Better Call Veronica

Criadora do Faxina Boa, Veronica Oliveira transformou momento de dificuldade em negócio de sucesso e esperança

Camilla Freitas De Ecoa, em São Paulo Mariana Pekin/UOL

Encarar a vida sorrindo não costuma ser tarefa muito fácil. Mas Veronica Oliveira conseguiu fazer do bom humor um forte aliado quando decidiu começar um novo trabalho como faxineira, depois de uma crise depressiva que a deixou um mês internada numa clínica psiquiátrica em 2016.

Veronica trabalhava com telemarketing, mas a empresa quebrou e ela se viu sem emprego. A nova carreira, contudo, veio do acaso. Fez faxina na casa de uma amiga, sem compromisso, e teve um estalo. "Quando ela me pagou, pensei no quanto aquilo poderia ser rentável."

Assim, criou o Faxina Boa para oferecer seus serviços com anúncios engraçados como "Casa zoneana? Better Call Veronica", em referência à série Better Call Saul, da Netflix. A página foi crescendo à medida que ela também compartilhava histórias pessoais sobre o dia a dia limpando casas. O sucesso foi tão grande que ela montou uma rede para fazer a ponte entre profissionais de faxina e clientes que tocava sozinha até virar influencer e ter como principal fonte de renda a produção de conteúdo para marcas.

Mas não é só de "publi" que vive o Faxina Boa. Veronica gosta de compartilhar por lá histórias do seu tempo de faxineira buscando para inspirar outras domésticas e também abrir debates sobre a valorização desse trabalho no Brasil.

Essas histórias e conselhos também estão reunidos no livro "Minha vida passada a limpo: Eu não terminei como faxineira, eu comecei", lançado em novembro de 2020. "Uma das minhas grandes prioridades, hoje, é sempre trazer outras pessoas junto comigo, justamente para que não seja uma coisa vazia. Acho que isso geralmente acontece com quem já passou por muita dificuldade", comenta.

Mariana Pekin/UOL
Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Ecoa - Você acha que a pandemia ajudou a valorizar o trabalho doméstico?

Veronica Oliveira - As pessoas aprenderam a valorizar o trabalho doméstico porque passaram a ver a própria casa de uma forma diferente. Se antes a pessoa se recusava a comprar um produto bom porque era mais caro, agora que passou a limpar a própria casa, compra porque sabe que aquilo vai tornar o trabalho mais fácil. Honestamente, eu não imagino essas pessoas pagando melhor para quem vai limpar a casa delas ou tratando a pessoa melhor, mas que ela sentiu na pele o quanto o trabalho é duro, isso ela sentiu.

E por que você acha que é tão difícil as pessoas valorizarem o trabalho doméstico?

Porque as pessoas costumam dizer que qualquer um faz. Mas quem acha que qualquer um faz demora três dias para limpar um apartamento de 50 m². E isso é coisa de quem nunca teve que arrumar a própria cama e que só quando foi fazer o intercâmbio na Europa é que teve que fazer alguma coisa. Me incomoda, por exemplo, quando vira notícia gente famosa que nunca tinha lavado louça na vida e agora lavou. Isso não é bonito, não é legal.

Se a pessoa trabalha com internet e a empresa tem um computador ruim, ela não vai performar bem. Então, se você não compra um produto bom, quem trabalha limpando sua casa não vai performar bem

Veronica Oliveira, criadora do Faxina Boa

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Você já comentou em outras ocasiões que sua avó foi empregada doméstica. Você conversava com ela sobre o trabalho?

Frequentei muito a casa onde minha avó trabalhou por 33 anos. No meu livro, conto sobre isso porque eu fui muito próxima dos filhos da patroa dela e eles são uma família muito tradicional, aquela galera com sobrenome gigante que vai no clube jogar tênis. E eu via minha avó comendo na área de serviço, via a forma que a dona da casa falava com ela, percebia que tinha essas diferenças. Tanto que, quando comecei a trabalhar, pensava que essas coisas tinham ficado naquela época. Cara, não! Desde o elevador de serviço até a comida diferente, as coisas estão todas do mesmo jeito.

Cara, quando comecei a trabalhar com faxina, eu morava em um cortiço e uma das histórias que mais me pega, até hoje, é de um casal de médicos que não queria ter filhos, mas que morava em um apartamento com três suítes. Era só eles dois e tinha três suítes, mais o banheiro de empregada e um lavabo. Eles com cinco banheiros e eu morando em um cortiço com um único banheiro do lado de fora, compartilhado com umas 40 pessoas. Uma hora não aguentei e perguntei qual era o sentido de ter cinco banheiros, e a dona da casa me respondeu que um dos banheiros era só pra ela pentear o cabelo e usar o secador sem irritar o marido [risos].

