MENINO DO IRAJÁ

Com 70 anos de carreira, o fotógrafo Walter Firmo já produziu mais de 140 mil imagens e ganha exposição em SP

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo

Walter Firmo é um menino. Aos 84 anos, não admite ser chamado de senhor. Pela vitalidade e jovialidade que exibe, entende-se por que estranhe o tratamento. Ele mesmo se diz "um menino, um saci, um encantador do Irajá", bairro da Zona Norte do Rio onde foi criado.

A despeito da alma de garoto, Firmo tem quase 70 anos de carreira e é um dos maiores documentaristas da vida e da diáspora negras no mundo. Desde meados do século passado, ele registrou em suas fotos ícones, manifestações culturais, cotidiano e afetos da população negra — principalmente no Brasil, mas também em países como Cuba, Jamaica e Cabo Verde.

Em 30 de abril de 2022, o fotógrafo carioca inaugurou no IMS Paulista a maior exposição já feita de seu trabalho, com mais de 260 obras. Ainda é pouco perto de sua produção monumental: a instituição mantém em comodato mais de 140 mil imagens produzidas por ele. Na véspera da abertura, em meio aos últimos ajustes da montagem, Firmo falou a Ecoa sobre suas andanças pelo Brasil e por outros territórios da diáspora, narrando momentos-chave de sua vida e obra.

Fotografei você na minha Rolleiflex

Walter Firmo se lembra do Irajá de sua infância como um paraíso terrestre: o céu azul, a casa da avó, a população suburbana em grande parte negra. Da adolescência, uma recordação marcante é a inauguração do Maracanã e a Copa de 1950. Já a Zona Sul do Rio ele só foi conhecer quando começou a trabalhar no jornal Última Hora como aprendiz, no fim dos anos 1950. Até então, só havia circulado entre o subúrbio e a Cinelândia, no centro, aonde podia chegar de bonde.

O interesse pela fotografia veio quando ainda era jovem, despertado pelas fotos do piauiense José Medeiros (1921-1990) na revista O Cruzeiro. A possibilidade de fotografar em uma aldeia indígena num dia, em Paris no outro, em Copacabana ou na Bahia no seguinte o encantava. Era o que fazia Medeiros, um dos principais fotógrafos da geração que, a partir dos anos 1940, renovou a linguagem do fotojornalismo no Brasil

Firmo começou a fotografar aos 15 anos. Seu pai, ao saber do interesse do filho pelo ofício, trouxe de presente de Hamburgo, Alemanha, uma câmera Rolleiflex. "Papai viajava muito como oficial da Marinha e sempre foi de espírito aventureiro. Herdei isso dele", diz.

Já a mãe não se animou com a ideia de um filho fotógrafo: "Ela queria que eu fosse doutor, advogado, aquela coisa de classe média de querer ver o cara com o canudo de papel na mão." A briga foi tanta que Firmo até fugiu de casa, sendo acolhido por um tio. Ao fim de quatro dias, fizeram as pazes e a escolha de profissão foi aceita.

Seus pais eram paraenses, mas de linhagens familiares bem distintas. A mãe era de Belém, de família branca com origem portuguesa e da classe média. Já o pai, negro e ribeirinho, nasceu em uma palafita à beira do Rio Amazonas, em Monte Alegre, município próximo a Santarém.

Quando Firmo tinha 17 anos, seu pai o levou pela primeira vez para conhecer o lugar onde tinha nascido. O fotógrafo voltaria várias vezes à região, onde ainda se encontravam familiares seus.

"Fiquei surpreso com aquele outro Brasil tão diferente. Aquilo me emocionou de tal maneira que começou a brotar na minha cabeça a ideia de fazer um trabalho jornalístico ali", disse.

Me apaixonei por aquele lugar, pelo inusitado e soberbo, a floresta enorme, o rio descomunal.

Walter Firmo, fotógrafo, sobre como foi visitar pela primeira vez o baixo Amazonas

Um prêmio Esso para a Amazônia

Aos 18, depois de cumprir o Serviço Militar Obrigatório, Firmo foi contratado como fotógrafo da Última Hora em tempo integral, ganhando um bom salário. "Seis meses depois eu estava com uma lambreta!", conta.

Já conhecido como o rapaz "magrinho, com cara de criança, que era o diabo na fotografia", foi chamado em 1960 para integrar a equipe do Jornal do Brasil, que passava por uma reformulação. Nos anos seguintes, passaria também pelas revistas Realidade e Manchete, que deram espaço de destaque à fotografia em suas páginas.

Um dia, com um mapa do Amazonas aberto sobre a mesa do chefe de redação do Jornal do Brasil, Alberto Dines, o fotógrafo sugeriu percorrer cidades e povoações ribeirinhas do Amazonas e do Solimões, documentando paisagens, disputas políticas e a população. Dines aprovou a ideia.

A série de reportagens foi publicada e venceu o Prêmio Esso em 1964. Firmo, que tinha 26 anos, assina as fotos e também o texto. Leitor apaixonado de Machado de Assis, Lima Barreto e Nelson Rodrigues na juventude, ele se dava bem com a escrita, mas constatou que ela atrapalhava o clique. "Perdi muitas fotos escrevendo", diz contrariado.

