Trabalhar para (bem) viver

Povo baniwa tem autonomia sobre seu tempo e compartilha o que é produzido. Como aprender com eles?

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Victor Vilela/UOL

"Eu me orgulho de dizer que sou doutora mas também sei fazer beiju, sei fazer farinha, ralo mandioca, carrego mandioca, capino roça, planto com minha mãe, faço tudo isso", diz Francineia Bitencourt Fontes, conhecida como Fran Baniwa, citando algumas das principais tarefas do cotidiano dos baniwas.

Ela foi a primeira mulher do povo a ter um mestrado e, em breve, se tornará também a primeira doutora, com tese sobre o papel das mulheres na sociedade baniwa, que será defendida no Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Na comunidade, desde cedo se aprende a trabalhar na roça, acompanhando os pais na lida diária. As crianças brincam, exploram o entorno, mas também observam e aprendem na prática a realizar as atividades que todos precisam fazer para viver — plantar, colher, caçar, pescar, cozinhar, fabricar utensílios.

Com uma população de cerca de sete mil pessoas em território nacional, os baniwas vivem na fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, em aldeias localizadas às margens do Rio Içana e seus afluentes, em comunidades no Alto Rio Negro e nas cidades de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos (AM).

Fran Baniwa ressalta a rica bagagem que carrega, que une o conhecimento de dois mundos, o indígena e o não indígena. Munida desses saberes, a antropóloga baniwa vê um contraste entre o status do trabalho e a organização do tempo em cada um.

"No capitalismo, a gente só pensa no trabalho, trabalho, trabalho e esquece que há um espaço para aproveitar, respirar ar puro, ter uma vida diferente. Às vezes, a gente acaba esquecendo de viver por causa do trabalho, ele nos escraviza", diz. "Mas também porque, no mundo não indígena, sem trabalhar você não sobrevive. Aqui não, a gente tem a floresta, da qual a gente tira o nosso sustento."

Quase todos os dias, os baniwas acordam, comem seu mingau e sua quinhapira — prato com tucupi, pimentas e peixe — e vão trabalhar. Tomada coletivamente, essa primeira refeição do dia os abastece para o trabalho que virá a seguir, explica o líder e curador de Ecoa André Baniwa.

"A língua baniwa também tem a palavra trabalho. É ideenhikhetti. É uma coisa fundamental na nossa cultura. Nossos pais — nossos ancestrais também, miticamente — recomendam que o homem e a mulher baniwa têm que trabalhar, têm que se esforçar, porque senão não vão se dar bem", diz ele.

Cada tipo de trabalho exige preparação, planejamento e leva tempo. Para caçar, por exemplo, é preciso determinar onde se dará a caçada e preparar as ferramentas — a zarabatana e o veneno colocado nas pontas das flechas.

Mas, diferentemente do trabalho da cidade, a jornada não dura o dia todo nem é determinada por um patrão. Os dias precisam ter lugar para o lazer, "itopitakhetti", que quer dizer brincar na língua baniwa.

Fran e André chamam atenção para o fato de que, na cidade, tudo tem um preço e que tudo na vida do trabalhador está delimitado pelo tempo e pelo dinheiro. Já entre os baniwas existe autonomia para determinar o que precisa ser feito.

"[Entre os baniwas] quem faz seu horário, o planejamento do que vai fazer naquele dia, no dia seguinte e assim sucessivamente é a pessoa, é a família. A gente próprio faz nosso horário dos trabalhos do dia a dia, a gente organiza o nosso tempo", diz Fran.

Além das atividades de subsistência, os baniwas também produzem e comercializam alguns itens para fora da comunidade. São conhecidos pela confecção de cestaria, traçada com uma planta chamada arumã, e pela produção de pimenta em pó. O artesanato é uma fonte importante de geração de renda para a comunidade, permitindo a compra de itens que não conseguem produzir.

Nem todos estão envolvidos nessa produção artesanal. Quando feita apenas para consumo interno, a cestaria geralmente vai sendo confeccionada aos poucos, em momentos diferentes do dia em meio a outras tarefas. Da retirada do arumã da floresta ao acabamento, um balaio, por exemplo, leva cerca de cinco dias para ficar pronto.

Esse ritmo muda quando há uma encomenda externa. André Baniwa é vice-presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana, entidade que intermedia a relação com os parceiros comerciais interessados nos produtos dos baniwas, e conhece bem essa dinâmica.

"Na produção para comercialização temos que acelerar esse processo de trabalho, envolver mais gente, porque temos prazo a cumprir. E a gente monitora isso também, porque não queremos entregar atrasado. Mas cada um se organiza para pescar e caçar à noite, para ter o que comer", diz.

