Mulá em ação

Xeque Rodrigo Jalloul dedica vida a ajudar o próximo e quer criar cultura de doação entre muçulmanos no Brasil

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Felipe Larozza/UOL

Eram quase 19h de uma terça-feira quando um carro estacionou em uma praça na Vila Matilde, zona leste de São Paulo (SP). O cheiro bom de comida e o barulho do isopor raspando no banco de trás entregavam o porta-malas cheio de marmitas — todas prontas para serem distribuídas às pessoas que aguardavam em fila única na calçada.

O xeque paulistano Rodrigo Jalloul, 35, desceu do carro debaixo de garoa, acompanhado de três amigos que o ajudavam naquela noite: primeiro tiraram o galão de suco e as garrafinhas de água, deram copos e talheres para todos, e rapidamente entregaram cada uma das 70 marmitas preparadas pelo próprio pai de Rodrigo.

Tem sido esse o ritmo da vida do líder religioso — primeiro brasileiro nato a se tornar clérigo xiita —, que, apesar de encontrar vários sinônimos para se descrever como "rebelde" durante a entrevista, segue à risca o ensinamento que considera fundamental no islamismo. "O próprio Alcorão [livro sagrado do Islã] conta a respeito da caridade, do cuidado com o órfão, do cuidado com as pessoas mais pobres, com as mais debilitadas", afirma ele, que se converteu aos 18 anos.

A quem vê Rodrigo na fila de doação, o turbante branco é o único fator que o entrega como um sábio religioso. Rodrigo é quieto, não costuma falar sobre sua fé — evita misturar as coisas, conta. Mas diz que, vez ou outra, aparece alguém pedindo uma bênção.

"Não estou ajudando para poder converter alguém. É tudo questão de humanidade. Infelizmente, o islamismo ainda não tem uma cultura de caridade. Quero tentar mudar isso, não só pregando o que o Alcorão diz sobre ajudar o próximo, mas praticando isso para incentivar outras pessoas a fazerem também", explica.

Marmitas no Ramadã

A realização de que seria necessário ajudar quem precisa aconteceu há onze anos, quando ainda estudava para se tornar xeque. Andando pela mesquita que costumava frequentar, encontrou um depósito cheio de caixas e sacolas com roupas. Eram doadas por lojas para o centro religioso quando "saíam de moda". "Eu perguntei por que não doavam tudo, então, e responderam que não tinham ninguém para dar... Como assim não tem ninguém precisando? No Brasil?! Eu fiquei chocado, depois entendi que estavam falando que não tinha nenhum muçulmano precisando", conta Rodrigo.

Ele decidiu, então, pedir ao presidente da mesquita liberação para que pudesse doar para qualquer um, independente de religião. Com o pedido aceito, Rodrigo começou uma busca pela internet. Digitava "caridade", e com os resultados que encontrou montou um roteiro de lugares que faziam qualquer trabalho social pelo bairro. Foi em abrigos, terreiro, igrejas evangélicas e católicas, organizações sem fins lucrativos, por exemplo.

Durante todo o Ramadã — mês sagrado no calendário islâmico e que tem o jejum entre seus rituais — daquele ano, após o pôr-do-sol, também começou a distribuir refeições para pessoas em situação de rua. Vem desde então se dividindo entre as funções religiosas e os trabalhos sociais.

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Do circo ao Irã

Só que ser um xeque nunca esteve nos planos de Rodrigo. A verdade é que, quando mais jovem, ele sonhava ser produtor de programa de TV. Queria seguir na carreira artística que iniciou na infância.

Seu avô materno era dono de um circo em São Paulo, por onde várias celebridades passaram. Rodrigo guarda as fotos para provar. Nelas, estão ele ainda criança, o Bozo, os Trapalhões Didi e Mussum, a Mara Maravilha, entre outros. Ele próprio era mais ou menos uma "pessoa famosa": por algum tempo ele e a irmã vestiam as fantasias de Bananas de Pijamas e se aventuravam no palco circense dublando a música da dupla.

As idas ao circo do avô ficaram mais frequentes conforme as brigas dos pais aumentaram. Filho de pai muçulmano, descendente de libaneses, e de mãe católica, descendente de espanhóis, Rodrigo conta que as famílias nunca se deram bem.

Os pais terminavam e voltavam a todo momento. A relação de Rodrigo com a mãe piorou na adolescência, e ela acabou o expulsando de casa quando tinha quase 17 anos. Nesse momento, buscou refúgio na casa de conhecidos libaneses que cederam um quarto no fundo da lojinha que tinham na Santa Efigênia, no centro de São Paulo (SP).

"Dois anos antes eu já tinha iniciado minhas pesquisas sobre islamismo. Aí, em 2007, recebi um convite de líderes religiosos que me chamaram para estudar para ser xeque no Irã. Eu dormia no quartinho junto com as mercadorias ainda. Perguntei para o meu avô o que eu deveria fazer e ele me incentivou a ir. E assim fui", lembra.

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Nada de novo no Islã

Rodrigo se mudou para a cidade de Qom, a cerca de 150 km da capital Teerã, para estudar na Universidade Al-Mustafa. Ficou lá até 2013, quando conquistou o turbante branco que usa até hoje, sendo reconhecido como um mulá, ou seja, um sábio religioso.

