Um puxa o outro

Como rede de empreendedorismo e consumidores negra é formada e ajuda na inclusão no mercado de trabalho

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Victor Vilela/UOL

Tem pouco mais de um ano que Juliana Trindade, 31, abriu um negócio próprio. O Nega Ju é o primeiro salão afro do Jardim Campo Belo, periferia de Campinas (SP). Começou a funcionar recebendo a clientela em um espaço tão pequeno que três pessoas já causavam lotação. E como lotou. Tanto que ela precisou mudar o estabelecimento três vezes de lugar e contratar cerca de 20 pessoas para conseguir absorver o movimento.

Todas as funcionárias que já trabalharam ou ainda trabalham por lá são mulheres negras. A maioria chegou contando sobre o sonho que tinham de fazer o mesmo que ela. Diziam que, depois de ver o exemplo de Juliana, ficaram inspiradas para fazer igual. Que gostavam de mexer com cabelo e também queriam poder ter um salão para chamar de seu.

Muitas tinham perdido o emprego durante a pandemia, e acabaram ficando para ajudar Juliana no salão, enquanto ela, por sua vez, as ajudava ensinando tudo que tinha aprendido nos cursos de que participou no ano anterior sobre cabelo e gestão de empresas. Três delas abriram o próprio salão — com apoio de Juliana, que chegou a fazer parceria com escolas profissionalizantes para conseguir cursos a um preço mais baixo para as vizinhas. Viraram concorrência, sim, mas ela diz que não vê isso como algo ruim.

"Pelo contrário, só ajuda a fortalecer a economia da minha comunidade. Sempre me questionei por que os negros não se ajudavam mais por aqui. Se eu posso ajudar uma pessoa igual a mim a ganhar o pão de cada dia, por que não fazer? Principalmente nós, negros, a gente tem que aprender a nos ajudar ou a gente nunca vai sair dessa mesmice que a gente passa desde a escravidão, né?"

Empreender para sobreviver

A história de Juliana no empreendedorismo começa em maio de 2020. Foi o marido quem sugeriu a ideia de abrir um salão, já que desde os 6 anos ela costumava trançar os cabelos das irmãs e das amigas. Nunca tinha se imaginado como dona de um negócio. Mas naquele momento, dois meses depois do primeiro caso de coronavírus no Brasil, Juliana foi demitida do salão onde trabalhava no centro da cidade. O desespero bateu, principalmente por causa das três filhas, de 3, 6 e 8 anos. Precisava pagar as contas e não tinha como.

Segundo levantamento do Instituto Feira Preta sobre empreendedorismo negro no Brasil em 2019, muitas dessas pessoas, assim como Juliana, começaram a empreender por necessidade. Mas diferente dela, a maioria (83%) ainda não tem condições financeiras de contratar funcionários.

Como conta Maria Angélica dos Santos, professora de direito empresarial, doutoranda em direito e autora do livro "O Lado Negro do Empreendedorismo", o empreendedorismo negro existe desde a época da escravidão e muito comumente era usado para "transformar as realidades de forma mais imediata, fosse comprando suas liberdades ou dos seus próximos, fosse fortalecendo laços fraternos e engajando propósitos de luta e libertação." Para a especialista, empreender sendo uma pessoa negra no Brasil ainda é um grande desafio justamente por causa desse passado colonial que ainda faz parte do presente racista do país.

União para desenvolver o território

"Acontecia naturalmente e eu nem percebia. Tem coisas que não precisam de muita técnica, né? Você chama e a pessoa vem", assim a cozinheira Mara Luiza Carvalho, 56, explica o motivo de só contratar pessoas negras e da quebrada dela, na região do Grajaú, em São Paulo (SP), para trabalhar com ela no Sabores Divinos, bistrô de comida "boa, de verdade".

Para ela, é importante ajudar as pessoas que a cercam porque isso significa ajudar a fortalecer a comunidade onde mora. A contratação mais recente, por exemplo, nem foi porque precisava de ajuda no restaurante. "Ela estava com depressão, e eu sabia que a menina sabe fazer um doce incrível. Chamei para trabalhar aqui com a gente. Mas eu conto isso para dizer que era uma mulher incrível trancada dentro de um quarto porque não conseguia arrumar um emprego, entende?", diz.

