Em diáspora

Thalma de Freitas fala sobre as mudanças no Brasil desde que viveu Zilda em Laços de Família há 20 anos

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo José de Holanda

Muita coisa muda em duas décadas. No nível da sociedade, comportamentos que eram tidos como naturais passam a ser questionados, outras mentalidades ganham força, entendimentos de mundo começam a caducar.

Algumas dessas mudanças são perceptíveis na repercussão da novela Laços de Família, reprisada pela Globo desde setembro de 2020. Basta ver as discussões despertadas pela personagem Zilda, empregada doméstica interpretada por Thalma de Freitas, e sua relação de trabalho com a patroa Helena, vivida por Vera Fischer.

Muitos espectadores têm comentado a exploração da personagem, que não tem horário fixo de trabalho, cumpre múltiplas funções na casa e quase nunca tem dias de folga. No fim do ano, a própria Thalma de Freitas entrou na conversa. Disse no Twitter que a personagem não era submissa, tinha voz, mas que "as críticas sobre a diferença de classe são super-relevantes, enquanto existir o quarto de empregada a luta continua".

No nível pessoal, também são muitas as transformações que podem acontecer em 20 anos. Thalma se estabeleceu em Los Angeles, meca do entretenimento, em 2012, onde vive com o marido e a filha e se dedica à carreira musical. No fim de 2019, foi indicada ao Grammy pelo álbum "Sorte!", trabalho feito em parceria com o americano John Finbury.

"Não pertenço à cultura americana, mas pertenço à cultura da diáspora de que os afrobrasileiros, afroamericanos, afrocubanos fazem parte", disse a cantora e atriz a Ecoa.

Abaixo, ela fala sobre ser estrangeira e mulher negra nos Estados Unidos, de sua carreira, espiritualidade e da visão sobre a personagem em Laços de Família de 2000 sob a ótica dos dias de hoje.

Ecoa - Como você vê a repercussão da novela Laços de Família entre os espectadores 20 anos depois, principalmente com relação à Zilda e seu entorno?

Thalma de Freitas - Eu acho fascinante. Fui defender a Zilda porque ela é minha filha, é obrigação de mãe fazer o advogado do diabo. E também porque eu vou fazer 47 esse ano, sei os valores daquela época. Quem faz parte dessas conversas [nas redes sociais] tem entre 20 e 30 anos, não tem como ter clareza do que significava na época.

A Zilda era supercelebrada porque era a primeira vez que a empregada doméstica era um personagem de fato, com fala, com texto, com cenas sozinha — tudo bem, era atendendo o telefone, mas ela era alguém.

Escrevi isso [no Twitter], a cultura é nossa, galera. A novela representa exatamente a classe média alta ou qualquer pessoa que, quando passa a fazer mais dinheiro, contrata uma empregada. Todo mundo faz isso no Brasil. A página do Facebook da Preta Rara, que depois virou um livro chamado "Eu, empregada doméstica", conta histórias de embrulhar o estômago que não são de 20 anos atrás. São de ontem. Ontem, anteontem, hoje, amanhã, depois de amanhã.

É muito bonito defender e falar sobre por que é o assunto do momento, mas você não paga três salários mínimos para a sua empregada doméstica. Você pede a ela para chegar às 8 horas da manhã e muitas vezes ela vem para fazer aquilo que você deveria e poderia estar fazendo sozinho. Porque isso diminui o seu status social.

Se você mora numa puta casa, num apartamento gigante, faz sentido. Mas se você tem um apartamento de dois, três quartos, desculpa, você não precisa de uma empregada doméstica que trabalhe vários dias por semana na sua casa. Não precisa. E não é o fim do mundo morar num apartamento em que você passa o dedo na mesa e sai poeira. Pra que você precisa arear a prata da panela? A gente faz parte de uma cultura escravocrata.

Se você pegar sua criança e levar para uma aula de piano, o professor cobra R$ 100 por hora. Luxo. Empregada doméstica é luxo. As pessoas tratam como se fosse essencial.

A pandemia trouxe à tona muitas discussões. Algumas pessoas brancas e ricas se viram tendo que cuidar das tarefas domésticas pela primeira vez e outras mantiveram suas funcionárias trabalhando, expondo-as ao risco de se infectar. Essa mentalidade está presente em Laços de Família?

