Tem papel que é do Estado

Empresas são essenciais para pressionar governo por políticas públicas e exigir melhorias para a sociedade

Marcelle Souza Colaboração para Ecoa, de São Paulo Victor Vilela/UOL

As empresas já perceberam que ambientes de trabalho mais diversos são terreno fértil para a inovação. Além disso, os consumidores ficaram mais exigentes e o próprio mercado está de olho em companhias que promovam a inclusão de grupos tradicionalmente excluídos. O problema é que muitas das medidas adotadas pelo setor privado esbarram na falta de políticas públicas.

"A pauta da diversidade não é de responsabilidade exclusiva das empresas, mas é compartilhada com o Estado e a sociedade. As organizações sempre vão ter limitações para atuar nessa agenda", diz Ricardo Sales, sócio da consultoria Mais Diversidade.

Só que especialistas ouvidos por Ecoa dizem que as empresas são importantes na hora de apoiar e pressionar para que o Estado cumpra o seu papel.

Isso pode ser feito por meio do apoio aos movimentos sociais, aliados na identificação dos problemas e na proposição de soluções; pressionando o Executivo e o Legislativo a pautar programas e projetos que favoreçam grupos em vulnerabilidade social; e reagindo contra políticas de retrocesso, que prejudiquem o ambiente de negócios.

A seguir mostramos alguns dos gargalos das políticas de Estado, exemplos do que já tem sido feito e o papel das empresas na promoção da agenda de diversidade no mercado de trabalho.

Cadê o diploma?

Enquanto algumas empresas têm adotado estratégias para priorizar a contratação e a promoção de grupos minoritários, é comum que esbarrem na falta de formação e qualificação dos profissionais. "Às vezes, a vulnerabilidade é tão grande que as pessoas não vão conseguir ultrapassar barreiras anteriores, como de acesso ao estudo", diz Sales.

Adriana Barbosa, CEO da PretaHub e fundadora da Feira Preta, lembra que esse cenário só não é pior porque uma lei garante, desde 2012, a reserva de vagas em universidades federais para estudantes vindos de escolas públicas, pretos, pardos e indígenas. "Se não tivéssemos a Lei de Cotas para a inclusão da população negra, não conseguiríamos atender, nem em parte, à demanda do mercado hoje", afirma.

Apesar disso, especialistas apontam que esses estudantes ainda precisam de bolsas de estudo, habitação, transporte adequado, políticas de assistência social e respeito à sua identidade de gênero e orientação sexual para continuarem estudando.

"No caso das pessoas com deficiência, a gente depende de uma política de educação inclusiva, que ainda não se efetivou no Brasil, como o acesso à língua brasileira de sinais", diz a pesquisadora Anna Paula Feminella, da Enap (Escola Nacional de Administração Pública).

Cotas no mercado de trabalho

O Estado pode ainda regular a contratação por meio de cotas, tanto impondo a medida às empresas, como adotando normas específicas para os seus quadros. "As ações afirmativas são um mecanismo provisório para a correção de injustiças históricas", diz Ricardo Sales.

Exemplo disso é a Lei 12.990/2014, que estabelece a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos no âmbito federal para pessoas que se autodeclaram negras. A ideia é que, assim, o Estado dê o exemplo para o mercado e garanta um olhar diverso para as polícias públicas.

Há 30 anos outra lei prevê que empresas públicas e privadas reservem entre 2% e 5% das vagas para pessoas com deficiência. O problema é que poucas empresas oferecem condições para a permanência e promoção desses profissionais.

"A lei é uma política diante de uma cultura milenar que subestima a capacidade da pessoa com deficiência. Além disso, muitas empresas contratam, mas não temos apoio para galgar cargos dentro da companhia, e a pessoa fica no eterno primeiro emprego", explica Feminella.

Do ponto de vista das empresas, especialistas explicam que, primeiro, é preciso cumprir a lei e, assim, exigir do Estado, que garanta condições de transporte, assistência e acessibilidade aos seus funcionários.