Mas mesmo essa produção que dialoga com a economia capitalista de fora das aldeias precisa respeitar o calendário baniwa, que só aceita encomendas de março a novembro. O último e os dois primeiros meses do ano são reservados para os preparativos de festas, para a atividade de plantio e também para o descanso nas praias. Os baniwas também têm férias.

Trabalho de homem, trabalho de mulher

Na tradição baniwa, já houve uma rígida divisão de trabalho entre homens e mulheres. Normalmente, os pais transmitem aos filhos homens as tarefas que tradicionalmente competem a eles, como caçar e pescar, enquanto as mães transmitem às meninas os ensinamentos sobre trabalhos como a colheita da mandioca, o preparo da farinha e a limpeza das caças e dos pescados. Entre os baniwas, a produção artesanal de cestaria também é trabalho de homens.

Mas o fato é que, hoje, essa separação já não é tão rígida. "Antigamente a mulher ia pra roça, carregava, raspava e ralava mandioca, fazia farinha, limpava peixe, limpava carne, além de cuidar dos filhos. É um trabalho muito pesado. Hoje os afazeres são compartilhados com os maridos e os filhos e acho que isso é um ponto positivo", diz Fran.

Assim como na sociedade não indígena, são muitas as atuações possíveis. "Estamos em 2021 e muitos brasileiros não indígenas acreditam que o indígena não trabalha, que vive na aldeia ao deus dará, mas lá se planta, se caça. Indígenas trabalham também em funções da cultura não indígena. São professores, motoristas, empreendedores, artesãos, gerenciam instituições, projetos de meio ambiente. O indígena está em todos os campos, está na busca de ocupar espaços para ajudar nas suas demandas étnicas e também pessoais, econômicas", explica Anápuaká Tupinambá, criador da rádio Yandê.

Vida em harmonia com a natureza

Outra diferenciação do trabalho entre os baniwas para o da sociedade não indígena é que ele serve para atender às necessidades daquele que trabalha, de sua família e da comunidade, e não para acumular riqueza.

"O trabalho que eu conheço na área urbana é trabalhar para alguém. Na comunidade, trabalha-se para si e compartilha-se o resultado", aponta André Baniwa. A finalidade desse trabalho, segundo ele, é o bem viver, a felicidade.

O conceito de bem viver está na base da cosmovisão de vários povos indígenas latino-americanos, e compreende não só qualidade de vida para as pessoas, mas também uma relação de harmonia com a natureza.

Em paralelo à luta pela proteção de seu modo de vida, indígenas também vêm buscando maneiras de construir autonomia econômica frente ao desigual sistema capitalista. O criador da rádio Yandê Anápuaká Tupinambá tem mapeado empreendedores indígenas e quer fundar o primeiro banco digital indígena.

"Nós indígenas produzimos, criamos, fazemos negócios. Precisamos apresentar modelos de negócio que sejam sustentáveis, que possam manter nosso ativismo. O capitalismo vai estar aí e todos nós vamos ter que conviver com ele ou criar outras formas econômicas, e os povos indígenas não serão diferentes", diz.

A gente compartilha com nossos próximos e não espera um pagamento. É uma coisa que corre nas nossas veias. Na cidade, não. Se você não tiver dinheiro não toma água, não compra farinha, não compra peixe. Alguns acham que vão melhorar de vida [indo para a cidade] e pelo contrário, às vezes passam fome

Fran Baniwa, antropóloga

O mito do indígena preguiçoso

Autor do livro "Ociosos e sedicionários - populações indígenas e os tempos do trabalho nos Campos de Piratininga (século XVII)", o historiador e professor da UFRJ Gustavo Velloso pesquisou o trabalho forçado indígena na São Paulo colonial.

"A colonização foi, no fim das contas, um processo de tentativa de imposição de um controle sobre o tempo de vida e de trabalho das populações subjugadas. Não se tratava só de controle sobre o território ou de escravização de pessoas. Essas coisas estão conectadas, mas houve um processo muito intenso de disputa sobre esses tempos e os diferentes equilíbrios entre eles", diz.

Velloso explica ser falsa a afirmação de que a escravidão indígena durou apenas um curto período de tempo, anterior à chegada de africanos por meio do tráfico negreiro.

A escravização de indígenas no Brasil perdurou até o século 19, e, assim como africanos e afrobrasileiros, os povos nativos se rebelaram com frequência contra o modo de trabalho excessivo, repetitivo e contínuo imposto pela economia do colonizador. Com o tempo, foram tachados de preguiçosos.

André Baniwa afirma que essa visão equivocada e preconceituosa afeta os indígenas ainda hoje. "Vejo muito desconhecimento. Se eu levasse um cara que fala assim lá na minha comunidade, sem nem um real, e ele tivesse que fazer canoa dele, caniço dele, a roça dele, fazer tudo como os índios fazem, ele que iria virar preguiçoso lá na aldeia."

Ciclo de Trabalho

Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.

Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.

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