Está presente, claro. Acho que a Zilda ia se dar bem na pandemia, ia diminuir o fluxo de gente na casa. A Zilda morava na casa, a Capitu era vizinha então eles não iam ter problema nenhum, ela continuaria trabalhando [risos]. Acho que para eles não ia mudar muito não. Ia ficar mais ou menos na mesma. O Fred e a Clara iam ficar na casa deles por causa da pandemia, a Camila também ia ficar na casa dela com o Edu.

As pessoas comentam que a Zilda trabalha como uma escrava e eu falo, gente, eu sou dona de casa e tenho exatamente a mesma rotina. Acordo de manhã, tenho que botar minha filha no homeschooling, aí pago as contas, saio para fazer supermercado, volto, faço almoço, lavo a louça, varro a casa. Odeio fazer, mas tem que fazer. Meu marido é quem lava as roupas e faz a faxina mais pesada. Só termina quando boto a criança na cama às 9h da noite. Qualquer mãe, qualquer mulher que tenha um, dois, três filhos, casada ou não, tem a mesma rotina. É o trabalho de qualquer mulher preta brasileira que não tem dinheiro para ter uma empregada.

Agora as pessoas vêm defender a Zilda, acho muito legal que vêm defender, não estão zoando ela. Ela causava comoção na época e continua causando.

O que você diria que mudou no Brasil de 2000 para cá, que tem feito as pessoas enxergarem isso de outra forma?

Sempre teve um movimento de consciência negra no Brasil, obviamente. Mas com o advento da internet, do Facebook, as pessoas ficaram muito mais educadas a respeito. Elas passaram a ouvir as reclamações dos afrobrasileiros a respeito da cultura brasileira. Não dá mais para ficar nessa negação. Não dá, não tem lugar para isso.

Pega mal, pega mal para a marca, para o programa de televisão. [Antes era] inconcebível empresa tendo que pedir desculpa, todo mundo tendo que fazer propaganda com os pretos. Conheço produtores de elenco que quando era para escolher modelos e atores, o contratante estabelecia claramente: não quero pessoas negras. Aí a Taís Araújo surgiu, porque rolou aquele furor da "Xica da Silva" [novela que foi ao ar entre 1996 e 1997] e ela virou realmente um ícone. Aí era só a Taís Araújo durante um tempão, porque ela era a única aceitável. O racismo é institucional, a culpa não é da Helena. O Manoel Carlos estava reproduzindo na casa da Helena a sociedade que ele conhece. E ele não é o cara que diz "eu não quero uma atriz negra tendo destaque na minha novela."

Depois de 12 anos de carreira, foi quando eu me estabeleci na televisão. Eu ganhei um contrato que durou 14 anos. Foram 13 novelas, além de seriado e filme. Uma vez por mês eu saía no jornal, numa revista, em alguma coisa. Vejo essas coisas como de valor, porque na minha época não eram comuns. Vinte anos depois, eu perco as contas das atrizes negras maravilhosas que estão fazendo parte do imaginário popular.

A gravação da novela era tão legal. Foi uma das novelas mais legais de gravar. A gente era amigo, a gente fazia festa, a Giovanna Antonelli fazia festa na casa dela e a gente ia, a gente ia na praia, almoçava junto, quando ficava esperando horas para gravar uma coisa o Tony Ramos ficava na sala de espera contando as histórias da vida dele.

José de Holanda José de Holanda

Você também defende que a Zilda não era uma personagem totalmente submissa, que ela tinha voz. Personagens negras como ela são mais comuns hoje?

Acho que a partir da Zilda, sim. Lembro das personagens da Claudia Missura e da Cacau Protásio [em "Avenida Brasil"], que eram as duas empregadas na casa do Tufão e da Carminha. A patroa era louca e ficava abusando delas, e elas super mancomunadas.

Não é que não tenha história de negros na dramaturgia. Teve a dona Ruth de Souza, a dona Léa Garcia, tem o seu Milton Gonçalves. Não é sobre os atores negros na dramaturgia, nesse caso é sobre o personagem da empregada doméstica na dramaturgia. Sobre ela deixar de ser um lugar subserviente e silenciado.

Como você disse, a cultura é nossa. Como transformá-la? Qual o papel da arte nisso?

Uau. Tanta coisa tem que acontecer antes pra isso ser transformado. O papel da arte já é esse trabalho — água mole em pedra dura, é ir cavando ali. Mas tem muita coisa pra mudar no Brasil antes de mudar esse pedaço. O artista tem uma voz, a gente pode botar assuntos no mundo para serem conversados.