Hoje, o olho vivo para capturar imagens segue em plena forma. Companheira de Firmo há 15 anos, a piauiense Lili Machado conta que andar ao lado dele na rua ainda a surpreende. "Eu não vejo nada, aí ele para, olha para o chão e faz uma foto e eu fico impressionada com o que ele é capaz de ver", diz.

Negro é lindo

Em 1967, aos 30 anos, Firmo foi enviado pela revista Manchete a Nova York para atuar como correspondente. Ficou lá por seis meses. Foi uma experiência transformadora, mas não só pelo contato com a atmosfera cultural da cidade, com o trabalho de fotógrafos como Gordon Parks ou com as reivindicações do movimento pelos direitos civis.

Durante o período no exterior, foi um episódio de racismo à brasileira que o fez "perceber que era diferente", como coloca. Um colega seu na Manchete escreveu à sucursal norte-americana dizendo não entender terem enviado para lá um "mau profissional, analfabeto e negro". O fax foi mostrado a Firmo pelo chefe de redação e o deixou indignado.

"Aí caiu a ficha. No Brasil, nunca pensei que eu fosse negro, pra mim era tudo igual. Era muito ingênuo. É uma questão de consciência também: me descobri político e politizei a minha vida", disse.

O episódio repercutiu no corpo e no trabalho do fotógrafo. De volta ao Brasil, deixou o cabelo crescer, adotando o penteado afro, e se dedicou a retratar os "totens" negros da música brasileira. Com o ímpeto de realizar um "manifesto silencioso", produziu entre as décadas de 1960 e 1970 algumas das fotografias pelas quais é mais conhecido hoje: retratos de Pixinguinha, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara e outros.

Ícones sagrados contra o racismo

Mais uma vez, foi o pai quem de certa forma deu o primeiro empurrãozinho para esse projeto, anos antes da viagem a Nova York. Sabendo que Firmo "tinha acesso a essas figuras todas, da favela, da política, da arte em geral" enquanto trabalhava no Jornal do Brasil, pediu que ele tirasse uma foto e conseguisse um autógrafo de Cartola, de quem era fã, caso o encontrasse. Era 1961 e Firmo ainda não sabia quem era Angenor de Oliveira.

Mas, ao voltar dos Estados Unidos, o fotógrafo já era conhecido por ele e outras figuras da música brasileira. Depois de receber a dica do pai, passou a frequentar assiduamente o Zicartola, restaurante de Cartola e Dona Zica que reunia toda a patota artística e intelectual para beber e comer ao som de apresentações de samba na rua da Carioca, no centro do Rio.

Nesse ambiente conheceu Clementina, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Paulinho da Viola. "Começou ali uma amizade minha com eles, eu entrei pra família da negritude. Mesmo sendo 'pouca tinta', eles achavam que eu era deles e me colocavam no colo", disse. Firmo também passou a fotografá-los já nessa época, ainda sem ter em mente o projeto estético e político iniciado em 1968.

Esse projeto calcado na valorização da negritude o acompanharia até o presente, levando-o a favelas, fábricas e festas populares em diferentes partes do Brasil e também no exterior.

No caso das festas, Firmo realizou um trabalho extenso a partir da década de 1970 e conta que o que lhe interessou mais não foi o registro das celebrações em si, mas do seu entorno, do que passaria despercebido

Num país que foi pensado em termos eugênicos para que a população negra não estivesse aqui hoje, Walter Firmo multiplica esses indivíduos e mostra a multiplicidade deles.

Janaína Damaceno, professora da Uerj e coordenadora do grupo de pesquisa Afrovisualidades

Olhando para uma grande reprodução de uma foto sua — uma bandeira do Brasil pintada em um muro esmaecida pelo tempo e pelas intempéries, feita na Ilha de Paquetá —, Firmo reflete que deixaria de lado a bandeira tradicional, com um verde e amarelo vivos e "ordem e progresso" no centro, para adotar essa outra versão. "A nossa é essa", disse apontando a foto.

Uma obra cheia de sentido

Para a professora da Uerj Janaína Damaceno, coordenadora do grupo de pesquisa Afrovisualidades: Estéticas e Políticas da Imagem Negra, o trabalho de Walter Firmo realiza dois procedimentos interessantes. Em primeiro lugar, reafirma e multiplica a presença negra. Em segundo, ao iconicizar grandes figuras negras, direciona o olhar e o afeto da sociedade para elas, colocando-as em um lugar sagrado.

Há nisso um movimento visionário — a professora lembra que Firmo ainda era jovem quando começou a se preocupar em registrar os mais velhos, antecipando a consagração absoluta de seus retratados e as discussões sobre ancestralidade negra que ganhariam força mais adiante.

Foi assim que, ao longo das décadas, Firmo foi capaz de construir uma obra dotada de um sentido mais profundo que o do simples elogio à brasilidade e à cultura popular. Através da beleza, dignidade e altivez de seus retratados, Firmo "patrimonializa as pessoas negras e aonde elas conseguiram chegar num país racista como esse", diz Damaceno.

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