Nessa tentativa de fortalecer o povo de onde mora, ela e a filha, a produtora cultural Bárbara Terra, começaram a promover feiras nas ruas do bairro. Em tempos não pandemicos, as feiras aconteciam para reunir todos os empreendedores negros do Grajaú, que vendiam seus produtos ou serviços no local.

Mãe e filha, então, criaram a Nóis por Nóis, uma rede de mulheres negras empreendedoras que tem a missão de ajudar no desenvolvimento econômico da quebrada. Hoje, elas mapeiam a região para descobrir quem são os empreendedores de lá, inclusive os que ainda nem sabem que o que fazem é empreender. Já encontraram 260, todos com microempresas. O objetivo é unir essas pessoas, principalmente para fortalecer a economia local enquanto realizam trocas de experiências e serviços entre si e as pessoas da região.

Vejo muita gente de fora chegando aqui e ficando de boca aberta, surpresa com o que a gente faz. Não sei por quê. O que tem aqui, tem lá na Vila Madalena. Por isso falo que o que a gente não quer mais é ter que atravessar a ponte para poder empreender. A gente quer crescer aqui e com o nosso povo preto

Mara Luiza Carvalho, empreendedora e dona do bistrô Sabores Divinos

Black Money à brasileira

Desde 2018 pesquisando sobre empreendedorismo negro, a professora Maria Angélica chegou à conclusão de que existem inicativas que ajudam a fortalecer essa rede: dão mais suporte ao dono de negócio negro e, consequentemente, influenciam na possibilidade dessas pessoas gerarem mais emprego.

Uma delas é o "black money" ("dinheiro negro", no inglês), movimento que nasceu entre comunidades negras dos Estados Unidos que queriam estimular que pessoas negras comprassem produtos ou serviços de negócios de outras pessoas negras. "Afroempreendedorismo e Black Money são fenômenos que juntos podem ser potencialmente transformadores", diz Maria Angélica. Mas, afirma, não se pode nutrir a ilusão de que é fácil promover o movimento no Brasil.

A empreendedora maranhense Karolyne da Luz conta que tenta ao máximo comprar só de pessoas negras, especialmente de mulheres. Essa preocupação começou quando dava aula para microempreendedoras em um curso da ONG Formação, que atua em nove municípios da região da Baixada Campos e Lagos Maranhenses.

"Conseguia observar que aquelas mulheres pretas passavam vários perrengues para conseguir empreender. E sempre que podiam chamavam mais mulheres pretas para trabalhar com elas. Percebi que tem muita empreendedora negra como eu ao meu redor: uma amiga tem uma lanchonete, minhas tias têm salão... É a gente que movimenta o microempreendedorismo no país, né?", diz ela.

Fortalecer a rede

Outra forma de apoiar os negócios dessa rede de empreendedores negros foi desenvolvida pelo administrador Luis e pela psicóloga Jenifer, do Jardim São Luís, em São Paulo (SP). A Empreende Aí é uma escola de negócios da periferia para a periferia que nasceu em 2015 e trabalha em três frentes: educação empreendedora, gestão de espaço de trabalho e administração de um fundo de microcrédito para apoiar financeiramente esses empreendedores da ponta.

"A gente trabalha para identificar habilidade e competências nessas pessoas para que elas possam empreender e gerar renda a curto prazo, porque grande parte empreende por necessidade e precisa gerar renda o mais rápido possível", conta Jenifer. O próprio quadro de funcionários da Empreende Aí é um reflexo do que os donos querem passar para a comunidade.

"Olho bastante para como as pessoas que já têm dinheiro costumam ganhar ainda mais dinheiro: quais estratégias elas usaram que a gente pode replicar? Uma das principais que percebi é: elas continuam comprando entre elas e contratando eles mesmos. Não é uma novidade, pessoas brancas fazem isso há tempos. Então, se eu quero manter o dinheiro circulando entre a nossa comunidade, primeiro, temos que ter bons negócios que tenham clientes e com mais contratação de pessoas da própria comunidade. Assim a gente cria essa rede propositiva", diz Luiz.

Ciclo de Trabalho

Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.

Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.

Ler mais
Topo