Todes, sim!

Maite Schneider transforma sonhos em realidade a partir da luta por educação e trabalho para pessoas trans

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Pryscilla K./UOL

"Meu trabalho hoje em dia com as empresas é ensinar gente a não ter medo de gente. E, quando consigo fazer as pessoas perderem esse medo [de contratarem pessoas trans], elas dizem: "Maite, eu não sei tudo", e eu falo "Tudo bem, nem eu", e vamos lá assim mesmo. O que a gente não pode é desrespeitar, agredir, invadir e castrar as pessoas. Fora isso, às vezes, você vai errar. E, se errar, pede desculpas, e vamos tentando construir.

A gente tenta diminuir as chances de erro, mas vai acontecer. Não é pra ter medo do erro. Errar é o que o ser humano faz com maestria. E às vezes nisso a gente acha uma potência pra dar um salto. Sem o erro, muitas vezes a diversidade fica engessada.

A revolução só acontece quando todo mundo estiver dentro do jogo, nem que pra isso a gente tenha que quebrar as regras e criar novas para que novos jogadores possam participar dele."

Maite Schneider

Se a frase "você tem a mesma quantidade de horas no dia que a Beyoncé" que circula pelas redes e estampa canecas motivacionais ganhasse uma versão brasileira, Maite Schneider poderia ser uma das candidatas a substituir o nome da diva americana.

A curitibana, que completa meio século de vida em novembro e hoje vive em São Paulo, está à frente de projetos sociais voltados para a capacitação e empregabilidade de pessoas transgênero e é madrinha de outras tantas iniciativas, como a Casa Florescer. Também presta consultoria em diversidade para empresas, dá palestras, estuda e é atriz. No tempo livre, gosta de viajar, estar com os amigos e namorar (ela avisa: está solteira).

"Durmo cinco, seis horas por noite. Tenho uma agendinha que pra mim funciona super, tenho tudo calculadinho e ainda sobra tempo", disse a Ecoa.

Atualmente, ela talvez seja principalmente conhecida por comandar a Transempregos, plataforma de oportunidades de capacitação e trabalho para pessoas trans, iniciada em 2013 pela advogada Márcia Rocha, com a participação de Maite e da cartunista Laerte. Com o crescimento da iniciativa, a paranaense se mudou para São Paulo e assumiu a dianteira, dedicando hoje grande parte de seu tempo ao projeto.

A Transempregos conta atualmente com 1.100 empresas parceiras e promoveu a inclusão de 794 pessoas trans em vagas de trabalho formal somente em 2020. Além de funcionar como uma central de anúncios de vagas e currículos, também trabalha junto às empresas na sensibilização, capacitação e na construção de políticas afirmativas para pessoas trans.

Maite enxerga cada pessoa contratada como um dos tijolos de uma ponte construída sobre os abismos de desigualdade do mercado. Ela reforça os talentos e potencialidades desses profissionais que são perdidos pelas empresas por conta da discriminação. E defende que a inclusão transforma não apenas a vida do contratado, mas de toda a empresa.

Estou ajudando a criar espaços mais humanizados. Equipes com pessoas trans começam a entender um pouco mais de humanização de processos. É muito legal ver que gestores com mais idade, com seus vieses, também mudam, perdem o medo e começam a entender que tudo fica muito melhor, não só em termos de negócio mas de espaços, de mundo

Maite Schneider , Cofundadora da Transempregos

Pryscilla K./UOL Pryscilla K./UOL

A paraibana Renatha Paiva foi contratada duas vezes por meio da Transempregos. Na primeira, foi admitida para um cargo de gestão de uma empresa. Já a segunda contratação aconteceu quando, saturada do mundo corporativo, decidiu dar uma guinada na carreira e foi atuar como secretária de uma clínica especializada em tratamento humanizado.

Ela já acompanhava o trabalho de Maite antes da existência da Transempregos — há quase uma década, desde que a viu em uma entrevista no programa do Jô Soares. Em 2019, elas se conheceram pessoalmente em um evento e, desde então, Renatha colaborou como professora em capacitações do projeto. "Todos os meus encontros com ela sempre foram recheados de muito carinho, atenção e sorrisos, o que é o forte dela: por onde passa leva seu sorrisão contagiante. Sou admiradora de tudo que ela significa para nós, pessoas trans", disse.

Se hoje mais pessoas trans estão conseguindo atuar no mercado formal, Maite afirma que é preciso avançar na interseccionalidade. "Ao mesmo tempo em que há uma procura super grande [por parte das empresas], essas contratações ainda são higienistas. São extremamente brancas, e homens trans são muito mais contratados do que mulheres trans", disse.