Políticas transversais

Apesar das cotas promoverem o acesso de minorias ao mercado de trabalho, o Estado tem também importante papel para a sua manutenção: garantindo vagas em creches e escolas, transporte público eficiente, acessível e sem assédio ou violência, serviços de saúde adequados e equipamentos públicos que respeitem a identidade de todas as pessoas.

"O Estado tem que estar presente não apenas de forma simbólica, mas também com recursos e esforços concretos, com toda a sua capilaridade, para modificar as condições de acesso e permanência desses grupos no mercado de trabalho", explica Soledad Cutuli, pesquisadora da Universidade de Buenos Aires, que acompanhou a discussão sobre a lei que reserva 1% das vagas no âmbito federal para pessoas trans aprovada este ano na Argentina.

Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden anunciou medidas para reduzir a discriminação racial nas avaliações imobiliárias, além de um programa de incentivo a empreendedores negros, e prometeu ampliar em 50% o volume de contratos federais com pequenos negócios tocados por minorias.

No Brasil, o Estatuto da Igualdade Racial prevê uma abordagem multidisciplinar, com ações de educação, saúde, trabalho e renda, para as políticas de combate à desigualdade para a população negra.

Abertura ao diálogo

Outro caminho importante é que o Estado esteja de portas abertas ao diálogo com os movimentos sociais e que tenha mecanismos de participação da sociedade, como conselhos e comitês, para a discussão de caminhos e soluções.

Do ponto de vista do poder público, é preciso ter em seu quadro uma equipe diversa, disposta a escutar e que represente a sociedade brasileira.

O setor privado, por sua vez, pode participar desse processo em três frentes. A primeira é apoiando os movimentos sociais, por meio de financiamento, parcerias e criando espaços que deem visibilidade à sua agenda. "Eu vejo que essa é a via mais adequada e democrática de alteração do Estado", diz Michelle Morais de Sá e Silva, especialista em políticas públicas e professora da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos.

Em segundo lugar, por meio de bolsas de estudos em universidades públicas, com a finalidade, por exemplo, de formar mulheres e pessoas LGBTQIA+ em áreas com baixa participação desses grupos.

A terceira é fazer incidência no Executivo e Legislativo. "Um bom trabalho de advocacy, buscando influenciar o debate público quando há discussões de interesse, é parte do jogo democrático. Então, por que não fazer isso também quando se trata de políticas de diversidade e inclusão?", questiona Sales.

Contra o retrocesso

Por fim, especialistas dizem que as empresas precisam se posicionar quando direitos são ameaçados, como quando os deputados de São Paulo colocaram em pauta um projeto de lei que pretendia proibir a veiculação de propagandas com alusão a orientação sexual e a movimentos pela diversidade sexual. O texto recebeu fortes críticas não só de setores da sociedade civil, como gerou uma onda de ações publicitárias de marcas contrárias ao conteúdo considerado homofóbico.

Só no primeiro dia de mobilização, a consultoria Mais Diversidade identificou mais de 70 pronunciamentos de empresas que saíram em defesa da diversidade sexual e de gênero. Entre elas, estavam gigantes como Coca-Cola, Avon, Natura, Uber, Mercado Livre e O Boticário.

"Esse movimento foi inédito, porque as empresas têm muitas ressalvas de se posicionar no campo da política, já que tendem a achar que política e partido é a mesma coisa; e não é", diz Ricardo Sales. "Elas precisam se colocar, porque não existe a possibilidade de um ambiente de negócios favorável em um cenário de ataque às minorias."

A professora Michelle Morais concorda e diz que olhar para esses grupos é uma questão estratégica nacional de desenvolvimento. "Quando o Estado deixa de investir em diversidade e inclusão, o país passa a atrair menos investimento e perde competitividade internacional", diz.

Ciclo de Trabalho

Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.

Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.

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