Você encara seu trabalho de forma muito bem-humorada, até ri dessas situações. Isso ajuda a deixar o trabalho mais leve?

Eu dou risada e tento fazer piada, mas a vontade é de xingar [risos]. É sempre muito difícil lidar com esse tipo de situação, porque, no final das contas, elas acabam sendo muito dolorosas. É o tipo de coisa que me incomodava tanto que hoje vejo como isso perturbou a minha cabeça, o meu apartamento é muito parecido com os apartamentos que eu limpava.

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

E você compartilha muitas dessas histórias nas suas redes sociais...

Quando conto esse tipo de coisa as pessoas falam que eu consigo levar para um lado muito bem-humorado e elas acabam se identificando com essas situações. Mas muitas não conseguem ver as coisas assim com bom humor e falam que queriam fazer do jeito que eu faço porque essas coisas parecem não me abalar. Abalar até abala, tem situações que eu passei há quatro anos que ainda não digeri, mas aí a terapia também me ajuda. Eu tento justificar o comportamento daquela pessoa comigo, tento relevar e nisso eu vou tentando ser uma pessoa mais tranquila.

Mas tem os feedbacks positivos de outras empregadas domésticas, não tem?

Tem sim! Teve uma menina que me contou que por conta da faxina conseguiu sair de um casamento horroroso porque passou a ganhar bem e hoje voltou a estudar. É muito legal ver meninas que fazem faxina contando que pagam a faculdade dos filhos ou que conseguiram comprar uma casinha na periferia. Teve uma até que falou que conseguiu comprar duas, uma para morar e a outra para alugar.

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Você acha que o trabalho doméstico remunerado deveria deixar de existir no futuro?

Não, porque não é viável. A gente sabe que em alguns casos são temporários. Muitas vezes fiz faxina para quem se acidentou e, além disso, tem pessoas que têm alguma necessidade permanente. Muita gente não entende a necessidade do outro e julga. Quantas vezes a gente já não viu pessoas, e eu já passei por isso, que estão passando por um processo depressivo e não levantam nem para tomar banho, ainda mais para limpar a casa. São momentos em que você precisa de ajuda. Mas eu também brinco que a gente ensinou pro Enzo e pra Valentina que eles são bons demais pra lavar o próprio copo e eles começaram a achar que precisam de alguém limpando para eles o tempo todo, e não é real.

Você tem filho dentro do espectro do autismo e postou recentemente um vídeo falando sobre a dificuldade de encontrar uma escola para ele. Como está sendo esse processo?

Que loucura que foi isso, mas o mais engraçado é que assim que saiu em portais de notícia, a dona do colégio achou meu telefone, me ligou e falou que foi um erro da moça da secretaria. A culpa já caiu na funcionária, coitada. A escola se ofereceu para receber ele, mas eu acabei não colocando ele nessa escola, uma outra entrou em contato comigo e ofereceram uma bolsa para ele estudar. Mas esse é um tipo de situação muito comum para quem é mãe de filhos no espectro do autismo. Eu recebi mensagens de mães falando que isso já tinha acontecido com elas umas seis vezes.

Que conselho você dá para outras faxineiras que, nesse momento de pandemia, a gente sabe que podem estar passando por dificuldades semelhantes às que você passou?

É sempre importante lembrar para as pessoas que foi no meu momento de maior dificuldade que eu descobri uma força que eu nem sabia que tinha. Às vezes a gente pensa muito que as coisas só vão mudar quando a gente tiver uma coisa muito específica e eu pensava que talvez fosse o diploma, ou uma mudança física, que talvez fosse, sei lá, o dinheiro mágico da herança do parente que eu nunca vi e que ia mudar a minha vida [risos]. E depois, no final das contas, não foi nada disso, foi através do esforço do meu próprio corpo e com zero grana que descobri uma forma de fazer a vida ser diferente e as coisas deram certo.

Por que a gente tem que passar tanto sofrimento para depois contar uma história boa? Quero que as nossas narrativas do futuro comecem assim: não, eu nunca passei necessidade.

Veronica Oliveira

+ Entrevistas

Thalma de Freitas

"Enquanto existir o quarto de empregada, a luta continua"

Ler mais

Caco Barcellos

"A indignação me dá energia para contar histórias"

Ler mais

Thiago Amparo

"Não queremos mundo mais colorido, e sim mais justo!"

Ler mais
Topo