Para atacar a questão da empregabilidade trans em intersecção com esses outros fatores, ela está estruturando uma nova plataforma chamada Somos Diversidade, que agregará recortes como gênero e raça.

Mas a verdadeira ambição das criadoras da Transempregos é extingui-la. "Nosso plano era acabar com ela em até 15 anos, já foram 7. É um negócio que só é sucesso se for falido, se deixar de ser necessário", disse Maite.

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Da escola religiosa ao ativismo

Nascida em uma família de classe média de Curitiba, Maite soube desde cedo que o tema da diversidade estaria presente em sua vida, mas enquanto crescia ele a fez ser alvo de preconceito.

Filha do meio, com um irmão mais velho e uma irmã mais nova, ela tinha ao seu redor construções muito bem delimitadas do que era ser homem e mulher. Isso gerava uma angústia crescente no seu interior: tentava imitar o irmão, mas se identificava com o universo feminino, que lhe era interditado pelo pai e pela religião — Maite estudava num colégio franciscano e era alvo de bullying pelos colegas.

O isolamento e o sentimento de inadequação culminaram em duas tentativas de suicídio na adolescência. Foi depois da segunda, aos 16 anos, que a família a levou pela primeira vez a uma consulta na tentativa de entender o que estava acontecendo. O médico a encaminhou para um terapeuta.

Foi ele o primeiro a falar que seu caso era de "transexualismo", terminologia que não é mais usada — na época, nos anos 1980, a transexualidade era tratada como doença.

Com a descoberta de ser uma mulher trans, começou a busca pela transição de gênero. Não foi fácil: terapia hormonal, cirurgias e acompanhamento por profissionais de saúde para pessoas trans ainda não estavam disponíveis pelo Sistema Único de Saúde e eram de difícil acesso. Depois de uma década de hormonização, ela passou pelo que chama de "calvário": 14 cirurgias genitais após tentar remover sozinha os testículos.

Além das dificuldades do processo de transição, Maite teve de lidar com outras violências da sociedade como a invisibilidade e a dificuldade de inserção no mercado de trabalho.

No quarto período da minha primeira faculdade, direito, fui procurar um estágio. Eu era uma das melhores alunas, era apaixonada por direito penal. Fui nos 20 melhores escritórios de direito penal de Curitiba e nenhum me quis. Entrei em outro período grande de depressão, achando que a culpa era minha, pela minha competência. Não sabia que era pelos tais vieses inconscientes

Maite Schneider, Cofundadora da Transempregos

Pryscilla K./UOL

O começo do ativismo

"Lá em 1990, quando tinha 18 anos, comecei a participar de movimentos pra me entender, porque não tinha literatura", disse. "A partir desse autoaprendizado, comecei a palestrar. Minha história ficou conhecida porque eu era uma das poucas pessoas que falavam sobre o assunto", lembra.

Frequentar espaços LGBTQIA+ também a fez se confrontar com seus privilégios pela primeira vez. Além da classe social, ela tinha o apoio da família, história bem diferente das pessoas que passou a conhecer.

Maite seguiu militando e contando sua história, na intenção de tornar a identidade trans mais visível. Já nos anos 2000, participou da fundação do Transgrupo Marcela Prado, ONG de Curitiba voltada à promoção dos direitos de travestis e transexuais, e da Associação Brasileira de Transgêneros (ABRAT).

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Atriz e sonhadora

Depois de abandonar o curso de direito, Maite se formou em Letras e Teatro. "Ainda tem este lado [artístico] que eu amo e misturo com tudo. Quero fazer muito mais arte ainda na minha vida", disse.

Atuou no musical "O príncipe desencantado", que ficou em cartaz por três anos, e na série "Hard", produção brasileira da HBO. E acaba de estrear na dublagem na segunda temporada da série "Eu Nunca", da Netflix, na qual empresta a voz à Senhorita Warner.

"A vida passa muito rápido. Eu já estou com meio século, então a gente tem que ser feliz no agora. Todo mundo nasceu pra ser semente de alguma coisa. E quando você pode ser a água que rega essas sementes pra elas conseguirem brotar... é bom fazer parte disso", diz.

Seu maior desejo para a população trans hoje é que tome a vacina da covid-19 e se mantenha viva para poder sonhar.

Eu quero que [pessoas trans] tenham direito a sonho e a transformar esses sonhos em propósitos e realidades. Se elas ficarem vivas e vacinadas, tenho certeza que consigo fazer elas voltarem a acreditar

Maite Schneider

Ciclo de Trabalho

Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.

Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.

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