Propósito além do eu

Filósofo Roman Krznaric defende que trabalho ideal é cruzamento de talento pessoal e necessidades do mundo

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Kate Raworth

Entra ano, sai ano, e o mundo corporativo elege novas palavras para nortear o sucesso dos negócios. "Propósito" parece ser a palavra da vez. Algumas empresas até criaram um cargo específico, dedicado a implementar projetos sociais e ambientais para desenvolver o "propósito" da marca.

Para o filósofo australiano e escritor best-seller Roman Krznaric, essa também é uma palavra importante para aqueles que buscam um trabalho gratificante.

Um dos fundadores da The School of Life, o autor dos livros "Como encontrar o trabalho da sua vida" e "Como ser um bom ancestral", lançado em agosto deste ano, acredita que essa gratificação está em fazer algo que vá além de nós mesmos, por um propósito maior e, quem sabe, em benefício das futuras gerações.

Roman falou a Ecoa sobre os desafios a serem enfrentados pelos jovens de hoje ao escolherem sua atuação, as perspectivas pós-pandemia e a responsabilidade de pessoas e empresas com as gerações que virão.

Kate Raworth
Kate Raworth

Como encontrar o trabalho da sua vida?

Ecoa - A escolha de uma profissão costuma causar ansiedade nos jovens. Que conselho você daria para ajudá-los?

Roman Krznaric - Há uma citação que dizem ser de Aristóteles: "onde as necessidades do mundo e seus talentos se encontram, aí está sua vocação". Procurei na obra dele e não consegui achar em lugar nenhum, mas não importa. O importante nisso é reconhecer que existem problemas no mundo com os quais temos uma responsabilidade como seres humanos.

Quais são as necessidades do mundo, o que está acontecendo agora e que deveríamos estar enfrentando, como a crise climática? Mas também é sobre o que eu sou bom: meus talentos, aquilo pelo que tenho paixão. Para encontrar um trabalho gratificante é preciso um propósito maior do que o eu, mas não joguemos o eu fora.

Uma das ideias de "Como encontrar o trabalho da sua vida" é sobre ser um realizador amplo, um mestre de muitas coisas, como Leonardo da Vinci na Renascença, que era um artista, um cientista e um músico.

Você pode pensar: isso é um luxo. Mas, na verdade, acho que é o oposto. Hoje ninguém mais tem um trabalho garantido, não sabemos o que se deve aprender porque o ambiente de trabalho está mudando muito e talvez seu trabalho seja feito por uma máquina daqui dez anos. É preciso ser multifacetado, ter uma diversidade de habilidades, ser hiperadaptável.

O que fazer nessa situação?

Quando eu saí da universidade, eu experimentei, fiz todo tipo de trabalho. Fui jornalista, acadêmico, jardineiro, tentei marcenaria, pensei em ser professor de tênis. Não quero defender isso em um mundo onde nem todo mundo tem esse tipo de oportunidade. Mas acho que experimentar é a melhor maneira de descobrir o que você quer fazer.

Não sei como seria ter 20 e poucos anos, tendo acabado de sair da [pandemia de] covid. Há tantas limitações. Uma das ideias do "Como ser um bom ancestral" é que os jovens estão sobrecarregados com todo tipo de dívidas e problemas despejados neles pelas gerações mais velhas. Suas vidas estão sendo restringidas pelo que as gerações anteriores fizeram em termos de nossas economias e ecologias. E há jovens se organizando, dizendo, "ei, precisamos fazer algo sobre isso".

Como podemos tornar os benefícios de um trabalho gratificante coletivos, e não apenas individuais?

Algumas pessoas se realizam no trabalho fazendo algo só para elas. Talvez um artista. Ou pessoas que realmente acham gratificante ganhar muito dinheiro, porque saíram da pobreza. E isso é uma motivação real e profunda, não superficial. Mas o que as evidências da psicologia humana nos dizem é que nos sentimos mais realizados quando buscamos algo que vai além de nós, um propósito maior.

A questão é que esse propósito pode assumir várias formas. Pode ser encontrar uma cura para o câncer, dirigir uma organização em prol da floresta tropical, ou jogar futebol — que é sobre o seu talento, mas você também sente que está fazendo algo por pessoas de sua origem social ou raça.

Trabalhar em algo que é maior do que você tende a ser motivador. Em parte porque conecta você com outras pessoas e faz você se sentir bem. Ajudar os outros faz a maioria das pessoas se sentir bem.

Roman Krznaric, filósofo e escritor

Kate Raworth

"Um pedacinho de esperança empática que surge da covid"

A covid-19 causou um terremoto na maneira como muitas pessoas veem e fazem seu trabalho. Como podemos construir um ambiente de trabalho mais empático após esta crise?

A covid mostra que seres humanos são animais sociais. Veja o aumento de problemas de saúde mental entre os jovens por estarem isolados. Há uma fome por conexão social e vamos ver isso se manifestar no trabalho, em que tipo de trabalho importa para as pessoas. Posso estar errado sobre isso, mas acho que vai haver um aumento de pessoas querendo fazer coisas juntas, tanto no trabalho quanto no ativismo comunitário. É um pedacinho de esperança empática que surge da covid.

E acho que a estranha percepção de tempo que acontece durante a pandemia fez muitas pessoas pararem e pensarem sobre o que estão fazendo com suas vidas, se estão realmente realizadas. Acho que veremos muitas pessoas reavaliando seu trabalho. Estou começando a sentir isso quando faço webinars, muitas pessoas que trabalham em empresas parecem abertas a repensar, mesmo que seja um momento econômico difícil. Você vê pessoas dizendo "vou simplesmente largar esse emprego", mesmo que não tenham para onde ir.

