LAST OF US

'Fungo mortal' em The Last Of Us pode manter baratas longe de sua casa e o planeta funcionando em harmonia

Giacomo Vicenzo (texto) e Carol Passos (Ilustrações) De Ecoa, Em São Paulo (SP) Carol Passos

Um corpo é rasgado vorazmente por filamentos que rompem cabeça e tronco - a vítima perdeu o controle dos seus movimentos e de seu cérebro nos últimos dias e agiu como um zumbi controlado por uma infecção aguda. Parece ficção, mas esse é um fim comum de insetos infectados pelo fungo do gênero Cordyceps (Ophiocordyceps unilateralis sensu lato), que está presente em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, já tendo sido observado no bioma Mata Atlântica.

Foi esse fungo que inspirou a história da série e do jogo 'The Last Of Us' (HBO Max), que é ambientada num mundo em que o Cordyceps evoluiu adquirindo a capacidade de infectar e parasitar humanos, como faz com insetos.

Na ficção, o resultado foi que boa parte da humanidade foi transformada em zumbis violentos. Por sorte, os fungos do tipo cordyceps não representam perigo e nem capacidade de nos infectar.

Na realidade, esse e outros fungos têm função importante no meio ambiente, na alimentação humana e até mesmo na manutenção do mundo como o conhecemos. Sem esses organismos nossa vida seria muito mais difícil e possivelmente improvável.

A má notícia é que o aquecimento global está alterando o padrão de alguns desses seres e diminuindo a sua reprodução.

Fungo de 'The Last Of Us' ataca humanos?

O fungo cordyceps que inspira a série faz parte da família de entomopatogénicos, que parasitam diversos tipos de insetos para sua sobrevivência.

"Entre estes insetos estão besouros, formigas, moscas, pulgões, lagartas e borboletas", diz o biólogo Filipe Pagin-Cláudio, que atualmente desenvolve pesquisas com fungos em seu mestrado no Instituto de Pesquisas Ambientais do Estado de São Paulo (IPA/SIMA).

Já a capacidade de parasitar humanos e outros mamíferos fica apenas na ficção, pois a proteção de nosso organismo é muito mais complexa e eficiente do que a desses insetos.

"A resposta alérgica é uma prova do quão eficiente o nosso organismo é: ao primeiro sinal de perigo, ele bloqueia todos os canais para não deixar a ameaça se mover lá dentro da gente, por isso o nariz entope, a garganta fecha, etc.", explica o biólogo e professor Kayron Passos.

Passos aponta que nos insetos, sobretudo nos artrópodes, existe uma cavidade, como um espaço vazio, onde fica a hemolinfa (líquido semelhante ao sangue humano). No entanto, não há separação entre os fluidos - deixando esses seres mais vulneráveis ao fungo.

"Os artrópodes, de forma geral, não têm vasos condutores complexos como os humanos. Eles transferem oxigênio de uma forma muito mais eficiente, mas outras habilidades deixam a desejar, como o sistema imunológico. Já os humanos têm um exército de leucócitos ["os soldados do sistema imunológico"] à disposição para nos defender", afirma o biólogo.

O zumbi e as baratas

Apesar de parecerem mortais, os fungos dessa família atuam como balanceadores do ecossistema e podem até mesmo ser usados para combater pragas em culturas agrícolas.

"Os fungos parasitas de insetos têm como especial função o controle populacional, ao regularem o número de seus hospedeiros, que quando desbalanceados representam perigos aos sistemas agrícolas e naturais, atuando como pragas", afirma Pagin-Cláudio.

De acordo com o pesquisador, é possível que esses fungos sejam aplicados como controladores biológicos por meio de aplicação direta de seus esporos nas áreas de interesse - impulsionando o balanço populacional parasita - hospedeiro, ou podem ser aplicados, graças às substâncias químicas que produzem, na fabricação de inseticidas.

Além de útil no controle de pragas, esse fungo pode afastar as temíveis baratas da sua casa — ao menos em teoria. É que as baratas também são parasitadas por esse gênero de microorganismos. Embora não sejam suas principais 'vítimas', elas estão vulneráveis a eles, como apontado em artigo publicado na revista científica Hindawi, com sede em Londres.

"É possível que algumas baratas tenham deixado de entrar em sua casa porque o fungo 'predou' o ninho delas, mas também depende da região. Esse fungo prefere regiões úmidas e amenas, e não é necessariamente um padrão dele parasitar as baratas urbanas", diz Passos.

