estar das pessoas?

É enorme. Quem dorme mal vai ter prejuízo de curto, médio e longo prazo. No curto prazo, apresenta dificuldade de lembrar o que sabe, de aprender coisas novas, de fazer relação entre as coisas e, portanto, fica com um déficit cognitivo considerável. Também vai ter um déficit emocional porque o sono é importante para dar uma zerada nas emoções negativas do dia anterior. Se você não dorme bem, acorda irritado.

É uma bola de neve social que as pessoas durmam mal porque vira um mal-estar generalizado. No médio prazo, tem risco de depressão, ansiedade e déficit de atenção, além de diabetes, doenças cardiovasculares e obesidade. No longo prazo, tem risco aumentado de mal de Alzheimer porque é durante o sono que a gente limpa as toxinas acumuladas na vigília, como a proteína beta-amiloide, que está por trás da doença.

E qual é a importância do sonho para o bem-estar coletivo?

Quando você está sem conexão com seus sonhos, está sem conexão com seus desejos, medos e desafios que tem pela frente, ou seja, está sem insights sobre seu próprio caminho. Os sonhos têm a ver com manter um equilíbrio dentro da comunidade, mas as pessoas não costumam compartilhá-los com as outras. Isso faz com que todos se sintam isolados. É urgente nos reconectarmos e pensarmos que o planeta tem jeito.

Se olharmos para o que eram o Japão e a Alemanha no pós-guerra e o que se tornaram, vemos que é possível construir rapidamente o bem-estar se alinharmos as energias humanas para isso.

Sidarta Ribeiro, neurocientista

Cícero Oliveira

Você é otimista em relação ao futuro da humanidade?

Sou um otimista apocalíptico, ou seja, acho que estamos muito perto de dar errado e muito perto de dar certo. O otimismo vem do fato de saber que temos todas as ferramentas necessárias para fazer uma transição. São as gerações que estão vivas agora que vão ter sucesso ou falhar nessa missão. É uma imensa responsabilidade porque vai afetar não apenas nossos filhos e netos, mas a sétima geração depois de nós. Ao mesmo tempo, é um privilégio estarmos vivos para encarar esse desafio.

Divulgação

Txai Suruí

'Quando Brasil tenta acabar com povos da floresta, está se autodestruindo'

Ler mais
Claudio Gatti

Rachel Maia

'Quem não pensar em diversidade acabará ficando para trás'

Ler mais
Patrick Gilliéron Lopreno/Divulgação

Satish Kumar

'Temos que levar uma vida simples e elegante'

Ler mais
Topo