Há uma corrente de que, além do Enem, também se cancele o fim do ano letivo por conta da pandemia. Essa medida foi avaliada? Poderia ser colocada na prática?
De novo, temos um MEC ausente. Inclusive, quando interpelamos o MEC sobre isso, nos foi dito que não era de responsabilidade deles. Não sei o que é responsabilidade deles, então... Mas as aulas foram canceladas, e diferentes redes agiram cada uma a seu jeito. No Amazonas, houve aulas por canais de televisão por já terem experiência em levar sinal de comunicação para regiões ribeirinhas. Em São Paulo, liberaram dados de telefonia. Mas ainda temos quase seis mil redes de educação lançados à própria sorte e sem um ministério que ajude em parcerias para criar plataformas. O Conselho Nacional de Educação já havia elaborado um documento para saber o que poderia ser feito ou não em relação às aulas em termos jurídicos, pois a pandemia é uma situação pela qual nunca passamos. O MEC, então, recebeu o documento e demorou, demorou e só depois de muita pressão homologou o documento. Na Câmara, sou uma das autoras de um projeto para criar conselhos municipais, estaduais e nacional com profissionais da saúde e da educação para decidir como será o retorno às aulas. São vários atores encobrindo o vácuo deixado pelo MEC. A minha opinião é que se adeque o calendário para retornar no ano seguinte, quando for saudável. Se a gente entender que a partir de outubro, por exemplo, em outubro.
Pode explicar mais?
Quanto mais tempo as crianças e adolescentes estiverem em casa e não na escola, mais a desigualdade educacional vai se aprofundar. Não dá para ignorar que quantas soluções a gente pense, alguns estudantes estão dividindo cômodos com vários familiares, sem internet, passando fome. A gente sabe que a aulas [a distância] não estão chegando em todo mundo. Duas coisas que precisamos combinar: voltar à aula o quanto antes. Há estudos que mostram que quanto mais tempo as crianças ficam em férias, elas regridem no conhecimento em comparação às que foram estimuladas durante. É uma questão de desigualdade. Dito isso, a segurança das crianças e de todo o corpo docente é a prioridade. A partir do momento que for seguro, na minha opinião, a gente tem que voltar com uma série protocolos que deveriam estar sendo desenhados pelo MEC. O novo calendário letivo não vai seguir com o calendário civil, e tudo bem. O nosso ponto é não deixar mais gente para trás. A ideia nisso também é avaliar como está a saúde mental. Nosso projeto fala um pouco disso. É o ideal voltar logo? Não é. Mas não dá para ignorar que, se cancelar o ano, uma galera vai ter um dano irreparável e podemos sim ter uma evasão do ensino médio. Quando tivermos esse novo calendário letivo, teremos um novo calendário também para provas como o Enem. A decisão não pode ser uma enquete no Facebook do Ministro.
Como a saúde mental pode interferir nesse processo e como foi dado esse tema?
Há um estudo americano que mostra que alunos mais pobres regrediram em parte do conhecimento e desaprenderam durante férias escolares enquanto estudantes mais ricos continuavam a aprender por terem acesso a capital cultural. Os alunos vão chegar com uma defasagem. A segunda questão é o que vivemos: muitas famílias viram a fome batendo na porta. Há crianças que foram para as ruas após os pais ficarem desempregados e as coisas apertarem. Há professores e estudantes que perderam entes queridos. A pandemia atinge mais as periferias. Tenho essa discussão com deputados, e achamos que vai ser necessário a atuação do estado para entender como é que os professores chegam na escola. Mas dada a dificuldade de lidar com o MEC, estou conversando com professoras e líderes de ONGs para pensar no que fazer. Não temos uma resposta ainda, uma vez que saúde mental já é uma coisa que não é muito valorizada e bem compreendida no Brasil.
Uma das saídas é a manutenção do auxílio emergencial, com uma espécie de renda mínima, como você defende? De onde viria esse dinheiro?
Primeiro, precisamos saber como fazemos a transição do auxílio emergencial. É realmente absurda pensar em interrompê-lo, porque espera-se que a crise econômica se aprofunde ainda mais nos próximos meses. Mesmo que a pandemia vá embora e encontremos uma vacina, ainda vamos precisar do auxílio emergencial por mais um tempo. Aí, é aproveitar que o Brasil está passando por essa discussão para fazer uma etapa de fases rumo a uma renda básica. De onde viria o dinheiro? Poderíamos incorporar o Bolsa Família e alguns projetos, como o Salário Família, o abono... A ideia é pegar programas que já existem na área social, que tenham uma renda que não chegue a um salário mínimo, que chegue a compor a renda básica. Teremos algumas brigas boas, falando de forma leve.
Quais brigas e com quem?
Será que vamos conseguir falar dos supersalários? É uma discussão que temos na Câmara e nunca consegue [sair] por causa de lobby. Estamos falando de um dinheiro bom, sabe? Há cálculos que falam de R$ 1 bilhão que são imorais. Nossa Constituição prevê que ninguém pode receber acima dos ministros do STF. Será que a gente vai ter coragem de olhar para algumas exonerações? De isenções tributárias que não fazem sentido? Para a renda básica, a ideia é olhar para fontes de financiamento a partir do que já existe hoje e rever outros setores em que o dinheiro público é mal alocado.
Nesse cenário de estruturas tão grandes, tua visão sobre educação real mudou? E qual é ela?
Minha visão continua a mesma e continua sendo a razão pela qual estou na política. Para mim, a educação é o único caminho para que a gente tenha um Brasil justo, desenvolvido e ético. E todas as bandeiras usadas por diferentes grupos, de forma honesta ou não, são alcançadas por meio da educação. É uma experiência de pele, sabe? Eu vi o que a educação fez na minha vida. E vi o que ela não fez na vida de muitos amigos que perdi aos 12, 13, 14 anos de idade. Sei que ela tem o poder de libertar as pessoas para que possam ter uma vida digna. Meu ativismo de dez anos me mostrou que a política tinha que mudar para que a gente tivesse educação integral e que de fato formasse as pessoas para a cidadania e desse a possibilidade de sonhar. Então, me incomoda, do coração, o que está acontecendo com a nossa educação hoje. Eu perdoaria alguém que tivesse uma visão diferente da minha, mas tentando fazer alguma coisa. Alguém que pega a educação de milhares de pessoas em nome de alguns projetos pessoais para manter a guerra cultural, para mim é desumano, imperdoável. Não há ideologia que explique isso.