Mas mudaria mesmo se houvesse uma revolução dos trabalhadores e empregada doméstica passasse a ser algo caro de manter, o pessoal ia abolir, ia pensar duas vezes. A abolição só veio porque era caro manter aquele povo todo.

A empregada doméstica tem que ganhar tanto quanto os outros profissionais na sua vida.

Você já está em Los Angeles faz um tempo, né? Pegou era Obama, Trump... Como foi acompanhar os acontecimentos recentes da política americana, estando aí?

Foi um inferno frio. Quer dizer, teve seus calores, momentos quentes: as manifestações todas, a validação dos fascistas e nazistas. Não é muito diferente do Brasil e de outros países do mundo. Acho que está tendo uma onda de polaridade. Quando a gente achava que a coisa ia estar melhor, com Obama, Dilma, Mujica... o que aconteceu? Não sou super versada na política para poder fazer teorias e tal. Ultimamente, com QAnon, não faço teoria nenhuma.

Mas tem um lado que gostei que o nome dos Estados Unidos como a grande potência incrível, inatingível, foi por água abaixo. Perderam totalmente a moral. Olhando do ponto de vista de uma estrangeira, estou achando tudo lindo. Vamos tirar a coroa desse rei que está nu faz tempo.

Tem a coisa da grande segregação americana, que é diferente da integração falsa do Brasil. Ou você é afroamericano ou é americano, realmente são países diferentes. Não é disfarçado de classe como é no Brasil. Há vários paralelos da diáspora de África na América toda. E isso também é um símbolo, porque o que os fascistas não queriam aqui, como não querem no Brasil, é que todas as classes sociais estejam equiparadas nesses ciclos de poder, e não só de poder, mas de possibilidade.

Pelo menos a gente voltou para a mão dos liberais. Entre fascistas e liberais, a gente fica com os liberais. [risos]

Como é sua experiência aí, como estrangeira? Você sente diferença entre ser uma mulher negra nos EUA e no Brasil?

Super. Na hora em que abro minha boca, meu sotaque já me coloca num outro lugar. Eu não sou daqui, não pertenço à cultura afroamericana, não sei os códigos, as gírias, não conheço vários artistas, não sei uma infinidade de coisas. É muito difícil ser expatriada. Mas não por conta de estar aqui, estar aqui é uma aventura, é legal. Eu fico mais em casa do que qualquer outra coisa. Não estou vivendo a plenitude da cultura e da sociedade americana.

Mas há o fato de eu conseguir me divorciar o máximo possível de uma cultura de branquitude do Brasil que tem o mito da democracia racial, a ideia de integração. Não é pessoal, eu até tenho amigo branco [risos]. Sou totalmente token, até. Eu pertencia a um universo que, para mim, sendo uma mulher negra, era problemático. Colocava panos quentes por conhecer as pessoas e as pessoas serem legais.

Aí quando venho para cá, não vivo na cultura branca de jeito nenhum, porque eles nem me aceitam. Não tem nem esse negócio de "mas ela é minha amiga". É segregado. Mas foi um alívio, porque agora eu vivo num universo em que eu pertenço legitimamente.

Essa é uma sensação muito louca. Porque tem muito estrangeiro aqui, ando com os brasileiros daqui. Los Angeles é uma cidade de gringos, pessoas vieram de outros países ou de outras cidades para viver aqui. Pertenço à cultura da diáspora de que os afrobrasileiros, afroamericanos, afrocubanos fazem parte. Todos os afro de qualquer país fazem parte dessa diáspora. Vivo aqui de uma maneira que não dava para viver no Brasil até 2010, quando as coisas começaram a mudar. As redes sociais trouxeram uma voz que não era comum, a não ser que você fosse tipo o Racionais MC's, mas aí você era radical.

José de Holanda José de Holanda

O que veio primeiro, cantar ou atuar?

Quando era jovem, era atriz de musical, porque queria ser atriz, mas o meu forte é cantar. Mas o meio de trabalho da música é muito cruel para os meus sentimentos. Não dou conta, sou muito sensível para essas coisas.

A indústria é gatilho para mim. Em 96, eu já era atriz de musical, ainda estava trabalhando com a Claudia Raia no [espetáculo teatral] "Nas raias da loucura", e por uma sorte louca do destino consegui um contrato com a Sony Music. E me ferrei de um grau, porque eu não sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo, não tinha apoio. Fiquei traumatizada, fiquei sem cantar por uns cinco anos. No mesmo ano, o Jorge Fernando me chamou para fazer novela. E aí juntou a fome com a vontade de comer.

