O que tem impedido as pessoas brancas de serem antirracistas?
Eu penso que de um lado o mito da democracia racial e de outro o mito da meritocracia, de o Brasil ser uma democracia. A falsa ideia de que as instituições estão funcionando é a primeira camada que faz com que a branquitude - que eu represento também - se coloque em um lugar de conforto. Porque eu não sou questionada, eu continuo vivendo a minha vida, continuo convivendo somente com pessoas brancas, na minha vida social eu só vejo pessoas brancas. E eu vivo nessa situação de conforto que eu chamo de "miopia cultural".
Eu trabalho sempre com dois verbos que parecem sinônimos, mas não são na verdade. O verbo "ver" e o verbo "enxergar": porque ver é uma faculdade biológica facultada a quase todos nós — nem todos e todas, infelizmente. Agora, enxergar é uma opção cultural.
A primeira questão é que a sociedade brasileira foi socializada na linguagem da desigualdade. Essa linguagem da desigualdade vem, na minha opinião, de um sistema escravocrata que foi muito enraizado no Brasil. O Brasil não só recebeu a maior parte dos africanos e africanas que tiveram que deixar compulsoriamente o seu continente, como o Brasil teve escravizados em seu território inteiro, ou seja isso faz muita diferença porque nós fomos construídos socialmente - porque a identidade é uma construção social e política também - nós fomos construídos na base da linguagem da desigualdade.
Os corpos aprendem, os corpos são instruídos. Os corpos brancos são socializados na língua do privilégio, e esse é um obstáculo muito grande. Como contornar? Com esse tipo de conversa. Questionando democraticamente, mas questionando essas estruturas que parecem naturais e biológicas quando na verdade não são naturais e biológicas: são históricas, são políticas, são econômicas.
A editora Companhia das Letras (da qual Lilia é cofundadora ) contratou no ano passado Fernando Baldraia como editor de diversidade. Você consegue enxergar mudanças vindas dessa contratação?
Eu acho que essa medida é fundamental e faz parte do meu antirracismo. A atitude não é só minha, mas eu posso dizer que influenciei muito nessa perspectiva, como você pode imaginar. A ação da Companhia começou a partir de dois censos. Um censo do catálogo e um censo dos funcionários da Companhia das Letras. Por quê? É quando as pessoas são perguntadas: onde estão os negros na sua empresa? E é respondido: "Estão aqui. Olha lá servindo o café, olha lá na faxina."
Depois que nós fizemos um censo do catálogo da Companhia das Letras, foi muito interessante ver quais são os países que dominam os nossos catálogos: Estados Unidos, Inglaterra, França. E também a pouquíssima presença de autores negros, negras, negres. De autores indígenas uma imensa ausência, e, se existia a presença de autores gays, existia uma imensa ausência de autores e autoras trans.
A entrada do Fernando - que é um intelectual que enriquece o diálogo e faz parte do meu grupo na USP, o Etno-História — foi muito importante porque nós queríamos que existisse uma pessoa negra engajada na luta antirracista em uma posição de comando. É claro que todos os editores precisam ser editores de diversidade, mas o Fernando está lá não somente para editar os seus livros, mas também para apontar problemas e sugerir soluções.
Esse é um movimento bastante novo, mas — se eu pensar no catálogo da Companhia das Letras há quatro anos e agora — é um catálogo muito mais diverso e muito mais aberto a autores e autoras negras, autores indígenas, autores trans. Pode melhorar? Pode melhorar muito.