Com rotinas de trabalho mais flexíveis, o que podemos fazer para nos conectarmos?

É claro que fica mais difícil quando não podemos conversar tomando café no escritório. Não nos conectamos, não nos apaixonamos, nem nenhuma das outras coisas que acontecem entre as pessoas. Por outro lado, acho que aprendemos a ser bons no uso da tecnologia, é apenas uma questão de aprender como se conectar [com os outros].

Não estou dizendo que seja uma utopia, mas realmente acho que apenas precisamos nos esforçar, como em qualquer relacionamento. Podemos fazer isso funcionar.

Quando você fala sobre uma mentalidade de legado, como isso pode se aplicar não apenas aos indivíduos, mas também às empresas?

Acho que é mais difícil gerar esse senso de legado nos negócios. Mas muitas pessoas que criaram empreendimentos sociais ou estão envolvidas com sustentabilidade estão pensando qual será o impacto de longo prazo desse negócio.

Um dos segredos do pensamento de longo prazo é que não se trata de tempo, mas de lugar. Existe uma pensadora brilhante nos Estados Unidos chamada Janine Benyus. Ela faz a seguinte pergunta: como outras espécies sobreviveram e prosperaram por 10 mil gerações ou mais? O que eles fazem é cuidar do ninho. Cuidando do lugar [onde vivem], estariam cuidando de seus descendentes. Eles não destroem o ecossistema no qual estão inseridos, ao contrário dos seres humanos. Então, nesse sentido, pensar a longo prazo é cuidar desse lugar, porque ele vai cuidar dos meus filhos e dos filhos deles, dar-lhes ar para respirar e água para beber. Essa é a base da vida.

Então, acho que as empresas que deixam legados, que são boas nisso, são aquelas que respeitam os limites ecológicos. Precisamos aprender a amar esses limites.

Por que devemos nos preocupar com como seremos vistos pelas gerações futuras com o legado que estamos deixando para elas?

Muitas pessoas estão apenas lidando com os problemas de suas próprias vidas hoje, com um membro da família que morreu de covid-19 ou com a perda do emprego. Por que devemos nos preocupar com as gerações futuras quando há tantas questões importantes hoje, da desigualdade de riqueza à desigualdade racial?

Creio que nunca antes na história da humanidade nossas ações tiveram impactos tão destrutivos para as gerações futuras. Pense na crise climática, as emissões de carbono ficarão no ar, o nível do mar seguirá aumentando por décadas. Pense na necessidade de nos planejarmos para a próxima pandemia que pode estar no horizonte. Pense nos riscos tecnológicos, como inteligência artificial e armas biológicas.

Minha filha acabou de passar do lado de fora da janela, e ela tem 12 anos. Ela pode estar viva em 2100. Ela será uma mulher velha, mas estará viva. A pergunta é: em que mundo ela vai viver? O que eu faço vai impactar seu futuro. Então, há uma questão muito fundamental sobre como essas gerações futuras vão nos julgar pelo que fizemos ou deixamos de fazer quando tivemos a chance.

Claro que há outra questão aí, mais complexa, sobre se há um conflito entre o que precisamos fazer hoje e o que precisamos fazer para ajudar as gerações futuras. Mas, para a área ambiental, mudar [a matriz energética] para energias renováveis está ajudando as pessoas hoje, melhora o ar que respiramos, mas também ajuda as gerações que ainda virão.

Às vezes, é claro, há emergências e precisamos investir dinheiro e energia em algo como a covid-19. Mas mesmo nesse caso, os países que lidaram relativamente bem com a covid-19 são os que tinham planos [de prevenção] de pandemia prontos — Taiwan, Coreia do Sul e alguns outros. E os países que não se saíram particularmente bem — Estados Unidos, Brasil, etc. — não tinham. Portanto, acho que há algo de bom no pensamento de longo prazo para todo mundo.

Como ser um bom ancestral?

  • Vivenciar o tempo profundo

    Visite uma árvore milenar, procure fósseis na praia. O começo de ser um bom ancestral é ter conversas sobre o tempo, sobre o que estamos fazendo como espécie, quanta destruição estamos criando neste curto período de tempo em comparação com a história cósmica.

  • Ter um pensamento de catedral

    Construir uma catedral é um plano de longo prazo, ela não estará terminada no tempo de vida de uma pessoa. Esse tipo de ideia tem muito a ver com justiça intergeracional. Devemos nos perguntar: como posso ter um pensamento mais de longo prazo na minha igreja, no meu local de trabalho, na minha comunidade?.

  • Ter uma mentalidade de legado

    Você pode se perguntar no final do dia: o que eu fiz ou não fiz hoje para ser um bom ancestral? Ou pela manhã: o que eu poderia fazer hoje para ser lembrado de uma forma positiva? Eu gosto de fechar os olhos e imaginar meus filhos falando sobre mim depois que eu estiver morto, dizendo 'essas foram as coisas boas que meu pai fez'

  • Considerar a perspectiva das novas gerações

    Quando converso com presidentes de grandes empresas ou líderes políticos poderosos, muitas vezes pergunto sobre o que seus filhos, netos, sobrinhos estão dizendo a eles sobre as mudanças climáticas. Todos eles têm um jovem em sua vida que diz 'você precisa se preocupar com isso'. Acho que essa é uma ponte para abrir nossas mentes.

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