'Órfão de etnia'

Rapper Xamã conta como tem se conectado com suas origens enquanto conhece povos indígenas pelo Brasil

Xamã em depoimento a Giacomo Vicenzo, do UOL

Foram as batalhas de rima do início da carreira que transformaram o menino Geizon Carlos da Cruz Fernandes no rapper Xamã — um dos mais ouvidos do Brasil na atualidade. O apelido carregado de referência indígena, no entanto, não veio por causa dos "traços óbvios" de sua origem, como ele define, mas por causa de um... videogame.

Para fugir dos xingamentos dos rivais de rima, ele decidiu criar o apelido inspirado no personagem Nightwolf, um lutador xamã indígena da aclamada franquia Mortal Kombat. A princípio, até chegou a adotar o nome em inglês, mas como ninguém conseguia pronunciá-lo corretamente, optou por deixar como usa hoje. Foi a forma que encontrou para evitar ofensas ao Geizon e às pessoas ao redor dele.

Anos depois, o rapper dono de hits estrondosos como "Malvadão 3" (com mais de 284 milhões de visualizações no YouTube) começou a dar outro sentido ao nome artístico. Filho de pai indígena, Xamã é o que chama hoje de "órfão de etnia", por não saber ao certo de qual povo veio — o que é comum entre populações indígenas por causa de episódios violentos que dizimaram populações ou as expulsaram de seus territórios originários.

Neste depoimento dado com exclusividade ao UOL, Xamã conta como desde 2020 tem buscado conhecer e se conectar mais com sua ancestralidade, frequentando aldeias espalhadas pelo Brasil.

O 'índio' da galera

O lugar em que cresci, em Campo Grande (RJ), eu era o "índio" da galera. Era o apelido, mas eu não entendia. E quase todo mundo do movimento indígena diz que é um bagulho normal nesse momento de aprendizado o sentimento de incompreensão.

Não tive contato com meu pai, mas sou mestiço indígena, e minha mãe era filha de descendentes de indígenas e negros. Nossa identidade como povo indígena foi jogada na fogueira. Mas há traços óbvios que marcam nossa pele, mesmo que não esteja marcado em um documento.

A minha busca por saber mais sobre tudo isso, então, começou no âmbito artístico, entre 2019 e 2020. Durante a pandemia estava muito ativo em um grupo de WhatsApp com representantes e artistas indígenas, e sempre compartilhamos muitos raps e músicas que interagiam com o movimento.

Com o tempo, essa relação foi mexendo com um âmbito espiritual meu. Passei a querer visitar aldeias, entender mais sobre povos indígenas no Brasil. Entre 2020 e 2021 visitei o povo Pataxó, em Coroa Vermelha (BA), já que estava há um tempo em contato com lideranças da região, como o Ubiraci Pataxó.

Órfão, mas em casa

Ao chegar lá, você desmistifica muito as coisas. Na cidade, criamos uma visão mistificada do que é uma aldeia: que fica no meio do mato, sem acesso a nada. Essa é uma ideia "cabralizada" dos povos indígena.

Estando lá você pode conhecer de verdade, entender que cada um é de um jeito, e só se pode falar uma coisa com propriedade quando você sente na pele.

Visitando essas aldeias, estando entre os povos indígenas, você se sente incluído mesmo sendo "órfão de etnia".

Em Rondônia, na aldeia dos Suruís, eu sentia como se estivesse no quintal da minha vó, mesmo com o choque cultural de mudar de estado. É um povo com o qual me identifiquei muito de uma forma mística.

Já com o povo Pataxó, no casamento eles dançam, cantam alto, são muito calorosos, você se sente da família deles, parece que eu vivia lá há dez anos.

Era como estar em batalha de rima, mesmo sendo um local em que nunca estive, me sentia em casa.

.

Esses aprendizados completam minha carreira, e me possibilita fazer um som em composição com artistas indígenas, como com o músico rondoniense Txepo Suruí, que ainda não lançamos.

Essa musicalidade dos povos indígenas é algo que muda a forma como você escreve, como canta e se expressa, é aquela parada do Abaporu, você pega uma coisa e faz de outra forma, transforma sua arte.

Ao mesmo tempo que eu sinto que preciso ajudar essas pessoas de alguma forma. Estou em um momento de aprendizado, usando meu Instagram como uma lente de aumento para tudo isso, que ajuda outras pessoas a quebrar um preconceito estrutural que existe sobre esses povos e ajudar a levar a voz de outras pessoas e artistas indígenas que não têm espaço.

No meu dia a dia, fui aprendendo o uso correto das palavras, como "indígena", "aldeia", no lugar de "índio" e "tribo", por exemplo, que são desrespeitosas.

Atualmente, quem convive comigo também convive com meus amigos indígenas e tenho levado esse aprendizado de uma maneira leve, que não seja chata.

Estar entre os povos indígenas é saciar uma saudade que você não sabe de onde vem. Isso faz parte da nossa história, que em mais de 500 anos de Brasil foi contada de uma maneira para manter a ordem. Pensar que houve um grande genocídio do povo indígena e recuperar essa oportunidade de falar e de estar entre eles é um momento de renascimento.

Xamã, rapper

Topo