Seu plano era ficar por lá, mas ao voltar de uma visita para o Brasil naquele ano, Rodrigo foi deportado quando chegou ao aeroporto iraniano. À época, como apurado pela Folha de S. Paulo, nenhuma explicação foi dada pela deportação. E até hoje Rodrigo suspeita que a decisão ocorreu pelas críticas que fazia a alguns líderes religiosos acusados de terrorismo no país.

Ele próprio se descreve como muito contestador. Sempre foi daquelas crianças que quer saber o porquê de tudo, e continua assim na vida adulta. "Minha tia tirava sarro de mim quando eu falava que ia ser xeque, ela ficava falando que eu ia ser igual a Whoopi Goldberg. E era isso, eu era rebelde, ia conhecer os lugares, ia esquiar e falavam que xeque não podia. Eu tinha muitas dúvidas dentro da religião, muitos questionamentos", explica.

Foram essas mesmas dúvidas que viraram tema para palestras no Brasil após o retorno. Nelas, conta sobre sua história, como começou na religião e discute assuntos importantes para a sociedade.

"Eu costumo falar que não estou criando um novo Islã, não tem nada de novo. Não vou passar por cima do que a religião prega, respeito muito isso. Mas quero desmistificar algumas ideias erradas sobre a nossa religião. Tanto as de dentro, quanto as de fora, porque muita gente ainda liga nossa religião ao terrorismo, e não é nada disso. O que acontece é que muita gente distorce o que o Alcorão fala, e eu sempre critico quem faz isso", diz. A visão que tem sobre sua religião também rende críticas entre muçulmanos.

Esses dias mesmo eu fiz um lanchinho de pão com mortadela para dar de café da manhã para as pessoas que ficam ali na praça Princesa Isabel, e um homem veio falar que não acha certo porque carne de porco é haraam, ou seja, é proibido pela fé islâmica. Respondi: 'é haraam para gente, mas não é para eles'. Eu compro mortadela porque é a mais barata, a que posso comprar agora. E outra, não está confortável em doar carne de porco? Não é só disso que essas pessoas precisam. Tem mulher usando miolo de pão no lugar do absorvente lá na praça da Sé. Qualquer coisa já ajuda muito

Rodrigo Jalloul, xeque

O "professor" Lancellotti

Esse caminho que percorre desde 2010, chamando a atenção dos muçulmanos para a importância de se envolver com ações sociais, acabou cruzando com o de outro religioso que também dedica a vida a estar próximo de quem mais precisa. Em 2016, xeque Rodrigo ouviu o padre Julio Lancellotti discursar sobre o trabalho de ajuda a pessoas em situação de rua.

Coincidentemente, os dois moram próximos na zona leste de São Paulo, e tiveram bastante tempo para papear no caminho de volta para casa. Compartilhando os desafios que tinham, tanto na realização do trabalho social quanto internamente em suas respectivas religiões, os dois se aproximaram.

"Tem sido muito importante porque nossa convivência não se dá em termos de doutrina religiosa, mas de compromisso social. Embora ele venha participar e assistir as celebrações na igreja, nossa convivência é de amizade, de colaboração em prol dos irmãos de rua", conta padre Julio à Ecoa. Para Rodrigo, o padre também é um professor. Nos últimos anos, aprendeu com ele um outro jeito de fazer trabalho social. "Eu achava que era só sair dando comida e roupa, e pronto. Ele me ensinou que o foco na paróquia dele é de convivência, é saber da vida das pessoas", conta.

No inverno desse ano, quando uma frente fria chegou à capital paulista, os dois prontamente começaram a circular pela cidade à procura de pessoas em situação de rua para acolhê-las. Padre Julio abriu as portas da Paróquia São Miguel do Arcanjo, e xeque Rodrigo, a do centro islâmico que tem há seis anos na garagem da casa onde mora com o pai.

O lugar, com chão forrado de tapetes brancos extremamente macios, agora tem servido de abrigo em noites de frio e chuva. No futuro, a ideia é transformar a cozinha da residência em um espaço comunitário, aberto também para projetos sociais que trabalham com preparação de alimentos.

Felipe Larozza/UOL Felipe Larozza/UOL

Em 2020, Rodrigo se candidatou a vereador pelo PSOL (agora é filiado do MDB), foi o único candidato que o padre Julio apoiou abertamente em suas redes sociais. Entre suas propostas, protagonizou a criação de um conselho municipal de líderes religiosos para dialogarem especialmente sobre o combate à intolerância religiosa e o controle ao discurso de ódio entre os fiéis.

Além da criação do projeto "Recomeço", que propõe uma renda básica para que pessoas em situação de rua consigam ter o básico para conseguir se reerguer economicamente. Mas com pouco mais de mil e quinhentos votos não conseguiu se eleger. A luta pelos mais necessitados não se institucionalizou, mas segue viva com ele, diariamente, nas ruas.

"Se a gente quer falar que Deus é amor, a gente precisa tratar as questões de misericórdia, de amor, de luta social... Nós sabemos que a pobreza não vem de Deus, vem de uma má política", finaliza.

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