Floresta de livros

Sylvia Guimarães, da ONG Vaga Lume, percorreu a Amazônia montando 86 bibliotecas e impactando 100 mil pessoas

Lílian Beraldo Colaboração para Ecoa, em Brasília Fernando Moraes/UO

"Fundamos a Vaga Lume, oficialmente, em 2001, mas começamos a trabalhar no projeto dois anos antes. A ideia inicial, de três recém-formadas, era fazer uma imersão de trabalho social para conhecer melhor alguma região do país. A gente começou a pensar: 'nossa como seria bom poder parar um ano e conhecer a fundo o Brasil. O Brasil real. O país que está latente, pujante, que a gente, às vezes, não enxerga no dia a dia das grandes capitais.' Queríamos conhecer as manifestações culturais do Brasil e ter alguma contribuição para deixar.

O que tirou a gente da cadeira para esse projeto foi essa atração, essa curiosidade, essa admiração pelo Brasil onde a gente está menos contaminado pela cultura de massas, por essa coisa mais pasteurizada. Foi essa paixão pelo Brasil - que é, ao mesmo tempo, uma terra e um povo.

Quando escolhemos a leitura [como foco], começamos a pesquisar quais eram os projetos de leitura que já existiam. Para nossa tristeza, descobrimos que eram poucos e de baixíssima qualidade. A gente entendeu que, além de um acervo novo e adequado, o elemento principal para formar o leitor é o adulto, o mediador de leitura. Esse era um caminho promissor."

Sylvia Guimarães, presidente da ONG Vaga Lume

Arte/UOL
Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Livros, cidadania e direitos

Do sonho de três jovens surgiu uma organização que, há 20 anos, constrói bibliotecas comunitárias em regiões rurais da Amazônia e leva não apenas livros, mas cidadania e direitos para as crianças da floresta: a ONG Vaga Lume.

"A gente vive numa sociedade letrada em que a leitura e a escrita dão acesso a todo um campo de direitos. Nessa perspectiva, a leitura é um direito fundamental. Com acesso ao conhecimento, as pessoas podem fazer as escolhas que bem entenderem", afirma a presidente da entidade, Sylvia Guimarães, 45.

Priorizando a qualidade do acervo de livros e a formação de mediadores de leitura, o projeto quer contribuir para a troca de saberes, para o surgimento de leitores críticos e cidadãos globais e para o desenvolvimento de competências socio-emocionais de criança e jovens a partir da literatura.

"Quando a criança é exposta a livros infantis desde cedo, as crianças aprendem a nomear os sentimentos. É difícil crescer e a literatura ajuda a gente a navegar nessa dificuldade."

Em duas décadas, a instituição foi a responsável pela instalação de 86 bibliotecas em 22 municípios da Amazônia Legal. Ao todo, mais de 150 mil livros foram doados para compor o acervo desses equipamentos. Cerca de 100 mil crianças, jovens e adultos foram impactados. A ONG conta ainda com mais de 800 voluntários ativos na região.

Na quinta-feira (24), Sylvia e a ONG Vaga Lume foram premiados na 64ª edição do prêmio Jabuti, uma das principais premiações de literatura do país. Com o projeto "Vaga Lume: como livros mudam a vida de crianças e adultos na Amazônia", Sylvia ganhou na categoria Fomento à Leitura, no eixo Inovação.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Expedição social

Atual presidente da instituição, Sylvia é uma das três amigas que, no início dos anos 2000, começou a planejar uma viagem para conhecer o Brasil e, ao mesmo tempo, fazer um trabalho social na Amazônia. Além dela, compunham o trio Laís Fleury Cunha e Maria Teresa Meinberg, a Fofa - que hoje não estão mais na ONG.

Para dar início à jornada, no entanto, elas tinham uma pergunta difícil na cabeça: que contribuição duradoura podemos deixar para esses lugares?

De tanto pensar, as amigas fizeram uma escolha consciente: levar livros adequados para crianças e jovens e apostar na leitura. "Se a gente conseguisse criar uma semente de uma biblioteca infantil nessas comunidades, sabíamos que íamos cultivar a leitura, uma coisa que ninguém tira da pessoa", relembra Sylvia.

Cada uma das amigas ficou responsável pelo planejamento de uma parte da jornada. Formada em história, Sylvia foi a encarregada de montar o projeto educacional. Administradora de empresas, Laís foi a responsável pela estrutura de captação e gestão. Já Fofa, formada em comunicação social, foi o cérebro por trás da logística para percorrer distâncias, conseguir contatos de prefeituras e entregar o material para a montagem do espaço dedicado à leitura das crianças.

Em 2001, com um pequeno patrocínio para fabricar estantes, comprar livros e equipamentos, elas foram para o Pará, onde instalaram as primeiras duas bibliotecas do projeto: uma na Ilha de Marajó e outra em Alter do Chão.

"Fazer a biblioteca, para nós, não era só levar os materiais. Esse é o grande diferencial da Vaga Lume. Era trabalhar as concepções de leitura, a importância de ler em voz alta para as crianças, a qualidade do acervo. Era preciso formar o adulto para que, depois, ele desse sentido para esses livros no dia a dia com as crianças", destaca Sylvia.

