Ecoa - Como você vê a repercussão da novela Laços de Família entre os espectadores 20 anos depois, principalmente com relação à Zilda e seu entorno?
Thalma de Freitas - Eu acho fascinante. Fui defender a Zilda porque ela é minha filha, é obrigação de mãe fazer o advogado do diabo. E também porque eu vou fazer 47 esse ano, sei os valores daquela época. Quem faz parte dessas conversas [nas redes sociais] tem entre 20 e 30 anos, não tem como ter clareza do que significava na época.
A Zilda era supercelebrada porque era a primeira vez que a empregada doméstica era um personagem de fato, com fala, com texto, com cenas sozinha — tudo bem, era atendendo o telefone, mas ela era alguém.
Escrevi isso [no Twitter], a cultura é nossa, galera. A novela representa exatamente a classe média alta ou qualquer pessoa que, quando passa a fazer mais dinheiro, contrata uma empregada. Todo mundo faz isso no Brasil. A página do Facebook da Preta Rara, que depois virou um livro chamado "Eu, empregada doméstica", conta histórias de embrulhar o estômago que não são de 20 anos atrás. São de ontem. Ontem, anteontem, hoje, amanhã, depois de amanhã.
É muito bonito defender e falar sobre por que é o assunto do momento, mas você não paga três salários mínimos para a sua empregada doméstica. Você pede a ela para chegar às 8 horas da manhã e muitas vezes ela vem para fazer aquilo que você deveria e poderia estar fazendo sozinho. Porque isso diminui o seu status social.
Se você mora numa puta casa, num apartamento gigante, faz sentido. Mas se você tem um apartamento de dois, três quartos, desculpa, você não precisa de uma empregada doméstica que trabalhe vários dias por semana na sua casa. Não precisa. E não é o fim do mundo morar num apartamento em que você passa o dedo na mesa e sai poeira. Pra que você precisa arear a prata da panela? A gente faz parte de uma cultura escravocrata.
Se você pegar sua criança e levar para uma aula de piano, o professor cobra R$ 100 por hora. Luxo. Empregada doméstica é luxo. As pessoas tratam como se fosse essencial.
A pandemia trouxe à tona muitas discussões. Algumas pessoas brancas e ricas se viram tendo que cuidar das tarefas domésticas pela primeira vez e outras mantiveram suas funcionárias trabalhando, expondo-as ao risco de se infectar. Essa mentalidade está presente em Laços de Família?
Está presente, claro. Acho que a Zilda ia se dar bem na pandemia, ia diminuir o fluxo de gente na casa. A Zilda morava na casa, a Capitu era vizinha então eles não iam ter problema nenhum, ela continuaria trabalhando [risos]. Acho que para eles não ia mudar muito não. Ia ficar mais ou menos na mesma. O Fred e a Clara iam ficar na casa deles por causa da pandemia, a Camila também ia ficar na casa dela com o Edu.
As pessoas comentam que a Zilda trabalha como uma escrava e eu falo, gente, eu sou dona de casa e tenho exatamente a mesma rotina. Acordo de manhã, tenho que botar minha filha no homeschooling, aí pago as contas, saio para fazer supermercado, volto, faço almoço, lavo a louça, varro a casa. Odeio fazer, mas tem que fazer. Meu marido é quem lava as roupas e faz a faxina mais pesada. Só termina quando boto a criança na cama às 9h da noite. Qualquer mãe, qualquer mulher que tenha um, dois, três filhos, casada ou não, tem a mesma rotina. É o trabalho de qualquer mulher preta brasileira que não tem dinheiro para ter uma empregada.
Agora as pessoas vêm defender a Zilda, acho muito legal que vêm defender, não estão zoando ela. Ela causava comoção na época e continua causando.
O que você diria que mudou no Brasil de 2000 para cá, que tem feito as pessoas enxergarem isso de outra forma?
Sempre teve um movimento de consciência negra no Brasil, obviamente. Mas com o advento da internet, do Facebook, as pessoas ficaram muito mais educadas a respeito. Elas passaram a ouvir as reclamações dos afrobrasileiros a respeito da cultura brasileira. Não dá mais para ficar nessa negação. Não dá, não tem lugar para isso.
Pega mal, pega mal para a marca, para o programa de televisão. [Antes era] inconcebível empresa tendo que pedir desculpa, todo mundo tendo que fazer propaganda com os pretos. Conheço produtores de elenco que quando era para escolher modelos e atores, o contratante estabelecia claramente: não quero pessoas negras. Aí a Taís Araújo surgiu, porque rolou aquele furor da "Xica da Silva" [novela que foi ao ar entre 1996 e 1997] e ela virou realmente um ícone. Aí era só a Taís Araújo durante um tempão, porque ela era a única aceitável. O racismo é institucional, a culpa não é da Helena. O Manoel Carlos estava reproduzindo na casa da Helena a sociedade que ele conhece. E ele não é o cara que diz "eu não quero uma atriz negra tendo destaque na minha novela."
Depois de 12 anos de carreira, foi quando eu me estabeleci na televisão. Eu ganhei um contrato que durou 14 anos. Foram 13 novelas, além de seriado e filme. Uma vez por mês eu saía no jornal, numa revista, em alguma coisa. Vejo essas coisas como de valor, porque na minha época não eram comuns. Vinte anos depois, eu perco as contas das atrizes negras maravilhosas que estão fazendo parte do imaginário popular.
A gravação da novela era tão legal. Foi uma das novelas mais legais de gravar. A gente era amigo, a gente fazia festa, a Giovanna Antonelli fazia festa na casa dela e a gente ia, a gente ia na praia, almoçava junto, quando ficava esperando horas para gravar uma coisa o Tony Ramos ficava na sala de espera contando as histórias da vida dele.