Mundo sem fungos: grande cemitério sem antibióticos

Fungos são responsáveis por um mundo melhor? Sim, os fungos estão presentes na alimentação humana, dão sabores únicos a pratos que vão do molho de soja (shoyu) ao queijo gorgonzola; da cerveja ao vinho. Eles estão por trás, também, da criação do primeiro antibiótico - a penicilina, que foi descoberta em 1928 pelo pesquisador britânico Alexander Fleming, e é usada até hoje em dia, sendo considerada um medicamento de amplo espectro, ou seja, que combate diversos microrganismos.

Mas, mesmo longe da cozinha e da farmácia, nossa vida seria muito mais difícil sem o reino fungi por aqui.

"Sem os fungos; fauna, flora e humanidade não existiriam da forma como a conhecemos. Pois, [eles] são responsáveis por permitir a colonização das plantas nos ambientes terrestres há cerca de 400-500 milhões de anos. Sem as plantas, nos ambientes terrestres, não teríamos oxigênio suficiente [para existirmos]", diz Pagin-Cláudio.

O pesquisador ainda aponta que sem a presença dos fungos a condição natural em terra firme seria morte, e não a vida. "Eles são responsáveis por grande parte da decomposição da matéria morta que resulta na disponibilização de nutrientes e na manutenção espacial (limpeza de resíduos orgânicos mortos), conferindo então vitalidade aos ecossistemas terrestres", afirma Pagin-Cláudio.

Para Gabriela Castro, mestre em Pesquisa Clínica pelo INI Fiocruz (Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas) e microbiologista no laboratório Richet Medicina e Diagnóstico, em um cenário sem a presença de fungos o mundo poderia ser parecido com um grande cemitério a céu aberto, pois o processo de decomposição seria prejudicado e impossibilitaria a retirada de nutrientes de organismos mortos.

"Desta maneira, nenhuma nova vida poderia ser produzida, devido à ruptura deste fluxo. Seria necessário que a reciclagem de nutrientes fosse realizada em processos laboratoriais. Em consequência, os corpos passariam a se acumular intactos por muito mais tempo, esgotando os nutrientes do solo, pois a matéria orgânica não retornaria para a natureza [como acontece normalmente]", conta a microbiologista. Parece uma cena de filme (ou game) de terror, né?

Aquecimento Global: ruim para 'fungos do bem'; bom para 'perigosos'

Apesar de os fungos não liderarem a lista de inimigos que podem exterminar a humanidade, o inverso está mais próximo da verdade.

Um grande vilão para o fim dos fungos [ao menos os benéficos] já está entre nós: o aquecimento global, que pode estar afetando diretamente organismos que agem na decomposição de matéria orgânica morta, por exemplo.

De acordo com Pagin-Cláudio, pesquisas sugerem que as mudanças climáticas causam declínio na reprodução e desempenho de espécies de fungos que são essenciais para 'reciclagem do meio ambiente'. Ao mesmo tempo, as espécies causadoras de doenças em animais e plantas devem aumentar e ampliar o seu alcance geográfico com as mudanças climáticas, que têm a atividade humana como sua principal causa.

Assim aponta uma pesquisa publicada na revista científica Ecology da Ecological Society of America (2018), e veiculada na National Library of Medicine, que mostra os impactos das mudanças climáticas na diminuição de uma das fases do ciclo de vida dos fungos decompositores no meio ambiente.

Por outro lado, as mudanças climáticas criam um cenário ideal para os fungos que realmente podem assumir um posto de vilão para os seres humanos e animais, como o 'Fungo Comedor de Carne', registrado em zonas áridas dos EUA, que em casos graves pode acometer o cérebro e levar a morte de pessoas como eu e você [raramente]. Em um cenário de alto aquecimento, pode existir um aumento de 50% de casos e, de quebra, a expansão do fungo para outros locais.

Mas aqui em nosso solo, o fungo Sporothrix brasiliensis, que inicialmente infectava gatos no Rio de Janeiro, ocasionando feridas nas suas peles, passou a preocupar por ter se espalhado para outros estados e começado a afetar humanos e cães. A causa mais provável? Os desequilíbrios ambientais causados por seres humanos ao ocuparem (e desmatarem) mais áreas da natureza.

+Especiais

@melhummel/divulgação

Sepultura

"O genocídio indígena pode ser evitado": banda fala sobre ecologia e viola caipira

Ler mais
Keiny Andrade/UOL

Teco Martins

Vocalista do Rancore largou a cidade para criar uma agrofloresta no campo

Ler mais
Carol Quintanilha / ISA

Inovação

Juvencio Cardoso abriu caminhos e potencializou educação indígena no Amazonas

Ler mais
Topo