Fomos para as comunidades, montamos um grupo de professores e adultos interessados e demos um curso de 40 horas. Ficávamos o dia inteiro em imersão com adultos. As crianças ficavam em volta olhando na janela da escola, mas entendemos que quem ia fazer a diferença eram os adultos. Eram eles que dariam continuidade ao projeto.

Sylvia Guimarães, presidente da ONG Vaga Lume

Fernando Moraes/UOL

De mochila e de barco

De acordo com Sylvia, já naquela época, elas entendiam que a base do projeto era formada por um tripé: doação de estrutura (livros), formação de mediadores de leitura e gestão comunitária da biblioteca. Para isso, durante a implantação dos equipamentos, as jovens também discutiam com a comunidade aspectos como o local onde seria implantada a biblioteca e as regras de uso e empréstimo de livros.

"A gente ia de ônibus: saía de Campinápolis para Cuiabá, depois para Rondonópolis e, de lá, para Ouro Preto do Oeste. Pegamos barco também, daqueles em que você dorme e acorda durante vários dias. Éramos nós três e uma megamochila cada uma. Contratamos uma produtora em São Paulo que enviava os materiais das bibliotecas, fizemos um mapeamento muito grande e trabalhamos muito antes de ir para estrada", diz Sylvia.

Durante a viagem em 2002, as três jovens instalaram 22 bibliotecas em comunidades rurais da Amazônia. Depois de milhares de quilômetros percorridos, ao voltarem para São Paulo as amigas encontraram uma surpresa: inúmeras cartas pedindo que elas retornassem e implantassem bibliotecas em outras comunidades amazônicas tinham chegado na pequena sala alugada que servia de escritório à expedição.

"A gente entendia que a leitura era um caminho promissor, mas, há 20 anos, não tínhamos essa ambição maravilhosa de que a Vaga Lume fosse durar tanto tempo", confessa Sylvia.

As histórias são vitais. A literatura, no meu entender, é um direito porque ela é tão importante quanto comida e água. Ela é vital ainda mais no mundo de hoje, em que a gente está nomeando pouco porque nos comunicamos por emoji, estamos diminuindo a nossa relação com as palavras.

Sylvia Guimarães, presidente da ONG Vaga Lume

Arquivo pessoal
Jocienne Silva Gomes é voluntária da Vaga Lume

Mais de 800 voluntários

Além das 86 bibliotecas implantadas, a Vaga Lume já formou mais de 5 mil adultos em mediação de leitura. Depois do período de formação, eles trabalham como voluntários nas bibliotecas ajudando as crianças e os adolescentes a se encantarem pela literatura. Hoje, mais de 800 voluntários continuam na ativa.

Uma das primeiras mediadoras formadas foi a pedagoga Jocienne Silva Gomes, 43, moradora da reserva extrativista do Quilombo Frechal, em Mirinzal (MA). "Nós não tínhamos acesso a livros de literatura, só livro didático", relembra.

"A Vaga Lume chegou e trouxe na bagagem esse novo mundo. Nós podíamos levar o livro emprestado para casa, ler para os pais, vizinhos e depois devolver para que outras pessoas pudessem fazer o mesmo", diz a maranhense que, na época da instalação da biblioteca, tinha apenas 20 anos.

Com o início do trabalho voluntário, ela conta que o interesse pela educação e pela literatura foi crescendo e ela resolveu se aprofundar nos estudos, já que tinha concluído o magistério alguns anos antes. Veio daí a formação em pedagogia, a pós-graduação em educação especial e, depois, em psicopedagogia.

De acordo com Jocienne, o projeto estimula crianças e adultos não só a ler, mas também a escrever livros. "Somos leitores e protagonistas das nossas histórias através da produção de livros artesanais. Desde 2002 estou como voluntária e a biblioteca nunca parou. É muito prazeroso ver o deslumbre das crianças", destaca.

A Vaga Lume tem uma linha de trabalho com o meio ambiente, a valorização da oralidade, dos mais velhos, da comunidade, [com] a valorização da literatura preta, da literatura indígena, isso traz muito da realidade e da vivência desses povos. Isso nos toca e toca as crianças

Jocienne Silva Gomes, pedagoga e mediadora de leitura

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Intercâmbio cultural

Além da doação do acervo e da criação da biblioteca, o projeto trabalha hoje com a promoção de intercâmbios, um diálogo intercultural entre jovens das comunidades da Amazônia e escolas e organizações sociais do Sudeste brasileiro. O intuito é compartilhar saberes acerca de suas identidades e comunidades.

"A Vaga Lume foi se consolidando ao longo dos anos como um projeto de aproximação de distâncias que são mais do que territoriais, às vezes, simbólicas e de conhecimento", reflete Sylvia.

+ Especiais

Documental Pantanal/João Farkas

Seu Ruivaldo

Sozinho no Pantanal, fazendeiro luta para evitar alagamento de suas terras

Ler mais
Keiny Andrade/UOL

Fiel

Em memória da esposa, ela quer criar jardim botânico em milhares de metros quadrados

Ler mais
Keiny Andrade/UOL

Sozinho

Homem doa terras na capital paulista, planta mais de meio milhão de árvores e auxilia libertação de pássaros

Ler mais
Topo