Eu precisava de gente que trabalhasse comigo, acreditasse em mim na música, e não rolou. Mas agora estou num outro lugar, sou produtora musical. Consigo fazer todas as coisas que queria fazer na música e não dava conta por causa da indústria. Faço artesanato, guerrilha, mas muito mais tranquila, muito mais em paz.

Você costuma falar abertamente sobre mediunidade, contato com orixás. Qual a importância da espiritualidade para a sua qualidade de vida, sua saúde mental e bem-estar?

É 100%. Não dou conta, não dá para confiar na minha mente. Recentemente, finalmente tive o diagnóstico correto de ter transtorno bipolar. Não estou no espectro superautodestrutivo, mas não tenho condição psicológica de ficar de acordo com a sociedade. A única coisa que me ajuda é me comunicar com as pessoas. Gosto de palco porque é um lugar mágico, é um ritual. Você toma um banho, se arruma, sai da sua casa, paga o ingresso, entra no teatro com mais um monte de pessoas e todo mundo reverencia um lugar onde tem pessoas performando. A energia fica no palco para sempre. Um teatro tem a energia de todas as peças e pessoas que passaram ali. Posso contar várias histórias de coisas que não dá para explicar a não ser que você entenda que o palco é um lugar espiritual. É um lugar que funciona na psique de quem vê e na psique de quem faz.

A minha mãe não me deu uma religião, não fui batizada. Não tenho religião nenhuma, já abracei várias, mas não consigo ficar numa só porque amo todas, todas têm um pedaço da verdade. Acredito que Deus é o universo, não tem separação.

José de Holanda José de Holanda

Passamos por um momento crescente de intolerância religiosa no Brasil. Qual é o caminho para garantirmos liberdade de culto, a liberdade de cada um manifestar sua espiritualidade?

É a mesma transformação que vai precisar para resolver a história da empregada doméstica. Tem tanta coisa pra acontecer antes. Eu não tenho religião, mas todas as músicas mais marcantes da minha vida são sobre orixá. Essa intolerância religiosa é o mesmo que a intolerância política.

Essa gente é fascista, racista e facínora. Não é todo mundo, honestamente acredito que é uma parcela menor. Umbanda e candomblé sempre sofreram preconceito, não é novidade nenhuma. O fato de estar tão acirrado é porque a gente sabe mais, ouve falar mais, está na internet. É como o racismo, não é novidade.

Mas só de a gente ter consciência, ajuda a mudar. Acho que quem faz é o inconsciente coletivo, e para isso cada pessoa precisa encontrar um lugar de consciência. Essas discussões, o fato de a gente estar conversando nesse nível já é um passo pra isso. Só que a gente não vai ver isso. É como plantar uma árvore para a próxima geração, você não vai vê-la crescer. A gente precisa plantar sementes cognitivas pro futuro.

No ano passado, tanto Estados Unidos quanto Brasil tiveram protestos antirracistas, encabeçados pelo Black Lives Matter [Vidas Negras Importam]. Como foi para você ver essas manifestações acontecendo aí e aqui?

Foi um alívio muito grande ver que elas continuam rolando, mesmo na pandemia. Quando cheguei aqui, havia manifestações pelo caso do Trayvon Martin [jovem negro assassinado pela polícia americana em 2012]. Fiquei passada que o cara não foi preso. This is America [Isso é a América].

O Black Lives Matter é um grupo, mas esse slogan pegou todo um movimento de pessoas de todas as raças e classes sociais. Quem acredita nisso pôde se juntar numa marca. É a primeira vez que a gente tem um slogan tão forte, e que é um slogan, não uma pessoa como Martin Luther King e Malcolm X. São três palavras que todo mundo pode abraçar e quando você diz que é a favor, que vidas pretas importam, isso te coloca em um lugar social bem claro.

Fico feliz de estar viva para ver isso acontecer. Porque essa luta não é nova, ela é uma nova onda de um processo que acontece desde tempos imemoriais inclusive, e essa energia está viva. O fato de essa energia estar viva é o suficiente.

A gente viu a mudança que aconteceu socialmente no Brasil de 2000 a 2020. A gente só tem que continuar. Não para, não para, não para, não!

Thalma de Freitas

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